Costumamos representar o relacionamento mútuo entre as próprias ciências, entre as ciências, a filosofia e a teologia, num esquema que representa diante de nós o objeto (realidade, a coisa, o campo, a região, a área etc.) sobre o qual as ciências, a filosofia, a teologia empostam a mirada do seu ponto de vista e cada qual, as ciências, a filosofia, a teologia capta um aspecto parcial desse objeto. E ajuntando-se os resultados dessas captações temos um conhecimento cada vez mais global. Por isso, quanto mais captações de diferentes pontos de vista, tanto melhor, porque se somam as informações de diferentes aspectos. Aqui, as ciências, a filosofia e a teologia são três miradas diferentes, uma ao lado da outra, sobre um mesmo objeto, cada qual com seus conhecimentos parciais do objeto, conhecimentos que podem ser somados entre si, dando assim informações cada vez mais abundantes sobre o mesmo objeto.
Esse esquema é ingênuo demais para poder ser levado a sério. Trata-se simplesmente de um esquema estereotipado, que não faz nenhum jus à realidade complexa do relacionamento das ciências. É uma representação ingênua de um realismo epistemológico caricatural, que na realidade não diz nada. E no entanto, no uso comum, mesmo entre nós, é freqüente encontrarmos uma tal representação, orientando a composição de um programa de estudos da filosofia e da teologia. É preciso, pois, que abandonemos essa ingenuidade dogmatizada se quisermos compreender as ciências, a filosofia e a teologia, hoje.
Essa representação ingênua da ocorrência do objeto ali diante de mim e eu aqui, com o meu ponto de vista das ciências, da filosofia e da teologia a mirar o objeto, adquirindo informações sobre o mesmo, é na realidade uma abstração. Isso porque a realidade não está diante de nós. Nós, com tudo que nos cerca, tanto por dentro quanto por fora, em totalidade, já somos realidade, já somos a realidade e sua compreensão. E isto que, na representação ingênua da realidade como objeto, achamos que está diante de nós, aparece como estando diante de nós, porque nós nos pontualizamos como esta coisa-objeto aqui, relacionada com aquela coisa-objeto pontualizada lá, e cortamos por assim dizer a ligação viva e concreta com a experiência anterior a toda essa operação de pontualização objetivante, experiência que nos possibilita essa pontualização dual, eu aqui e coisa lá como sujeito e objeto. Essa experiência anterior é a percepção direta-imediata simbiótica da realidade que somos nós mesmos como a totalidade do mundo.
Na nova teoria das ciências essa realidade da percepção direta e imediata, em sendo como totalidade-mundo, se chama realidade pré-científica, que a teoria ingênua das ciências dogmatizada, já mencionada acima, confunde com mundo primitivo, imerso na obscuridade da vitalidade irracional, ainda infante e sem consciência. Na realidade, ela é a presença e plenitude da totalidade dinâmica da possibilidade da vida, no nosso viver, em sendo, na pregnância da evidência imediata da coisa ela mesma. Edmund Husserl chamou essa realidade na concreção-vida de “Lebenswelt”. Esse termo alemão é usado sem tradução na nova teoria das ciências, e poderia ser traduzido como “mundo vital circundante”. Essa Lebenswelt é o espaço aberto da plenitude da possibilidade, que poderíamos chamar de insondável abismo desvelante das possibilidades do ser.
Ora, toda ciência se funda e está assentada nesse abismo desvelante, na Lebenswelt, que não é um espaço escancarado e homogêneo, mas implicações de diferentes níveis e dimensões de Lebenswelten numa contenção, pregnância e dinâmica de possibilidades genéticas infinitamente ricas e pluriformes de ser. É desse abismo desvelante que provêm as diferentes decisões de possibilidades epocais da história.
As ciências, cada vez, em diferentes epocalidades, em se fundando e se assentando nesse abismo desvelante, como que se fixam numa dessas Lebenswelten e começam a trazer cada vez mais à tona as implicações dessa possibilidade. Mas, em fazendo essa explicitação, essa ciência estabelece um corte, um entalhe na totalidade dessa imensidão do abismo desvelante, e em cima dessa Lebenswelt-entalhe começa, por assim dizer, a construir todo um mundo de explicitações, ordenações coerentes, desenvolvidas a partir do modo de ser próprio ali dado nessa Lebenswelt-entalhe.
As ciências, portanto, se movimentam ao mesmo tempo em duas direções:
a) Para cima, no sentido de construção positiva de estruturações, que são explicitações das possibilidades da Lebenswelt, sobre a qual e a partir da qual as ciências erguem essas estruturações. E é da Lebenswelt que elas colhem seus conceitos fundamentais, o modo de ser do método etc., que então se transformam em pressuposições fundamentais de cada ciência. É esse movimento construtivo que dá às ciências o seu característico de ciências positivas, i.é, cada ciência tem o seu positum, i.é, o embasamento, o posicionamento, o assentamento na terra fértil da(s) Lebenswelt(en) do abismo desvelante vida.
Tematizando, explicitando e ordenando, esse movimento construtivo das ciências positivas ganha clareza e precisão no mapeamento e na presentificação das possibilidades, dadas pela Lebenswelt, sobre a qual repousa; mas, quando nas ciências, contínua e conscientemente não se trabalha o movimento de penetração, sondagem e ausculta atenta do sentido do ser, que incessantemente emerge do abismo desvelante da vida, esse movimento perde ao mesmo tempo a radicalidade, a imensidão e a orginariedade de sua pertença ao abismo desvelante.
b) Esse movimento de penetração, sondagem e ausculta do sentido do ser da Lebenswelt a emergir do abismo desvelante é o segundo movimento das ciências que vai na direção oposta ao do movimento construtivo, portanto para baixo, para as profundezas da Lebenswelt.
Esse movimento de penetração na raiz da própria ciência não é construtivo, mas destrutivo. Não é destrutivo no sentido de agressão a uma posição para aniquilá-la, impondo-lhe uma outra posição. É destrutivo no sentido de, sempre de novo reconduzir, i.é, reduzir toda e qualquer construção positiva das ciências à radicalidade da sua pertença ao abismo desvelante, desfazendo toda e qualquer infiltração ou sedimentação de dogmatismos e unilateralidades, hipostatizações e absolutizações e mantendo sempre de novo e nova a abertura à possibilidade abissal de renovação e ao toque do inesperado. Do jogo desse movimento construtivo e destrutivo, do jogo desse movimento estruturante-constitutivo e do movimento desestruturante-redutivo se dá a fundamentação da ciência, e a cientificidade e o quilate de uma ciência se medem pela limpidez e pelo equilíbrio desse jogo.
Esse movimento que se dirige à profundidade radical do abismo desvelante, que caracteriza a nova ciência e a distingue da ideologia e da mundividência, levado agora às últimas consequências e tematicamente buscado, constitui o movimento da filosofia. Isto significa que as ciências e a filosofia copertencem intimamente. A filosofia é no fundo o movimento de redução que corre no próprio seio das ciências, juntamente com o movimento da constituição. Essa maneira nova de compreender as ciências nos seus dois movimentos constitutivo-redutivos talvez possa ser esquematizada da seguinte maneira. Talvez seja útil observar que os dois movimentos não são propriamente lineares opostos, mas sim movimentos espirais em implicação centrifugal-centripetal.