Capítulo retirado do livro “Os desafios da racionalidade”.
Trabalho desenvolvido por solicitação da UNESCO em 1977 e publicado pela Ed. Vozes
A ciência pode ser considerada como a soma atual dos conhecimentos científicos, como uma atividade de pesquisa ou ainda como um método de aquisição do saber. O aspecto sob o qual ela se manifesta do modo mais surpreendente, em nossos dias, é seu caráter cada vez mais organizado socialmente. Houve um tempo em que o trabalho científico era a tarefa de alguns, e desenvolvia-se um pouco à margem das instituições. Atualmente, tornou-se um setor importante e, em certos aspectos, decisivo de trabalho social; é fortemente institucionalizado e, por isso mesmo, organizado segundo planos. A parte de fantasia, de acaso, de imprevisibilidade, de criatividade pessoal, que fora tão importante nas primeiras fases do desenvolvimento científico, tornou-se hoje quase marginal. A atividade de pesquisa tornou-se uma profissão como outra qualquer, é exercida em instituições públicas ou privadas que tendem a se organizar segundo o modelo burocrático, elabora-se em função de projetos definidos que, frequentemente, são ditados por motivos exteriores à ciência propriamente dita. Aliás, uma parte cada vez mais importante da pesquisa visa, não a resolver problemas propriamente científicos, mas a utilizar conhecimentos, métodos e um saber-fazer científicos tendo em vista criar novos procedimentos industriais, colocar novos meios à disposição da economia, fabricar novos engenhos militares ou contribuir para realizações visando ao desenvolvimento de uma região ou de um país. Em suma, a pesquisa se tornou um fator de poder, seja na ordem econômica seja na ordem diretamente política. No mais, desde a Segunda Guerra Mundial, a ciência — ou mais exatamente a pesquisa científica — converteu-se num fator político ao qual todos os Estados dão o máximo de atenção, justamente porque é evidente que a capacidade de utilizar os recursos da ciência constitui, hoje em dia, um componente essencial da força econômico-política de uma coletividade. Por toda parte vemos elaborar-se uma política da ciência e construírem-se instituições estatais apropriadas. Cada vez mais a organização da pesquisa tende a tornar-se global, a passar inteiramente para o controle direto ou indireto do Estado. Sem dúvida, devemos levar em conta, aqui, as diferenças entre os vários tipos de regime econômico-político. A organização da ciência pode ser mais ou menos centralizada. Todavia, mesmo onde existem múltiplos centros de decisão independentes, perseguindo seus próprios objetivos, eventualmente em função de interesses particulares, a tendência continua sendo a de realizar tanto quanto possível certa integração das atividades científicas; e isto, de modo a que sejam evitados os duplos empregos, sejam favorecidas as cooperações, eventualmente definidos certos objetivos globais que poderão estabelecer uma espécie de enquadramento geral destinado a tornar compatíveis e, no melhor dos casos, a harmonizar os diversos objetivos particulares Entretanto, antes de considerarmos a pesquisa em seu aspecto social, em seus modos de organização e em suas incidências políticas, devemos nos perguntar o que ela tem de específico e por que adquiriu tanta importância nas sociedades modernas. Em outras palavras, precisamos considerar o fenômeno científico em si mesmo, em seu núcleo essencial. Ora, neste ponto de vista, o que importa são, ao mesmo tempo, o conteúdo da ciência e seu método. Por seu conteúdo, a ciência fornece certo saber sobre a realidade. E por seu método, esforça-se por tornar possível um crescimento regulado desse saber e, mesmo, por aperfeiçoar progressivamente os meios pelos quais ela assegura esse crescimento. Provavelmente, o aspecto mais característico da démarche científica é justamente essa capacidade de progresso, que define certo tipo de evolução. Trata-se, pois, de caracterizar o tipo de saber fornecido pela ciência e de analisar a dinâmica interna da démarche científica.
A ciência moderna encontra-se estreitamente associada a um poder sobre as coisas e sobre o próprio homem. É por isso que aparece ligada à tecnologia, a ponto de não se discernir dela. Nem por isso deixa de constituir um tipo de démarche cuja finalidade própria e imediata é a de fornecer conhecimentos cada vez mais extensos, cada vez mais precisos, cada vez mais confiáveis. É o estatuto desses conhecimentos que precisamos apreender, se pretendemos compreender por que o saber científico, em inúmeros casos, prolonga-se tão naturalmente num saber-fazer que já pertence à esfera da tecnologia. Poderíamos dizer, entrando imediatamente no essencial, que o saber científico não é de tipo sapiencial, de tipo contemplativo nem tampouco de tipo hermenêutico, mas de tipo operatório.
A filosofia, pelo menos em seu início, mas até mesmo em tempos próximos do nosso, foi, em algumas de suas expressões mais eminentes, um método que se propunha a atingir a sabedoria pelo conhecimento. Algo dessa concepção permanece em certas orientações atuais da filosofia. A ideia subjacente é que há um ponto de vista justo sobre a existência e sobre o mundo, ponto de vista a partir do qual o homem pode, de certa forma, relacionar-se de modo harmonioso com o universo, embora esse ponto de vista não seja imediato. A vida imediata está imersa na particularidade de preocupações contingentes, está repleta de imagens falaciosas, não é capaz de compreender-se a si mesma e ignora seu próprio sentido; em suma, caracteriza-se pela errância. O esforço a ser feito, em vista de restituir a existência a seu sentido autêntico, consiste essencialmente em desembaraçar-se das ilusões, graças a uma crítica impiedosa de todas as formas de erro, e em conquistar uma visão verdadeira do mundo e da vida. Em geral, o erro é compreendido como o apego a um ponto de vista parcial, àquilo que é imediatamente acessível, às evidências mais espontâneas; quanto à verdade, ao contrário, é concebida como o ponto de vista da totalidade. Ver as coisas em sua verdade é situá-las relativamente ao todo, captar sua articulação com a estrutura universal que constitui o englobante último a partir do qual tudo deve ser compreendido. E ver-se a si mesmo na verdade é apreender-se em seu lugar nos elos do todo, é compreender-se como um momento na manifestação da vida universal — momento, aliás, não necessariamente insignificante, mas cuja significação positiva é inteiramente devida à contribuição que ele traz a essa manifestação e à virtude que dela recebe. Deste ponto de vista, as limitações que inevitavelmente encontra a existência, e cuja prova é sofrimento, são reinterpretadas, seja como peripécias particulares que tomam seu sentido de sua inscrição num destino que as ultrapassa absolutamente, seja como efeitos da ilusão de que inevitavelmente são vítimas aqueles que permanecem ligados à imediatez da experiência e, por conseguinte, à sua indigência até mesmo à sua incoerência.
Há, sem dúvida, sabedorias para as quais o acesso à vida autêntica constitui, antes de tudo, uma questão de prática: é por uma paciente ação sobre si, por uma ascese prolongada, por um caminho de desprendimento e de renúncia ao eu, que podemos chegar a um estado de liberação que, aliás, não é exprimível. Mas na perspectiva da sabedoria pelo conhecimento, que desempenhou um papel decisivo no nascimento e na evolução da filosofia ocidental, é pela mediação de um saber que podemos atingir uma verdadeira reconciliação com a vida. O ponto de vista adequado é, justamente, o de um pensamento que se tornou capaz de apreender a totalidade e de compreender como todos os seres, todas as qualidades e todos os acontecimentos nela se instalam; como, de modo especial, a vida mesma do «sábio» inscreve-se nesse » agenciamento universal de todas as coisas, concebido como harmonia, perfeição do inteligível, desabrochar supremo da beleza. Ver esta beleza é inserir-se ativamente nela. A visão é transformação, ao mesmo tempo conversão e metamorfose, distanciamento em relação a visões parciais e falsas e apropriação à lei do todo. A vida segundo a sabedoria é vida bem-aventurada. Mas o modelo por excelência da beatitude é o ato do pensamento que se possui perfeitamente a si mesmo. E para ter acesso à vida bem-aventurada o ser humano deve elevar-se ao conhecimento desse ato e aprender a ver o universo todo como que suspenso nele. É esse pensamento, participação ao puro pensamento, que constitui a sabedoria.
Essa concepção do saber, que num certo sentido é imantada por uma visão prática, pois ordena-se a um estado que deve ser alcançado no término de um processo, conduz facilmente à do saber contemplativo. Aqui, o tema inspirador não é mais o da sabedoria, mas o da teoria. Encontramo-nos sempre na ordem do saber, mais exatamente, de um saber da totalidade, mas a ênfase é deslocada: o que é evidenciado não é mais este estado bem-aventurado que deve proporcionar uma visão justa, mas a própria visão, considerada, de certa forma, como um valor em si, como desvinculada de toda perspectiva prática, não somente no plano instrumental, no plano dos interesses imediatos, mas até mesmo no plano desse agir sobre si, dessa transformação interior que deve conduzir à beatitude. Subsiste uma oposição entre uma vida inautêntica, encerrada no erro, vale dizer, na imediatez das visões parciais, e uma vida autêntica, que se conforma com a verdade. Ora, a verdade é a integralidade da manifestação; é, ao mesmo tempo, a revelação do mundo, segundo sua máxima envergadura, e o movimento acabado de sua vinda em sua automostração, tal como ele se revela desde suas origens até as mais tênues terminações de sua eflorescência. A visão verdadeira segue, por assim dizer, o universo nessa manifestação, refaz com ele o caminho de seu crescimento e de sua eclosão, acompanha desde o começo até suas últimas ramificações o movimento do aparecer. Por isso, ela se eleva acima de toda forma de apreensão, quer seja da ordem da sensibilidade, da imaginação ou do pensamento, que permaneceria apenas na superfície mais visível das coisas, só podendo apreender, por isso mesmo, fragmentos relativamente isolados da realidade.
O acordo com a verdade, vale dizer, com a amplitude mesma da gênese universal, é uma forma de vida que pertence verdadeiramente à ordem da soberania. Porque, ao elevar-se a uma contemplação adequada daquilo que mantém coesas todas as formas particulares na unidade de um imenso jorrar, indo ao encontro da força mesma do originário, o ser humano pensante ultrapassa sua própria particularidade, as determinações pelas quais está submetido às leis da matéria, da vida e da história, para coincidir com aquilo que se encontra na raiz de todas as leis e, por conseguinte, para além de toda lei, de toda determinação e de todo condicionamento. O originário é, necessariamente, o incondicionado, o que só remete a si, ao abismo inexaustivo de sua energia manifestadora: só pode ser celebração de si mesmo, irradiação de si numa glória incomparável e sem declínio. A teoria não é um vão olhar sobre um mundo que seria inteiramente em superfícies, que não seria outra coisa senão um cintilar que se revela, nem tampouco um exercício insignificante que deixaria todas as coisas como estão, só fazendo acrescentar à infelicidade da vida o inútil desdobramento de um reflexo estéril. A teoria é o esforço sublime do «logos» no homem para elevar uma vida contigente, aparentemente entregue às fatalidades e votada ao aniquilamento, à condição sublime de uma vida soberana que é o acordo sem falha com aquilo que se encontra no coração mesmo da manifestação. A ideia de um acordo com o verdadeiro, ou da verdade com o acordo, longe de ser uma espécie de abdicação diante de um poder exterior, faz apenas exprimir, ao contrário, uma exigência que, provavelmente, é constitutiva do ser humano e que constitui como que o traço, nele, da vida do originário. Sob a forma do «logos», essa vida tende a realizar-se numa palavra que diria toda a sua força e, ao mesmo tempo, concluiria o movimento da manifestação. A teoria é ao mesmo tempo o espaço onde são recolhidas as forças constituintes e a forma mais espetacular na qual se atesta sua virtude. É, ao mesmo tempo o reflexo e a realização do movimento universal da verdade, isto é, da vinda a si da realidade total na epifania de seu incessante advento.
A ideia de teoria, ela mesma derivada da de sabedoria, conduz a uma concepção hermenêutica do saber. A teoria é uma espécie de repetição da realidade que se revela. Ela reefetua, no espaço da palavra, as etapas constitutivas da manifestação. Desta forma, torna-se a si mesma manifestação, não somente no sentido em que, ao produzir-se, se dá a contemplar em seu acabamento, mas também, e mais radicalmente, no sentido em que se torna o momento supremo da manifestação, a instância na qual o aparecimento da realidade é recolhido na força da palavra. Esta é ao mesmo tempo um componente do aparecimento e o lugar no qual ele pode produzir-se, ao mesmo tempo momento terminal e condição originária. É por isso que a palavra não é apenas um simples relatório descritivo, mas o prolongamento daquilo que se mostra, a revelação das virtualidades ainda envoltas naquilo que constituía apenas o aparecer; e ao encontrar a fonte no aparecer que torna visível sua eficácia, ela é capaz de exprimir toda a sua força e de acrescentar, assim, ao visível, esta espécie de irradiação sem limites que consagra sua infinitude. Se pode, é porque o conceito, que não somente é uma imagem, um desdobramento da aparência, mas a forma dinâmica capaz de apreender e de fazer ver, na aparência, o movimento que a transporta e, portanto, tudo o que ela anuncia, a verdade para cujo advento contribui. A teoria, sob sua forma acabada, é sistema, vale dizer, configuração conceitual acabada, de que todos os elementos são interdependentes; e mostra, por sua estrutura mesma, sua coerência interna e seu caráter de saturação. O sistema possui sua própria lei de funcionamento. E é através dela que ele faz ver a lei do mundo e a verdade da existência. Ora, é precisamente isso que caracteriza a interpretação. O discurso hermenêutico não é uma descrição, mas uma espécie de recriação. Mão se liga à aparência para tentar restituir sua tecitura de superfície, mas visa a revelar seu sentido. Ora, o sentido não se mostra como um objeto nem como um sistema de objetos. É este elemento impalpável que atravessa todos os objetos e todos os sistemas, religando-se ao movimento universal da manifestação. Tal movimento é a irradiação do originário: reduz o visível à sua fonte e o impele para horizontes sempre mais vastos que ele só faz anunciar. Tornar o sentido manifesto é reinserir as aparências estáveis do mundo nesse devir da manifestação. E um discurso só consegue isso, caso se converta em devir. O movimento de interpretação é justamente esse processo de um discurso que, ao construir-se segundo as exigências próprias do conceito, faz progressivamente surgir, na concatenação mesma de seus momentos e na sistematicidade de sua arquitetura total, um sentido no qual se mostra e se celebra o fundo mesmo da realidade.
Não podemos negar que o discurso científico conserve algo dessas três inspirações. Talvez mesmo retire delas sua mais secreta virtude. Talvez seja apenas por uma espécie de derivação que ele consegue integrar-se na ação e interpretar-se a si mesmo como ação. É até possível que no dia em que a ciência não for outra coisa senão um «fazer», no dia em que tiver perdido todo contato com suas raízes especulativas, ela se tome completamente estéril. Nela subsiste, mesmo de modo visível, algo da ideia antiga de um saber salvador, de um saber que deve libertar-se das ilusões, das falsas crenças e das ingenuidades infantis. Mesmo que tudo se explique por leis e que não possamos sonhar em escapar ao jogo dos diferentes determinismos, acederemos a uma forma superior de existência pelo conhecimento dos mecanismos aos quais encontramo-nos submetidos. Reaparece, aqui, a ideia da liberdade como necessidade compreendida. Também subsiste, e mais evidentemente ainda, na ciência moderna, algo da ideia de teoria. Sem dúvida não se trata mais de um saber da totalidade. É ao preço de uma decupagem, por vezes muito artificial, da realidade, que conseguimos penetrar em seus enigmas. Todavia, o saber científico de forma alguma é, mesmo a propósito de um setor particular da experiência, uma coleção de dados fragmentários. Ele se exprime em sistemas conceituais que, sem dúvida, são submetidos a condições apropriadas de adequação relativamente à realidade fenomenal, mas que possuem sua coerência e sua fecundidade próprias. Aliás, delas se exige que vão além daquilo que é simplesmente dado, que forneçam um instrumento de antecipação capaz de orientar a pesquisa, que façam pressentir os fenômenos a serem descobertos e que indiquem, de certa forma, previamente, aquilo que deverá ser efetivamente descoberto. Sendo assim, a ciência possui inevitavelmente um aspecto hermenêutico. A teoria, mesmo parcial, não é um simples resumo de resultados de observação, nem tampouco uma simples síntese de generalizações empíricas. É um discurso que tenta reconstituir, à sua maneira, p funcionamento de conjunto de certo setor da realidade, restituindo-lhe, por assim dizer, pelo menos de modo conjectural, a vida secreta, apropriando-se de seus princípios constituintes, e que se esforça, desse modo, por prolongar o visível em direção a todos os seus desenvolvimentos potenciais. Em suma, trata-se de um discurso que tenta fazer ver, de antemão, em que direções vai o momento da manifestação. Apoiando-se naquilo que já se mostrou, tenta revelar, não somente sua coerência mas também, e talvez mesmo sobretudo, tudo o que ela anuncia, toda essa parte de não-visível de que o fenômeno constitui apenas, em suma, o afloramento parcial.
Se é verdade, porém, que a ciência continua a enraizar-se nessas formas fundadoras de saber, nem por isso deixou de conquistar sua originalidade, desligando-se de modo refletido dos modos puramente especulativos ou ínterpretativos de conhecimento, e elaborando procedimentos próprios de aquisição de conhecimentos. Como já sugerimos, o que se encontra no centro desses procedimentos é a ideia de operação.
Há, em suma, na démarche cientifica, dois componentes essenciais: o raciocínio e a experiência. Pelo menos, é isso que ocorre nas ciências que podemos denominar de empíricas. O mesmo não ocorre com as ciências puramente formais, a lógica e as matemáticas, nas quais se encontra ausente o componente experimental, e que poderiam ser caracterizadas pelo fato de construírem seu domínio de investigação à medida que o exploram. No entanto, só levaremos em conta as ciências formais na medida em que trouxerem uma contribuição decisiva para as ciências empíricas. Poderíamos esquematizar a démarche das ciências empíricas do seguinte modo: um domínio de investigação sendo relativamente bem delimitado, e com ele sendo adquirida certa familiaridade, formulamos, a seu respeito, certas hipóteses, julgadas como representando as regularidades mais gerais que presidem ao funcionamento do referido domínio. Tais hipóteses se exprimem sob a forma de proposições gerais a partir das quais podemos efetuar deduções conduzindo a outras proposições de grau igual ou menor de generalidade. O conjunto virtual das proposições que podemos, assim, obter, a partir das hipóteses adotadas, forma uma teoria.
Na medida do possível, esforçamo-nos por formular as hipóteses através de representações matemáticas, o que apresenta uma vantagem incontestável, porque as matemáticas fornecem uma variedade extremamente rica de estruturas abstratas cujas propriedades são (relativamente) bem conhecidas; ademais, fornecem os campos de representação nos quais torna-se possível construirmos modelos formais dos funcionamentos que desejamos caracterizar. Grande parte da física baseia-se, assim, na utilização de uma teoria matemática particularmente bem conhecida: a das funções de variáveis reais. O que tornou possível esse recurso à teoria das funções foi o fato de as grandezas retidas para a análise dos fenômenos estudados (tais como a velocidade, a energia, a temperatura, etc), terem podido ser associadas a procedimentos de medida, vale dizer, em definitivo, a números reais. Por conseguinte, era inteiramente adequado representar as interdependências entre essas grandezas por funções de variáveis reais. E, em geral, a análise de uma situação concreta ou, mais exatamente, de um tipo dado de situação (por exemplo, o comportamento de um corpo submetido a uma força de indicação ou a uma força centrai, ou a propagação do calor num meio contínuo, ou a difusão de uma onda), conduzirá, não a uma caracterização direta da função representativa (fornece a chave das interdependências estudadas), mas a uma relação fazendo intervir a variação dessa função no tempo. Tal relação se exprimirá por uma equação diferencial. A solução dessa equação, que é um problema puramente matemático, vai permitir-nos determinar a função procurada e, a partir daí, será fácil darmos uma interpretação física da solução em termos de movimentos ou de interações materiais. Por exemplo, o estudo do comportamento de um corpo submetido a uma força de indicação dá lugar a uma equação cuja solução é uma função periódica, isto é, uma função que retoma os mesmos valores no final de determinado intervalo de tempo. Essa função representa, de fato, no tipo de problema tratado, a posição do corpo relativamente a um referencial fixo. O caráter periódico da função-solução é interpretado de modo muito direto como correspondente a um movimento periódico: o corpo em questão oscila de modo regular em torno de uma posição de equilíbrio. Seria o caso, por exemplo, de um corpo suspenso numa mola (cujo coeficiente de rigidez poderia ser negligenciado) e que teria sido deslocado de uma posição inicial de repouso em determinado momento.
As análises que podemos fazer mediante a teoria das funções toma um aspecto quantitativo, no sentido em que nos permitem chegar a determinações numéricas. No caso de um corpo oscilante, por exemplo, é possível prevermos qual será a posição do corpo relativamente a um referencial escolhido, num instante determinado, ou qual será sua velocidade nesse instante. Mas convém observar que as matemáticas fornecem outros recursos que não a teoria das funções, especialmente como mostraram os trabalhos de R. Thom, que a topologia fornece hoje um instrumento permitindo analisar de modo rigoroso os fenômenos ligados à noção de forma tais como a estabilidade estrutural ou as transformações morfológicas. Por conseguinte, a abordagem matemática não é necessariamente quantitativa; pode perfeitamente ser qualitativa, e não é de todo certo que a análise quantitativa conduza aos mais interessantes resultados. O essencial, no uso da representação matemática, de forma alguma é a introdução do cálculo, vale dizer, da possibilidade de determinações numéricas, mas, para retomarmos uma expressão kantiana, a «construção dos conceitos. A representação matemática faz corresponder àquilo que é apenas um predicado, no qual se dá globalmente uma determinação abstrata (como a mobilidade, a periodicidade, a simetria, etc), uma entidade formal cujo comportamento é conhecido ou, em todo caso, analisável, de modo detalhado, pela boa razão que essa entidade é construída segundo procedimentos determinados que lhe fornecem uma caracterização exata e exaustiva e que são, em princípio, decomponíveis em operações elementares cujas propriedades são perfeitamente claras.
Dito isto, um corpo de proposições não deve necessariamente ser associado a uma representação matemática para constituir uma teoria. Podemos simplesmente sustentar que a ciência tem tendência a recorrer, tanto quanto possível, a tal representação, pois ela fornece possibilidades de esquematização de uma enorme variedade, e presta-se melhor que qualquer outra a um controle exato das operações efetuadas. De qualquer modo, o emprego de uma teoria faz intervirem operações lógicas que, em si mesmas, são de caráter formal, e que eventualmente podemos representar por meio de algoritmos, exatamente como as construções propriamente matemáticas. (A distinção entre lógica e matemática coloca, aliás, um problema difícil. Não é mais possível sustentar, hoje em dia, a tese logicista, segundo a qual as matemáticas podem, em princípio, ser inteiramente reduzidas à lógica. Mas as teorias lógicas, exatamente como as teorias matemáticas, possuem em comum essa propriedade de poderem se exprimir no contexto daquilo que chamamos de os sistemas formais. Simplificando um pouco, poderíamos dizer que um sistema formal é um dispositivo permitindo engendrar, de modo regulado, um corpo de proposições, sem fazer intervirem as interpretações que, eventualmente, podem ser ligadas a tais proposições, portanto só as considerando segundo sua forma). A teoria deve, no mínimo, fornecer um quadro permitindo fazer raciocínios relativos ao domínio estudado, permitindo, por exemplo, fazer predições a respeito daquilo que podemos esperar nesta ou naquela circunstância. Portanto, ela é um meio de operações lógicas. E, nos casos mais favoráveis, apresenta seu próprio conteúdo sob uma forma que retira toda a sua inteligibilidade de sua natureza operatória.
Mas a teoria só pode prestar os serviços a que se encontra destinada, se for associada à experiência. Este termo não designa, no contexto da ciência, um simples contato com o mundo real, do tipo da percepção, mas uma intervenção de caráter sistemático no curso das coisas. No sentido inteiramente restrito do termo, uma experiência científica e um procedimento consistindo em fazer surgir um efeito determinado, detectável em circunstâncias que foram preparadas segundo um plano preciso e em função de certas hipóteses relativas aos efeitos possíveis. Um caso típico de experiência é o que consiste em fazer aparecer uma dependência funcional entre grandezas variáveis. Se temos razões para crer, em virtude de certas hipóteses, que certa grandeza B depende de uma grandeza A, num sistema dado que pode comportar, em geral, outras grandezas, e se desejamos precisar a natureza da relação entre essas grandezas A e B, damos um jeito para fazer variar de modo sistemático a grandeza A, embora mantendo fixas as outras grandezas ou, em todo caso, neutralizando-as, e observamos quais os valores tomados pela grandeza B para cada um dos valores tomados pela grandeza A. Então, podemos, baseados em dados numéricos recolhidos, encontrar por ajustamento a -função que melhor representa a dependência estudada.
Frequentemente se associa à ideia de experiência a de uma perturbação introduzida de modo controlado num sistema (como no caso que acaba de ser citado, onde se faz variar, à vontade, certa grandeza), e opõe-se, assim, a experiência à simples observação (onde não há perturbações do sistema estudado). Mas a caracterização que acaba de ser feita da experiência também é válida para a observação. Observar cientificamente um sistema não é registrar passivamente o que se passa no sistema, é montar um dispositivo graças ao qual será possível recolher informações de uma espécie dada, escolhida com discernimento, proveniente do sistema. (Assim observando o espectro da luz emitido por uma estrela, certamente não introduzimos diretamente uma modificação na estrela, mas encontramos um meio de fazer interagir uma parte — aliás, mínima — da luz emitida por essa estrela com um aparelho ótico relativamente complexo, cujas propriedades conhecemos, e que é de tal natureza, que poderemos interpretar sem ambiguidade os resultados da interação assim provocada).
O essencial, na experiência, evidentemente não é o registro dos dados, mas tudo o que o precede e tudo o que o segue. Antes de obter efeitos, é necessário efetuar o que chamamos de uma «preparação», vale dizer, em suma, submeter o sistema estudado a certas coerções, a principal consistindo em acoplá-lo a sistemas artificiais, cujo comportamento é perfeitamente conhecido, e sobre os quais é possível agir de modo perfeitamente eficaz, sabendo-se a cada momento qual o efeito sobre o estado do sistema, da manobra que se efetua. Isto é verdade, como acabamos de ver, mesmo no caso da simples observação, pois toda observação supõe um enquadramento prévio e a intervenção de instrumentos. (A rigor, podemos admitir a existência de observações sem instrumentos, mas, então, será preciso considerar que os órgãos dos sentidos, principalmente os olhos, desempenham o papel de instrumentos). Por outro lado, uma vez registrados os efeitos, é necessário, antes de se chegar a um resultado significativo, sintetizá-los, fazer a crítica da experiência de modo a que sejam eliminados, tanto quanto possível, o papel dos «erros de observação»; finalmente, é necessário interpretar os dados brutos obtidos (que se traduzirão sob a forma de curvas, de séries estatísticas, de quadros de correlação, etc.) de modo a que sejam extraídos os enunciados utilizáveis, na base das ideias teóricas de que dispomos para «compreender» o fenômeno estudado. Por exemplo, se a experiência foi inspirada por certa hipótese, é preciso que os dados sejam interpretados em termos que possam ser diretamente comparados a essa hipótese, por exemplo, sob a forma de um enunciado equivalente, com ela compatível ou incompatível. A démarche experimental, como a démarche teórica, deixa-se analisar em termos operatórios. Trata-se, aqui, de um lado, de operações materiais (montagem dos aparelhos de registro, preparação do sistema estudado, estabelecimento das interações, inscrição, automática ou não, dos dados), do outro, de operações de tipo intelectual fazendo intervirem diversos esquemas de raciocínio (eliminação dos erros, ajustamento de curvas aos dados obtidos, tratamento estatístico desses dados, démarches indutivas e dedutivas necessárias para se obter enunciados significativos, utilizáveis no nível de uma discussão teórica do alcance da experiência empreendida).
A démarche científica é feita de um incessante vaivém entre o momento teórico e o momento experimental. As hipóteses que se encontram na base de uma teoria aceita em determinado momento ou, mais frequentemente, certas proposições mais particulares que delas podemos deduzir, sugerem experiências a serem empreendidas com o objetivo de constatar, por exemplo, se tal efeito, esperado com base na teoria, produz-se efetivamente quando se realizam as condições desejadas. A experiência vem trazer, seja uma confirmação, seja um desmentido às hipóteses utilizadas. No caso de estas serem confirmadas, poderão continuar a ser utilizadas para sugerir novas experiências. Caso contrário, deverão ser mais ou menos profundamente modificadas. E é quase sempre a experiência — mas não somente ela, porque elementos de ordem propriamente teórica, como os princípios de invariância ou as considerações de analogia, também em jogo — que irá sugerir ideias novas permitindo a formulação de hipóteses mais adequadas. Aliás, este é apenas um esquema bastante simplificado. Em geral, o confronto entre teoria e experiência não faz intervir apenas uma teoria. A interpretação dos resultados brutos da experiência exige a intervenção de ideias teóricas por vezes muito variadas. Consequentemente, a com provação de uma teoria T, por meio de uma experiência E, só pode ser feita, em geral, graças à utilização concomitante de várias outras que, naturalmente, deverão ser consideradas como aceitas nesse momento.
De qualquer modo, podemos caracterizar a démarche científica, tanto do lado da elaboração, da utilização e da comprovação das teorias, quanto do lado dos procedimentos experimentais, pela ideia de operação. É essencial que caracterizemos bem essa ideia, a fim de evidenciarmos o que há de próprio ao sabor científico. Um primeiro traço, muito evidente, da operação, é que ela constitui uma ação de transformação. O esquema mais simples de uma operação nos é fornecido, pelo modo de ação daquilo que chamamos de um «operador» em matemáticas ou em lógicas. Seja A um operador: este objeto é caracterizado pelo modo como pode transformar uma entidade de determinado tipo numa outra entidade de tipo bem preciso. Por exemplo, o operador de inversão I, em lógica, é caracterizado pelo modo como transforma um par de objetos (de qualquer natureza), dados numa certa ordem, em outro par formado pelos mesmos objetos, mas, desta vez dados na ordem inversa da precedente: I (ab) = (ba).
Uma segunda característica da operação é que ela é de natureza formal. Isto significa que as propriedades que a definem são independentes da natureza particular dos objetos aos quais ela se aplica. É a forma da ação que conta, não sua materialidade. Os objetos que intervém na definição de um operador não desempenham nenhum papel próprio; aí encontram-se presentes simplesmente para indicar como o operador pode ser aplicado. De resto, podemos muito bem observá-los por meio de variáveis, cuja significação permanece inteiramente indeterminada. Assim, podemos definir o operador de inversão como se segue: I (xy) = (yx). A única coisa que importa é que se trata de um par de objetos e que há inversão da ordem. Poderemos resumir isso dizendo que um operador é definido unicamente por meio de suas propriedades formais.
Cima terceira característica da operação é que ela é tematizável, isto é, pode ser constituída em objeto e ser, assim, eventualmente, subsumida sob uma operação de nível elevado. Todo operador pode, eventualmente, servir de argumento a um operador de nível apropriado. Assim, o operador de inversão, acima evocado, poderia ser tomado no campo de ação de um operador de combinação associando, segundo uma ordem determinada, dois ou vários operadores. De modo geral, não há, no domínio das operações, nível supremo que seria constituído por operações de nível máximo. Justamente por ser de natureza formal, a operação é uma entidade objetivável, podendo sempre ser, por sua vez, submetida a outras operações.
Uma quarta propriedade da operação é que ela é generalizável. Uma operação pode ser representada, como vimos, por um esquema abstrato que indica como ela produz seu efeito. Ora, tal esquema é, em princípio, sempre susceptível de ser retomado num esquema mais geral, correspondendo a esta ou àquela propriedade formal, característica da operação em questão. Por exemplo, as operações de aritmética de adição e de multiplicação possuem uma extraordinária propriedade, que é a recursividade. Sempre podemos realizar essas operações procedendo por etapas e aplicando a cada etapa apenas uma operação totalmente elementar (por exemplo, podemos acrescentar 3 a 2 somando três vezes 1 ao número 2). Ora, muitas operações possuem essa mesma propriedade. É possível caracterizá-la por meio de um esquema totalmente geral, que indica como funciona uma operação recursiva e que evidencia, assim, o que há de essencial na ideia de um procedimento que se faz «passo a passo».
Enfim, um quinto traço da operação é que uma operação jamais é uma entidade isolada, mas se inscreve num feixe operatório, feixe que, aliás, pode estender-se sempre mais, à medida que são efetuadas novas generalizações. Assim, o que torna as operações solidárias umas das outras são suas propriedades formais. Na medida em que conseguimos elaborar a teoria das propriedades formais de um grupo de operações semelhantes (como, por exemplo, o das operações recursivas), evidenciamos de modo objetivo o que essas operações possuem em comum e colocamo-nos em situação de compreender por que elas aparecem como semelhantes. Ora, como, em princípio, a generalização pode prosseguir indefinidamente, a explicação do feixe no qual se inscrevem, de fato, as diversas operações possíveis pode, em princípio, estender-se a domínios cada vez mais vastos desse feixe. Em última instância, deveríamos poder considerar uma caracterização de todo o domínio operatório como tal. Mas esta não passa, provavelmente, de uma ideia-limite, porque uma caracterização da forma deveria colocar em jogo certas operações. Estas seriam tematizáveis e poderiam, pois, por sua vez, ser caracterizadas por esquemas operatórios de ordem superior, e assim por diante. Para que cheguemos a um fecho, seria preciso que pudéssemos caracterizar o domínio operatório servindo-nos apenas de operações já pertencentes a esse domínio. Todavia, levando em conta o que sabemos sobre as possibilidades de representação num sistema formal das propriedades desse sistema, é muito pouco provável que isso seja possível. Portanto, somos levados a representar o domínio do operatório enquanto tal como uma espécie de horizonte de co-pertença no qual se inscrevem os feixes parciais que foram efetivamente tematizados e representados formalmente num nível razoável de generalidade (como esse feixe parcial constituído pelas operações recursivas).
No entanto, a realidade não se presta, de imediato, a tal modo de apreensão. Não podemos passar de modo direto da percepção e do comportamento prático espontâneo que lhe é associado à construção teórica e à prática experimental. Torna-se necessário um intermediário, que é o modelo. Sem entrarmos aqui nos problemas provavelmente complicados que se encontram ligados à intervenção dos modelos em ciência, poderemos dizer que um modelo é uma construção abstrata que julgamos capaz de fornecer uma aproximação esquemática e idealizada do domínio concreto de que nos ocupamos, e cuja estrutura é suficientemente simples para poder ser descrita através dos recursos conceituais de que dispomos. O tipo paradigmático do modelo é o sistema: é o tipo de modelo, em todo caso, que melhor se presta a uma análise em termos matemáticos (não necessariamente, aliás, sob a forma quantitativa, como já salientamos). (Um sistema é uma entidade ideal que, eventualmente, possui certa estrutura interna, que pode ser caracterizada por certas propriedades bem definidas, em geral variáveis no decorrer do tempo, e que é susceptível de encontrar-se, em cada momento, num estado em princípio inteiramente analisável. O caso mais simples seria o de um sistema sem estrutura interna (ou, em todo caso, cuja estrutura não seria analisada). Então, ele é caracterizado por suas propriedades globais (assim, um gás pode ser caracterizado por sua temperatura e por sua pressão). Essas propriedades, em geral, não são fixas; podem ser encontradas em diversas fases ou, no caso de serem quantificáveis (isto é, associadas a uma função de medida), assumir diferentes valores numéricos. O estado do sistema num determinado momento é, então, fixado pelas fases nas quais se encontram suas propriedades características, ou pelos valores numéricos que elas assumem nesse momento. Se o sistema possui uma estrutura interna, em todo caso, se levamos em conta sua estrutura, o consideramos como decomponível num certo número de componentes, que são assimiláveis a subsistemas e, por conseguinte, são julgados possuir, em cada momento, um estado determinado. Tais componentes encontram-se ligados entre si por certas interações, e é o conjunto dessas ligações que constitui a estrutura do sistema. Esta pode, evidentemente, mudar no decorrer do tempo, caso se modifiquem as interações entre componentes. O estado do sistema, num momento dado, passa a ser determinado ao mesmo tempo pelos estados dos subsistemas componentes nesse momento e pela «g forma das ligações entre componentes nesse mesmo momento.
O objetivo que nos propomos, no estudo de um sistema, é o de determinar como ele evolui no decurso do tempo. Para tanto, precisamos invocar uma lei de evolução. Na maioria das vezes, tal lei é expressa sob a forma diferencial: indica como o sistema passa do estado no qual se encontra num determinado momento ao estado no qual se encontra num momento infinitamente vizinho do precedente. Quando dispomos de uma lei diferencial, podemos, em princípio, a partir de um estado dado, predizer e retrodizer todos os estados do sistema em quaisquer momentos. Obtemos, pois, assim, um conhecimento em princípio completo de toda a história (acessível) do sistema.
Um exemplo muito simples é fornecido pelo caso, acima considerado, de um corpo suspenso numa mola. O modelo construído para analisar esse tipo de dispositivo pode ser descrito da seguinte maneira: um ponto material, quer dizer, uma entidade dotada de uma massa constante e reduzida a um ponto é submetido a uma força de indicação diretamente proporcional à sua distância relativamente a um referencial fixo (Essa distância corresponde ao alongamento ou ao encurtamento da mola). O estado desse sistema, num determinado momento, é caracterizado por sua posição e por sua velocidade nesse momento. A lei de evolução é pura e simplesmente a lei fundamental da dinâmica: a força que se exerce sobre o sistema é igual ao produto da massa pela aceleração. Como esta é dada pela segunda derivada, relativamente ao tempo, da distância ao referencial fixo, temos uma lei diferencial. A partir desta, podemos facilmente estabelecer que o movimento do sistema é periódico e podemos predizer e retrodizer todos os seus estados.
Observemos que esse modelo é uma idealização. Na realidade, o movimento de um corpo suspenso numa mola é progressivamente amortecido, enquanto que o movimento do modelo não o é. No entanto, podemos construir um modelo mais próximo da realidade introduzindo uma força mais complicada contendo um fator de dissipação.
A teoria é, na realidade, uma descrição do modelo. As proposições hipotéticas que ela contém caracterizam, quando ; possível, a estrutura do modelo ou, em todo caso, fornecem sua lei de evolução. A análise completa de uma teoria deve, pois, necessariamente, comportar o dado do modelo subjacente, e os termos da teoria devem ser interpretados (no sentido semântico da palavra) em função das características do modelo. Quando falamos de hipótese, visamos, pois, ao mesmo tempo, as proposições de partida da teoria e o modelo associado (Seria preciso levar em conta, aqui, o fato de uma teoria poder ser, em geral, associada a vários modelos, até mesmo a um grande número de modelos; de fato, porém, no momento em que elaboramos uma teoria, somos guiados por um modelo bem determinado, previamente construído). O modelo é um objeto complexo, de natureza ideal, que é considerado (pelo menos a titulo provisório) como uma representação esquemática aceitável do tipo de objeto estudado. A teoria é um corpo de proposições que descreve as propriedades do modelo e permite fazer raciocínios a seu respeito, por exemplo, predizer seu comportamento futuro ou prever como ele reagirá caso modifiquemos sua estrutura desta ou daquela maneira.
É somente por intermédio do modelo que a teoria se refere à experiência que, esta sim, realiza-se, não num domínio ideal, mas na realidade concreta. O que significa que, na experiência, a realidade estudada é tratada somente segundo os aspectos por onde ela se presta à interpretação que dela fornece ó modelo. Em outras palavras, há inevitavelmente, no modo de proceder da ciência, certa «redução» que é operada relativamente ao mundo da percepção e dos comportamentos vividos. Essa redução se efetua concretamente através da «preparação» que constitui a fase inicial de um processo experimental.
Tomemos o caso de uma simples observação. Quando fotografamos o espectro de uma estrela, só retiramos da estrela apenas a propriedade de ser emissora de luz, e não consideramos a luz emitida, ou recebida, senão sob um aspecto muito particular, a saber, enquanto é susceptível de entrar em interação com um aparelho ótico comportando, por exemplo, um telescópio, um prisma e uma placa fotográfica. Esse modo de considerar a luz emitida pela estrela corresponde a certo modelo que elaboramos do comportamento dos raios luminosos em diversos meios.
A experiência é uma forma de ação, mas de uma ação que de forma alguma é «natural», que de forma alguma é comandada — pelo menos de modo direto — por fins vitais ou por montagens sensório-motrizes inatas ou adquiridas no decorrer da infância. É uma ação construída, que obedece às sugestões de uma modelização prévia e deixa-se guiar, em cada uma de suas etapas, pelas indicações da teoria permitindo-nos raciocinar sobre o modelo inspirador. Naturalmente, ocorre que a experiência não forneça o tipo de resultados que dela podemos esperar ou, mesmo, não possa ser levada adiante, e que a realidade se mostre, em suma, rebelde ao “projeto ao qual a submetemos. O que significa que o modelo utilizado é inadequado. Deve, então, ser modificado parcial ou totalmente, na maioria das vezes, aliás, no sentido de uma complicação maior.
O ponto essencial, em tudo isso, é que a abordagem científica da realidade é comandada pelo processo da modelização. Como acabamos de ver, é por intermédio do modelo que a teoria encontra a experiência, que sugere as intervenções úteis que, eventualmente, possibilitarão manter ou eliminar esta ou aquela hipótese e, por conseguinte, fazer progredir o conhecimento. Mas também é por intermédio do modelo que, em sentido inverso, os resultados experimentais poderão ser interpretados nos termos da teoria estudada, por exemplo, em vista da comprovação dessa teoria. Ora, a construção de um modelo é comandada por certa pré-compreensão da realidade estudada “que, pelo menos, age de modo implícito na escolha das propriedades características, na maneira de descrever a estrutura, no modo de conceber as interações, na ideia que nos fazemos da lei de evolução. Mais profundamente, é certo tipo a priori de inteligibilidade que guia a démarche mesma da modelização. O modelo não é uma imagem simplificada da realidade percebida, mas uma construção que repousa sobre certos a-prioris; e mesmo que ela seja parcialmente sugerida por informações prévias sobre o comportamento dos objetos reais, reconstitui este último a partir de suas próprias . categorias. Isto é particularmente visível no caso em que o modelo toma a forma do sistema. Há, na base da ideia de sistema, uma concepção analítica, funcionalista e, em certo sentido, determinista do funcionamento da realidade. Analítica, na medida em que consideramos o sistema decomponível (eventualmente) em subsistema e, em todo caso, caracterizável por propriedades bem definidas e perfeitamente distintas, elas mesmas susceptíveis de se encontrarem em fases ou de assumirem valores perfeitamente isoláveis. Funcionalista, na medida em que consideramos que as ligações entre as partes do sistema (no caso em que sua estrutura é analisada) podem ser descritas como interações funcionais, e em que as propriedades características encontram-se, elas mesmas, ligadas por dependências funcionais. Determinista, enfim, na medida em que consideramos que os estados encontram-se ligados no tempo de modo perfeitamente determinado, quer essa ligação possa ser expressa por relações que se prestem a determinações numéricas, quer possa apenas ser analisada em termos qualitativos, suficientes para caracterizar modificações morfológicas significativas. Observemos que isso engloba o caso dos formalismos previsionais de tipo estatístico. Quando um sistema é de tal natureza que não se presta a uma determinação completa de todas as grandezas caracterizando o estado, basta que se reformule adequadamente a noção de estado para que o esquema determinista permaneça válido: o estado será, nesse caso, definido como contendo o conjunto máximo de informações acessíveis a propósito do sistema; desse conjunto, em geral, não será possível retirar valores únicos para as propriedades do sistema, mas somente valores possíveis, com a indicação das probabilidades correspondentes.
Há, na pré-compreensão modelizante, uma verdadeira ontologia subjacente, vale dizer, um sistema de interpretação da realidade que a explica em termos de entidades de espécies dadas, caracterizadas de modo bem preciso por suas propriedades intrínsecas e por suas inter-relações. Essa própria ontologia muito provavelmente é inspirada, em grande parte, pelas ontologias formais que encontramos, seja na base das teorias matemáticas, seja na base dos modelos utilizados em lógica para estudar as propriedades metateóricas dos sistemas dedutivos. O tipo mais corrente e mais simples de ontologia formal é o que encontramos na teoria dos conjuntos. Intuitivamente, um conjunto é uma coleção de objetos indeterminados, caracterizados em termos de uma relação de pertença: há um sentido em dizer que um objeto pertence a um conjunto ou não lhe pertence. Dado um conjunto, podemos introduzir nele propriedades e relações sem sairmos da ontologia de base: uma propriedade será assimilada a um subconjunto do conjunto considerado (o subconjunto formado dos objetos que possuem essa propriedade) e uma relação de n termos a um subconjunto do conjunto dos ênuplas de objetos do conjunto considerado (o subconjunto formado de todos os ênuplas de objetos que possuem entre si essa relação). Para termos uma descrição completa da ontologia conjuntista, devemos, evidentemente, especificar os procedimentos graças aos quais podemos construir conjuntos (por exemplo, formação do conjunto das partes de um conjunto dado ou formação do conjunto dos pares ordenados de objetos pertencendo a um conjunto dado), ou então, especificar axiomaticamente os caracteres que pertencem propriamente àquilo que poderíamos chamar de um universo dos conjuntos. Temos ai o objeto da teoria dos conjuntos, quer seja ela apresentada axiomaticamente quer não. Na base da ontologia conjuntista, torna-se possível elaborarmos ontologias mais complexas, introduzindo, em conjuntos previamente construídos, estruturas apropriadas caracterizadas por suas propriedades formais (estruturas de ordem, de vizinhança, de combinação, etc). É possível uma concepção mais abstrata da ontologia formal, seja na linha da teoria das categorias em matemáticas (onde a noção fundamental torna-se a de correspondência), seja na linha da teoria dos combinadores em lógica (onde a noção fundamental torna-se a de operador). Nos dois casos, coisa curiosa, orientamo-nos para uma concepção onde a noção intuitiva de «domínio circunscrito de entidade» é substituída por uma noção de natureza francamente operatória, em relação à qual as entidades sobre as quais operamos não possuem mais importância real.
Em todo caso, podemos levantar a seguinte hipótese: é na medida em que a modelização tenta inspirar-se nas ontologias formais que ela se presta a uma representação matemática, as construções matemáticas sendo diretamente fundadas sobre essas ontologias. Por outro lado, é na medida em que as ações construídas, que se encontram na base da experimentação, deixam-se organizar segundo as prescrições de uma ontologia formal, que elas se prestam a uma sistematização em termos de modelos. Ora, podemos pensar que, quanto mais a ontologia subjacente é de caráter operatório, mais ela fornece um quadro de esquematização eficaz para a ação. Num certo sentido, a ação científica é inteiramente ditada pelos modelos utilizados e pela ontologia subjacente a tais modelos, de tal forma que apenas encontramos, no nível dos procedimentos efetivos de intervenção, o que já estava, pelo menos implicitamente, presente no modelo. Desse ponto de vista, é a modelização que é determinante. Mas num outro sentido, talvez precisemos dizer que é a própria ação que torna possível o procedimento de modelização e que sugere, mesmo, sua ontologia. Talvez seja na estrutura da própria ação, mais exatamente, na estrutura das interações entre o corpo humano e os dispositivos materiais (naturais ou artificiais) aos quais ele pode ser acoplado, que se encontra inscrita a possibilidade da decupagem analítica, da interdependência funcional e da ligação determinista dos estados, cujo papel vimos na pré-compreensão modelizante. De qualquer modo, o que é característico da démarche científica é justamente esse fenômeno extraordinário de co-adaptação entre, de um lado, um sistema de representação fazendo uso, em definitivo, de uma ontologia interpretativa de tendência fortemente formalista (quando não o é de modo franco e exclusivo) e, do outro, um sistema de ação que se constrói segundo sequências operatórias susceptíveis de um controle preciso e de uma organização inteiramente controlável.
Essa caracterização, aliás, muito sumária do saber cientifico, permite-nos explicar como e por que esse saber é essencialmente de tipo evolutivo. Bem entendido, uma análise completa da dinâmica da ciência não pode ignorar que a ciência não é uma prática isolada, mas encontra-se em interação com todos os outros componentes da vida social. Por conseguinte, devemos levar em conta, no estudo da evolução da ciência, de um lado, os fatores de ordem interna, do outro, as interações com as outras formas da ação humana. Deter-nos-emos, aqui, unicamente nos fatores internos, pela excelente razão que as interações com as outras práticas serão consideradas nos capítulos seguintes. O que acima foi dito do papel antecipador das teorias e do movimento de vaivém entre teoria e experiência já indica que a ciência é essencialmente um processo, não cumulativo, pois comporta momentos de reorganização (quando há modificação fundamental das hipóteses de base), e que se organiza em vista de possibilitar que esse processo que a define seja incessantemente relançado.
Muito esquematicamente, poderíamos analisar o crescimento da ciência em processos elementares que se estruturam do seguinte modo. No ponto de partida, formulamos um problema, bem entendido, a partir de informações já disponíveis e das concepções que são consideradas como admissíveis nesse momento. A fim de resolver o problema, formulamos uma hipótese ou, de preferência, várias hipóteses entre as quais trata-se de operar uma seleção. Essas hipóteses são de tal natureza que podem dar lugar a démarches concretas graças às quais será possível comprová-las. Assim, a hipótese de que havíamos partido poderá ser aceita ou rejeitada; e se há várias, ou serão todas rejeitadas, ou conservaremos a que nos parecer mais adequada. Encontrar-nos-emos, então, numa nova situação, onde um elemento novo terá sido acrescentado à situação inicial e, eventualmente, permitirá que esta seja completamente reinterpretada. A partir daí, pode ser colocado um novo problema, e o ciclo recomeça. O que devemos observar é que, em cada uma das etapas desse processo elementar, a teoria desempenha um papel prioritário: é ela que sugere o problema, é no quadro que ela fornece que podemos elaborar o plano das experiências de controle a ser^ empreendido, e é a ela, enfim, que retornamos para interpretar os resultados dessas experiências.
Por isso, não é de se estranhar que o problema central da dinâmica (interna) da ciência seja o da transformação das teorias. O princípio é simples: transformamos uma teoria modificando as hipóteses sobre as quais ela se funda, e somos forçados a tal modificação quando os procedimentos de comprovação implicam a rejeição das hipóteses previamente admitidas. Mas a introdução de novas hipóteses não é feita de qualquer maneira. Como já sugerimos, ela é guiada por certos princípios de ordem metateórica que governam a elaboração das teorias e suas transformações. Tomando as coisas de modo muito global, poderíamos dizer que esses princípios, em seu conjunto, desempenham o papel de um critério de otimização, um conjunto teórico, representando o estado de uma disciplina científica num determinado momento, pode * ser assimilado a um sistema (abstrato) que é submetido a % coerções internas (tais como a não-contradição, a simplicidade máxima, a invariância relativamente a certas leis de transformação, etc.) e que é acoplado a um meio ambiente constituído por certo número de domínios experimentais (ou, se preferirmos, por sistemas de ação correspondente a procedimentos experimentais). Essa acoplagem deve ser tal, que sejam preenchidas certas condições de adequação: é preciso que os resultados experimentais sejam compatíveis com as proposições do sistema, que essas permitam explicar aquilo que é observado e que possam, igualmente, servir de guia na exploração dos domínios experimentais. Se não são mais preenchidas as condições de adequação, deve ser remanejado o sistema, de modo a satisfazer às coerções internas. Estas agem á maneira de normas impostas ao sistema. O princípio de otimização consistirá em impor o remanejamento que poderá responder às condições de adequação, embora respeitando as coerções internas; e isto, do modo mais econômico possível, em termos de meios conceituais e algorítmicos.
Contudo, isso é ainda insuficiente para caracterizar a dinâmica interna da ciência. Porque um princípio de otimização pode explicar apenas a boa adaptação do sistema relativamente a domínios de experimentação dados, correspondente às possibilidades de representação e de antecipação do próprio sistema. Ora, ainda há mais: o fato é que a ciência tende a elaborar sistemas de grau de generalidade cada vez maior, capazes, por conseguinte, de controlar domínios de experimentação cada vez mais extensos. O critério de otimização só pode assegurar equilíbrios provisórios. Mas um sistema científico não é uma estrutura inerte. Mesmo quando se estabelece em estado de equilíbrio, só existe concretamente sob a forma de um funcionamento, ao mesmo tempo no nível da teoria e no nível da experimentação. Os desenvolvimentos teóricos levantam questões que sugerem novas experiências a serem empreendidas: por um lado, os resultados experimentais, por outro, as dificuldades internas, que podem surgir na teoria, levantam novos problemas teóricos. Assim, as retroações que se estabelecem (entre experiência e teoria, e no interior mesmo da teoria) conduzem a extensões teóricas que se caracterizam por um grau mais elevado de generalidade e por um poder reforçado de unificação. É muito provável que o devir da ciência possa ser considerado como um caso particular de um esquema geral que encontramos em todos os domínios onde há formação e evolução de sistemas complexos: o esquema da auto-organização. Em favor de desequilíbrios, forma-se sistemas mais complexos e mais organizados.
Sem entrarmos, aqui, na análise detalhada desse processo de auto-organização, tal como ele se manifesta no caso dos sistemas científicos, poderemos dizer, em síntese, que a evolução da ciência tende a produzir sistemas cada vez mais complexos e cada vez mais integrados (vale dizer, caracterizados por uma interdependência cada vez mais estreita entre seus diferentes constituintes). Ademais, convém observar que os diferentes sistemas científicos existentes, correspondendo às diversas grandes «disciplinas» atualmente conhecidas, tendem a agir cada vez mais fortemente umas sobre as outras. Não somente as ciências formais e as ciências empíricas influenciam-se reciprocamente, mas as ciências empíricas entram cada vez mais em contato umas com as outras, seja tomando mutuamente de empréstimo diversos esquemas de análise e de explicação, seja suscitando problemas que dependem de teorias gerais utilizáveis nos mais variados campos de aplicação (tais como a teoria dos sistemas, a teoria dos algoritmos, a teoria dos processos estocásticos, etc). Sem dúvida, não podemos falar de uma unificação no sentido da formação progressiva de um corpo teórico único, nem mesmo no sentido de uma unificação sintática tal como fora considerada pelo neopositivismo em seus inícios. Mas as interdependências e retroações- diversas entre os sistemas científicos tendem a identificar-se de tal forma que podemos falar, não somente de uma integração crescente no interior desses sistemas, mas também de uma integração crescente do domínio formado pelo conjunto desses sistemas, vale dizer, do domínio da atividade científica em geral. Portanto, ao que parece, há um efeito de auto-organização que se sobrepõe aos processos de auto-organização de que os diferentes sistemas particulares são a sede. Isto sugere a seguinte hipótese: no interior das sociedades contemporâneas, a ciência (considerada em seu conjunto) teria tendência, sob a ação de seu próprio funcionamento interno, a constituir-se num vasto sistema, ele mesmo formado de subsistemas em interação, evoluindo para formas cada ; vez mais complexas e integradas, e, ao mesmo tempo, cada vez mais autônomos.
Bem entendido, isto de forma alguma quer dizer que esse sistema poderia ser considerado como algo isolado. Pelo contrário, só pode funcionar na medida em que se encontra em integração com outros sistemas (indivíduos humanos e outros sistemas sócio-culturais). A autonomia em questão é apenas relativa, não passa de uma autonomia de funcionamento. O crescimento de autonomia do domínio científico significa que esse domínio possui cada vez mais os recursos necessários para assegurar seu próprio funcionamento (e, pelo fato mesmo, suas interações com os outros sistemas) e para garantir seu próprio crescimento. O desenvolvimento da ciência seria, pois, cada vez menos, dependente de circunstâncias exteriores, contingentes, relativamente incontroláveís, e cada vez mais ligado a fatores internos (de equilibração, de perturbação, de reequilibração, de auto-organização) que, por não se encontrarem completamente subtraídos à intervenção do aleatório, nem por isso deixam de ser, em grande parte, controláveis e susceptíveis de avaliação. Se é assim, podemos considerar que o desenvolvimento da ciência faz-se de modo cada vez mais consciente, refletido, concertado, segundo um esquema que se torna, à maneira das démarches que ele organiza, cada vez mais racional. A importância crescente que adquirem as considerações epistemológicas nas démarches científicas, não sob a forma de intervenções externas, de inspiração filosófica, mas sob a forma de regulações internas, de certa maneira exigidas pela lógica mesmo dessas démarches, mostra o quanto o desenvolvimento da ciência é cada vez mais um empreendimento auto-controlado e, pelo fato mesmo, auto-finalizado. O que não quer dizer, aliás, que ele seja previsível. Naturalmente, podemos fazer conjecturas, porém, na evolução dos sistemas muito complexos, as interações são de tal forma entrelaçadas, e as possibilidades tão numerosas, que já não podemos mais estabelecer previsões. O controle reflexivo das démarches é algo inteiramente distinto da aplicação de um esquema previsional, e um processo de auto-finalização é algo inteiramente diferente de uma evolução determinista.