Para abrir um caminho viável no âmbito destas difíceis questões, iremos nos ater à referência já mencionada com o tempo que nos é proporcionada pelo relógio. Para isto, inicialmente, uma observação metódica: faremos bem em deixar inteiramente de lado o que já acreditamos saber sobre o tempo, e também a maneira como estamos acostumados a tratar o tema “tempo”. Por exemplo, a diferenciação de tempo subjetivo e objetivo, de tempo do mundo e do eu, do tempo medido e vivenciado, de tempo quantitativo e qualitativo. Eliminaremos todas essas diferenciações, não por afirmarmos que sejam inteiramente falsas e infundadas, mas porque continuam questionáveis. Porque quando falamos, por exemplo, de “tempo objetivo”, temos uma representação de objetividade que continua questionável se, como tal objetividade, ela não é determinável a partir do tempo pensado de modo suficiente. O mesmo vale para o tempo subjetivo.

Os senhores certamente não esperam que iremos resolver o enigma do tempo. Mas já ganharemos muito se pudermos nos colocar ante a enigmaticidade do tempo. Iniciemos, agora, o questionamento sobre o tempo e sua relação com o ser humano com a reflexão sobre o relógio. Verificamos o tempo pelo relógio. Aproximemo-nos do tempo pelo uso do relógio. O relógio é um objeto de uso. Como tal, ele é acessível, simplesmente presente, à mão, sempre disponível. Está sempre próximo a nós, é um objeto de uso, durável, constantemente permanente, que tem a propriedade notável de que anda. Notável: uma coisa simplesmente presente, permanente, anda e, ao andar, executa um movimento que volta regularmente, quer dizer, um movimento periódico. O caráter periódico do movimento do relógio vem do fato de ser relacionado ao movimento do Sol. Porém, a relação do relógio com o Sol pode ser diferente. De acordo com isso, há diferentes relógios. Fica a questão se todo relógio precisa ser relacionado com o Sol. Como é isto com o relógio solar? Nele, a sombra também se move regularmente, periodicamente, embora não em círculo, mas como um pêndulo. Que caráter tem este andar do relógio? Com esta questão ficamos, por enquanto, no âmbito do nosso uso atual do relógio (relógio de pulso, de bolso). Um ponteiro se move e passa por certos números. Suponhamos que chegássemos com um relógio a um membro de uma tribo indígena numa floresta, que nunca viu um relógio, e lhe mostrássemos esta coisa. Pelo movimento, ele pensaria que esta coisa está viva. Para ele, a coisa não é um relógio, uma medida de tempo. Isto não significa, naturalmente, que a relação com o tempo lhe seja estranha. Provavelmente, ele vive uma relação mais originária com o tempo do que nós, europeus modernos, que lhe mostramos nossos estranhos produtos. Entretanto, para ele, não há questão do relógio.

Quando é que esta coisa técnica, que na conversa era chamada de máquina, transforma-se em relógio? Quando se acerta o “relógio” de modo que ele funcione da mesma forma que outros relógios ou com o sinal do rádio. O locutor de rádio fala muito precisamente e, assim mesmo, não precisamente. Por que não? Ele diz: ao sexto sinal, são exatamente tantas horas. Mas este sexto sinal ainda não existe quando ele diz isto, ele vira. Quando ele diz: “ao sexto sinal”, pode-se perguntar a partir de que relação com o sinal mencionado o locutor fala e o ouvinte ouve. Isto acontece por um esperar pelo sexto sinal. Mais exatamente o locutor deveria dizer: ao sexto sinal, serão tantas horas. Esta correção soa como uma filigrana inócua, mas ela é extremamente importante.

Quando acertamos o relógio ao sexto sinal, o relógio está pronto para uso, não antes, embora nosso relógio ande, ele “anda errado”. O que acontece quando olhamos ou verificamos o tempo no relógio? Como isto se dá? Dizemos: “agora são exatamente nove horas”. Eu digo: “agora”. De onde eu tiro esse agora? O agora como tal não tem nada em comum com o relógio, como esta coisa. O agora não é uma coisa. Entretanto, não há verificação do tempo no relógio sem um dizer-agora, seja isto verbalizado ou não, quer observemos especialmente este “dizer” ou não. Mas, para nós, há sempre um agora sem relógio. Eu digo, por exemplo: “agora o Dr. H. está fumando”. O “agora” é apenas um suplemento quando olho o relógio? Podemos verificar o tempo no relógio sem dizer “agora”? A indicação do lugar em que o ponteiro se encontra no momento ainda não é fazer uma leitura do tempo. Que relação há entre o verificar a posição dos ponteiros e o dizer-agora com isso? O dizer-agora fundamenta a indicação da posição dos ponteiros, como a verificação de um momento. No dizer-agora, apontamos o fato de que. de alguma forma, o tempo já nos é dado de antemão. Entretanto, este apontar para o tempo não acontece só no dizer-agora. Também quando digo: “acaba de… eram tantas horas”, eu nomeio o tempo. Para onde falo com o “acaba de”l Eu falo para trás, para o passado. E quando digo: “em vinte minutos, serão 9:30h”, eu aponto para algo que vem. Falo para frente, para o futuro. Falamos assim, como se isto fosse natural, também no uso do relógio não somente com “agora”, mas com o “acaba de” e o “logo a seguir” (imediatamente), falamos para diversas “direções” do tempo. Ou não dizemos “agora” quando verificamos: em cinco minutos (logo a seguir), serão 20:1 Oh, isto é, “agora em cinco minutos”? O agora não se mostra aqui numa curiosa primazia no nomear do tempo? Ao lado dos agora, antes, depois do tempo-relógio determinados numericamente, também posso dizer: hoje, ontem, amanhã. Agora e hoje têm a ver com o presente, o acaba de e naquele tempo com o deixar ir para o passado e com o manter o que foi. O logo mais e o então têm a ver com o deixar-vir, um esperar. Há, pois, três modos diferentes de poder falar do tempo, de poder nomear o tempo. Mas aqui se impõe a questão: será que nas maneiras como verificamos as horas no relógio e como nos relacionamos com o tempo nesse momento nos referimos também ao próprio tempo? Será que, nos modos da verificação das horas, o tempo já é dado também como tempo? Em que caráter aponta-se aqui para o tempo? Agora, acaba de, logo mais, hoje, ontem, amanhã são determinações de tempo. Em que aspecto isto determina o tempo? Não se determina o tempo como tempo. O tempo não é dado como tal, mas indica apenas quanto tempo o relógio mostra. Medimos o tempo pelo uso do relógio. Mas nunca medimos com isso o que há com o próprio tempo, como o que ele mesmo deve ser determinado. O discurso da determinação do tempo é ambíguo. Verificar as horas pelo uso do relógio significa sempre: verificar quanto tempo, quantas horas são. Embora ao olhar o relógio eu me ocupe do tempo, é sempre com referência a um quanto de tempo.

Mas qual a relação da verificação do quanto de tempo pelo uso do relógio com a determinação do tempo que pronuncio no hoje, amanhã e ontem? Com hoje, ontem e amanhã, quero significar a sequência de dias cujas horas podem, mas não precisam ser mais exatamente determinadas pela indicação de números de horas com a ajuda do relógio. O dizer hoje, ontem, amanhã é, pois, uma relação mais primordial com o tempo em comparação com o verificar de um quanto de tempo pelo relógio. Pois, esta verificação do tempo de acordo com o relógio é apenas uma determinação aritmética de cada hoje, ontem, amanhã. Só podemos usar um relógio porque, para nós, há, de antemão, um hoje, um amanhã e um ontem. Mas, também, estes continuam indicações de tempo, que não conseguem, mais do que as indicações do tempo primordial, nos dar o próprio tempo como tal.

No verificar do tempo pelo relógio, aliás, como em toda indicação de tempo, apontamos para o tempo, mas não vemos o tempo mesmo. Se quisermos saber o que é o tempo mesmo, a relação de tempo das várias indicações de tempo não pode nos ajudar. Antes, devemos perguntar: de onde tiro o agora, o acaba de e o logo mais? Esta pergunta, assim como uma eventual resposta, só é possível porque já temos o tempo, mais exatamente, porque para nós já domina o tempo de presente, passado e futuro. Porque sempre só posso tomar algo que me é dá-vel [Geb-bar]. E este poder se dar [Gebbare] é o que sempre já domina. Com a palavra “dominar”, indica-se apenas, por enquanto, cuidadosamente, que somos atingidos por toda parte e constantemente pelo tempo. Em vista da relação com o tempo, devemos, por enquanto, compreender por um lado a diferença entre indicação do tempo [Zeit-Angabe] pelo relógio e indicação do tempo — não de acordo com o relógio — como hoje-ontem-amanhã e, de outro lado, dação [Zeit-Gabe] de tempo. Não há indicação de tempo sem anterior dação de tempo. Entretanto, permanece ainda a questão se no nosso comportamento cotidiano, seja este científico, pré-científico, prático, não-científico, artístico ou religioso, o tempo nos é dado de modo diferente do que por uma espécie de indicação de tempo.

Aditamentos: A aceitação da dação do tempo que sustenta todas as nossas indicações de tempo, a visão deste fenômeno e do tempo como tal dado nesta dação exigem, evidentemente, um modo de pensar fundamentalmente diverso de nossa relação cotidiana com o tempo. Mas isto não significa, absolutamente, que esta relação diferente com o tempo não deveria originar-se de um esclarecimento prévio da nossa relação cotidiana com o tempo. De fato, para começar, tudo depende deste esclarecimento. Dizemos “depende” e não “dependia”, porque o que foi dito até agora ainda não é suficiente para o necessário esclarecimento.

HEIDEGGER M. Seminários de Zollikon. Tradução: Arnhold Gabriella; Tradução: Almeida Prado Maria. Petrópolis: Vozes, 2001.

Martin Heidegger