Jean Ladrière – A natureza das matemáticas e seu nível de realidade

LADRIÈRE, Jean. Filosofia e Praxis Científica

O problema da natureza das matemáticas pode, e sem dúvida deve ser abordado em diferentes perspectivas. Há a perspectiva histórica, que é esclarecedora, pois nos permite apreender as matemáticas em seu dinamismo interno e assim nos mostra que a realidade matemática é uma realidade em devir. Há a perspectiva fundacional, que está ligada a preocupações de natureza lógica, ao cuidado com o rigor, ao projeto que visa destacar os conceitos fundamentais, reconstituir os procedimentos demonstrativos, fornecer-lhe justificativas e dar uma forma precisa aos critérios de existência. Há a perspectiva das aplicações, que permite situar as matemáticas em sua relação com o mundo real e com o domínio das ações humanas.

Para os nossos objetivos, será suficiente reter a perspectiva do devir e a das aplicações, pois os problemas de coerência interna, de organização, de estrutura conceptual só temi uma incidência indireta e derivada sobre nossa problemática. Essas duas perspectivas colocam-nos em presença de duas características fundamentais das matemáticas, que revelam, ambas, algo de sua natureza, e as quais toda tentativa de compreensão das matemáticas deve necessariamente estar em condições de explicar.

Primeiramente, há o devir. O que temos em mente aqui não são de modo algum as circunstâncias exteriores que marcaram o desenvolvimento histórico das matemáticas, o jogo das influências e das analogias, o peso dos problemas, o papel das personalidades criadoras, mas unicamente o aspecto interno do desenvolvimento. Certamente, podemos descobrir a origem da especulação matemática na percepção e na ação. E, de outro lado, há uma ligação evidente entre o desenvolvimento das teorias matemáticas e o aparecimento dos problemas levantados pelas ciências empíricas ou impostos pela amplificação dos sistemas de ação. Mas o verdadeiro devir das matemáticas é endógeno. Ele corresponde a uma exigência interna de superação, que está inscrita em cada momento teórico e se manifesta nas operações de tematização, de abstração, de generalização, de síntese, que marcam a gênese das novas teorias. Os atos criadores limitam-se a reconhecer essa exigência e lhe dão os meios de se tornar operante. Poderíamos, pois, dizer que as matemáticas se produzem a si mesmas. Poderíamos mesmo sugerir, indo um pouco mais longe, que elas são, num sentido, o processo de sua auto-produção. Havia um pouco dessa ideia no intuicionismo, na medida em que este dirigia sua atenção essencialmente para os procedimentos de engendramento. Mas o intuicionismo deu a essa ideia uma versão subjetivista, ao ligar a produção das entidades matemáticas à atividade de um sujeito. Para o intuicionismo, as matemáticas são apenas a tematização, aliás sempre provisória, da atividade do pensamento, sendo> que esta é considerada em sua estrutura dinâmica formal, na medida em que se desdobra, num meio de livre criação, a partir do acontecimento originário da explosão sintetizante da unidade. É preciso reintegrar a atividade produtora no interior das próprias matemáticas. Se ficarmos atentos para esse aspecto das matemáticas, perceberemos que não é possível caracterizá-las como a descrição de um domínio de objetos previamente colocados diante do olhar do espírito. Está certo que há entidades matemáticas, existindo por sua própria conta num campo específico de existência, mas elas são engendradas e é seu engendramento que constitui o momento decisivo.

De outra parte, há a relação dos seres matemáticos com a realidade empírica, é preciso considerá-la inicialmente como um fato, sem se preocupar com as interpretações eventuais, nem, a fortiori, com as motivações que puderam atuar historicamente para sugerir a utilização das matemáticas no estudo do real. Essas motivações podem ser inteiramente desprovidas de pertinência. O que é preciso reter é a fecundidade do instrumento matemático, isto é, seu poder explicativo, preditivo e antecipador. Essa fecundidade faz pressentir que, entre o real matemático e o real empírico, deve haver uma correspondência secreta. Como explicá-la: pela arquitetura do mundo, pelas leis do conhecimento ou pela estrutura da ação? Cada um desses três pontos de vista tem sua justificativa, sob certo aspecto. Há como que uma harmonia preestabelecida entre as matemáticas e a realidade concreta, e essa harmonia vem apenas tornar manifesto um caráter intrínseco do real, o modo matemático de sua organização. De outro ponto de vista, as matemáticas poderiam exprimir condições a priori do conhecimento, condições que devem necessariamente intervir na constituição de todo objeto de conhecimento. E, finalmente, elas poderiam representar as diferentes modalidades possíveis de nossas manipulações, desenhando assim os esquemas de nossas ações possíveis. Uma interpretação adequada deveria explicar esses diferentes aspectos ao mesmo tempo.

Quais são as sugestões de que dispomos? Deixando aqui de lado as controvérsias propriamente filosóficas sobre a parcela de verdade que pode haver nas diferentes variedades do platonismo, do nominalismo ou do construtivismo, poderíamos contentar-nos em evocar dois conceitos que nos são fornecidos pelo próprio saber lógico-matemático: o conceito de sistema formal e o conceito de estrutura. Ambos servem, cada um à sua maneira, para articular uma visão das matemáticas que provém do que se convencionou chamar de ponto de vista formalista.

Podemos caracterizar as matemáticas dizendo que elas constituem a ciência dos sistemas formais. Um sistema formal é uma figura abstrata que consiste em possibilidades de dedução. Mais exatamente, é um dispositivo que permite engendrar uma certa classe, geralmente infinita, de proposições, no quadro de uma linguagem previamente especificada. As regras de formação da linguagem-quadro permitem formar expressões a partir de um alfabeto e, em particular, formar expressões que têm o estatuto de proposições, isto é, que são susceptíveis, num sentido intuitivo, de exprimir estados de coisas e, por conseguinte, de serem verdadeiras ou falsas. O sistema formal proporciona os meios1 para isolar, dentre as proposições da linguagem, as que formarão a classe das proposições verdadeiras. Se tomarmos a noção de sistema formal no sentido clássico, o procedimento de engendramento das proposições verdadeiras deverá ter um caráter efetivo. (Por exemplo, no caso de um sistema formulado sob forma axiomática, devemos poder reconhecer efetivamente se uma proposição dada é um axioma e se uma série de proposições dada é um caso de aplicação de uma regra de dedução.)

Para ser compreensível concretamente, um sistema formal deve ser apresentado de uma certa maneira. Mais exatamente, devemos dispor de nomes designando as entidades formais por meio das quais são constituídas as proposições do sistema. Por outro lado, um sistema formal pode dar lugar a um certo número de representações: pode-se coordenar às entidades formais, que desempenham o papel de objetos no sistema, entidades de uma espécie dada, concretas ou ideais. As proposições puramente formais do sistema convertem-se então em proposições que enunciam certas relações entre essas entidades. Finalmente, um sistema formal pode dar lugar a diversas interpretações: pode-se coordenar às proposições da linguagem-quadro proposições versando sobre um universo definido (um conjunto dado de indivíduos de uma espécie determinada), e isso de tal maneira que às proposições verdadeiras do sistema, isto é, aos teoremas, correspondam proposições verdadeiras para o universo considerado. Segundo a concepção defendida por H. Curry, um sistema formal é a abstração de suas apresentações, de suas representações e de suas interpretações. Em outras palavras, é o conjunto das possibilidades que se encontram por trás de todas as exemplificações que se poderão dar, quer simplesmente sob a forma de um sistema de nomes ou de inscrições, quer sob a forma de objetos, quer sob a forma de um sistema de enunciados. Ele é, pois, uma realidade puramente abstrata, que no entanto só se pode realmente apreender através da variedade de suas apresentações, de suas representações e de suas interpretações, isto é, através do campo dos possíveis, do qual ela constitui como que a lei geral.

Pode-se assim caracterizar as matemáticas como o estudo das estruturas. Uma estrutura é também uma realidade abstrata, que se pode descrever numa linguagem conjuntista, utilizando, à maneira de Bourbaki, uma escala de conjuntos. Um dos mais simples exemplos é oferecido pela estrutura de ordem, que se pode definir a partir da relação de ordem. Uma estrutura de ordem é o tipo de estrutura que se pode impor a um conjunto pela introdução de urna relação de ordem entre os elementos desse conjunto. Podemos representar uma relação de ordem, definida sobre um certo conjunto, como uma certa parte do produto cartesiano desse conjunto consigo mesmo e, portanto, como um certo elemento do conjunto das partes desse produto cartesiano. Mas pouco importa, no fundo, a linguagem utilizada. O ponto essencial é que uma estrutura é apresentada como relativa a um certo suporte, mas a um suporte que fica de certa maneira indeterminado, que, em todo caso, não intervém enquanto tal na definição da própria estrutura. Assim, presumimos que a relação de ordem ordene os elementos de um1 certo conjunto, mas a natureza desse conjunto não desempenha nenhum papel na ideia da ordem mesma. Correlativamente, uma estrutura de ordem, enquanto estrutura, tem seu sentido, abstração feita do conjunto que ela organiza. A independência da estrutura relativamente a seu suporte mostra-se muito bem, aliás, no* caso das estruturas multivalentes, que podem ser realizadas sobre suportes de cardinalidades diferentes.

Encontramos, pois, dos dois lados, a mesma ideia: a abstração relativamente às realizações. De resto, a ligação entre as duas noções é muito estreita, já que uma estrutura deve ser caracterizada por axiomas e já que a teoria de uma estrutura, isto é, o conjunto das proposições verdadeiras da estrutura, constitui um sistema formal. A única diferença é que a abordagem através do sistema formal dá ênfase aos aspectos linguísticos e lógicos do procedimento, ao passo que a abordagem pela estrutura sugere a existência de uma realidade objetiva que o sistema apenas caracteriza por intermédio de uma certa linguagem.

Essa característica de abstração poderá ser precisada graças à introdução da noção de modelo, ou de interpretação, de que já se falou aliás. O termo “modelo” é utilizado aqui no sentido dos lógicos: nós o reencontraremos mais adiante no mesmo sentido, mas não na mesma função, a propósito das representações matemáticas da realidade social. Para introduzir essa noção de modelo de maneira razoavelmente precisa, será útil introduzir inicialmente a noção de “campo de interpretação relativo a um sistema formal” ou, o que dá no mesmo, de “campo de interpretação relativo a uma estrutura dada”. Um campo de interpretação é um universo provido de certas propriedades, isto é, um conjunto de objetos desempenhando o papel de indivíduos, provido de propriedades de diferentes níveis (propriedades de indivíduos a um, dois, três, . . ., n argumentos, propriedades de propriedades, etc). Pode-se estabelecer uma correspondência entre um sistema formal e um campo de interpretação da seguinte; maneira. O sistema comporta variáveis para indivíduos e predicados de diferentes níveis. As variáveis são consideradas como capazes de assumir seus valores no universo do campo. Os predicados, de seu lado, são colocados em relação comi propriedades do campo, isto é, em suma, com sub-conjuntos do universo (para os predicados de indivíduos de um argumento), subconjuntos do conjunto-produto do universo por si mesmo (para os predicados de indivíduos a dois argumentos), e assim por diante. Nessas condições, toda proposição do sistema poderá se traduzir por um enunciado de estilo conjuntista relativo ao campo. Seja por exemplo a proposição: “Há um x que tem a propriedade P”. Ela será traduzida pelo enunciado: “O sub-conjunto correspondente ao predicado P não é vazio”. Dado um sistema formal, um campo de interpretação constituirá um modelo desse sistema para uma correspondência dada se, mediante essa correspondência, todo teorema do sistema se tornar uma proposição verdadeira para o campo.

Em suma, um modelo é uma espécie de realização concreta do sistema (ou da estrutura por ele caracterizada). Ele mostra a estrutura, dando-lhe por assim dizer um corpo para se manifestar. Mas, como já recordamos ao evocar as estruturas multivalentes, ele não é, em geral, determinado de maneira unívoca. Há sistemas formais não categóricos, isto é, que admitem modelos que não são isomorfos entre si. Portanto, há, em geral, várias maneiras de exibir uma estrutura.

Poderíamos dizer que, em princípio, o modelo é mais rico que a estrutura que deixa ver. Por isso, esta pode se realizar em outros modelos que, juntamente com a estrutura que têm em comum com o modelo proposto inicialmente, têm outras propriedades, isto é, realizam outras estruturas. Assim, os axiomas de Peano descrevem uma certa estrutura. Esta realiza-se no campo de interpretação constituído pelos números inteiros, providos da relação de ordenação que os caracteriza, mas pode também se realizar em campos de interpretação que não têm o mesmo tipo de ordem que o conjunto dos números inteiros.

Observemos, no entanto, o seguinte: se bem que o modelo tenha, relativamente ao sistema propriamente dito, um caráter concreto, ele próprio é um objeto de ordem ideal. Ele não é construído a partir de objetos percebidos, mas através de procedimentos que são em última análise homogêneos aos que permitem definir estruturas abstratas. Simplesmente, eles representam um nível menos elevado de abstração. Mas os modelos pertencem ao domínio das matemáticas do mesmo modo que as estruturas.

Essa relação existente entre o sistema formal, ou a estrutura, e o modelo ilustra uma dualidade que parece caraterística dos seres matemáticos: a dualidade da estrutura e do objeto. Por um lado, há formas puras, que são definidas independentemente de seus suportes. Por outro lado, há objetos, que se apresentam como entidades concretas, dotadas de propriedades susceptíveis de serem submetidas a certas operações, reagrupadas em conjuntos etc. Assim, fala-se em estruturas algébricas. Mas, de um outro ponto de vista, lidamos com os números inteiros, com o conjunto dos números inteiros, com as funções de variáveis reais, com o conjunto das funções contínuas etc. A dualidade em questão é, no entanto, puramente relativa. Toda estrutura pode tornar-se um objeto, e todo objeto pode ser caracterizado em termos de estrutura. Assim, o conjunto dos números reais pode ser definido como um conjunto provido de uma estrutura de ordem e de certas estruturas algébricas e topológicas devidamente compatibilizadas entre si. A dualidade significa apenas que uma estrutura deve sempre ser referida a seu suporte, mas é de si mesma independente de todo suporte.

Há, pois, como que uma tensão na matemática entre dois movimentos contraditórios: a abstração e a concretização. O ser matemático não é uma entidade imóvel, ele é a relação desses dois movimentos, sendo, pois, ele próprio, movimento, passagem, autonomização da forma, mas; ao mesmo tempo possibilidade de aplicações indefinidamente variadas. A forma, ao se tornar autônoma, guarda dentro de si, por assim dizer, todas as suas virtualidades de realização. O movimento ascensional, que dá a forma, assume em si o movimento de projeção que faz explodir a forma em seus diferentes campos de manifestação. A projeção não é apenas o inverso da abstração ascendente: em geral, a conquista da forma alarga consideravelmente o domínio dos campos possíveis de realização. Foi por um único caminho, ou no máximo por alguns, que nos elevamos em direção à estrutura. Esta, uma vez apreendida, faz com que se descubra uma multidão insuspeitada de concretizações admissíveis. A formalização, isto é, a subida em direção à forma, é, pois, uma síntese criadora: ela não é simplesmente o ato de reunir o que já é conhecido, mas a abertura de um domínio ramificado de realizações. Ela antecipa aquilo de que é a síntese, ela enuncia de antemão suas realizações. Neste sentido, ela é verdadeiramente a priori.

Feitas essas precisões, podemos voltar aos dois aspectos que havíamos retido ao começar: o auto-engendramento e a aplicabilidade. À luz do que acabamos de dizer, podemos caracterizar o auto-engendramento do ser matemático a partir da relação movediça da estrutura com o suporte. De um lado, é sempre possível destacar uma estrutura do objeto no qual ela está realizada e que lhe serve de suporte. De outro lado, e simetricamente, é sempre possível tematizar uma estrutura, constituí-la em objeto e assim dela fazer o suporte de uma outra estrutura. O estudo dos números reais, por exemplo, leva à evidenciação da topologia dos intervalos abertos, que será ela própria o ponto de partida de generalizações sucessivas que levam aos conceitos fundamentais da topologia geral. Em sentido inverso, pode-se invocar o exemplo da teoria dos números ordinais. A estrutura de ordem está de alguma maneira objectificada sob a forma do conjunto dos ordinais, por intermédio da relação de similaridade ordinal que permite construir, na família de todos os conjuntos bem ordenados, classes de equivalência formadas de conjuntos que têm o mesmo tipo de ordem. Esse conjunto, por sua vez, pode ser provido de uma estrutura de ordem e assim servir de base à teoria geral dos números cardinais. Em todos esses processos, não há intervenção exterior, mas apenas a aplicação dos recursos imanentes aos próprios objetos matemáticos.

Quanto à aplicabilidade, podemos também facilmente explicá-la invocando a relação da estrutura com seu suporte. A estrutura envolve suas exemplificações, ela contém de antemão sua relação com universos cujos objetos verificam as propriedades formais que a constituem como tal. O modelo, no sentido que foi recordado, é ele próprio a representação formal de semelhante relação. Ele apresenta uma espécie de pseudo-universo, que é suficiente para tornar apreensível a estrutura, mas que é ele próprio uma figura ideal apenas. Os elementos do modelo que desempenham o papel de indivíduos aparecem, no entanto, como entidades portadoras de propriedades, mantendo entre si relações determinadas, e susceptíveis de se prestarem a certas operações. Num sentido, o modelo é irreal e, no entanto, em sua organização formal, imita o mundo real. Pressentimos que é por intermédio do modelo que a realidade propriamente matemática poderá ser colocada em relação com a realidade da experiência perceptiva e da práxis.

Vemos, por conseguinte, que o domínio matemático é um domínio constituído de formas que contêm em si suas relações com suportes possíveis, de formas que estão de algum modo providas de diversas possibilidades de ancoragem. Elas as contêm não da maneira pela qual um conceito subsume em si os casos particulares, mas à maneira de uma essência que habita e anima do interior as entidades nas quais se atualiza. Ela própria está contida nas entidades que de antemão contém. A relação é, portanto, circular. Por isso, não nos encontramos aqui diante da simples oposição entre uma forma e um conteúdo, pois a forma matemática é ela própria conteúdo e o conteúdo é ele próprio forma. Mas, enquanto forma, o ser matemático é exigência de realização, comporta referência a domínios de objetos que o exemplificam e dos quais, ao mesmo tempo, provém. Na medida em que traz dentro de si semelhante referência, a título constitutivo, pode-se dizer que ele é a priori. Isso significa que é independente enquanto tal de suas aplicações possíveis, mas também, por outro lado e ao mesmo tempo, que contém de antemão a possibilidade de todas as suas aplicações.

Na ordem da invenção, o pensamento matemático encaminha-se naturalmente em direção a formas cada vez mais gerais. O procedimento prospectivo é formalizante. Mas a ordem da invenção é o inverso da ordem da constituição. A descoberta reconstitui de alguma maneira, partindo de baixo, um processo que, em conformidade com sua essência, se desdobra a partir das mais integrantes formas e que, em última análise, se prende a um centro organizador que deve ser a possibilidade mesma da forma. De resto, o procedimento da invenção, enquanto é formalização, só é possível na medida em que é comandado pela ação dessa possibilidade pura. Poderíamos chamar-lhe: “a formalidade”. Ela é como que a forma das formas, o horizonte no qual podem se constituir as figuras formais, o campo da formalização, o espaço de engendramento das estruturas.

Os seres matemáticos, em sua concretude e em sua efetividade, povoam esse campo. Eles pertencem, a) um domínio de constituição regido pelo que se acaba de chamar “a formalidade” e contêm de antemão a possibilidade de uma relação com a realidade concreta. Isso sugere muito naturalmente a noção de esquema transcendental. Os seres matemáticos são reais, não como coisas que se produzem efetivamente no universo dos encontros, das interações, das resistências, na opacidade do mundo, mas como pseudo-objetos, como esboços das coisas concretas. Eles ocupam uma situação intermediária. Em face da formalidade pura, do campo da formalização, aparecem como entidades concretas, como espécies de coisas. Em face do universo concreto, do mundo percebido, só aparecem como formas, épuras ideais.

Essas observações não devem, no entanto, levar-nos a retomar pura e simplesmente a noção kantiana de esquema, que é, evidentemente, demasiado estática, mesmo ligada à forma do tempo. O esquema kantiano representa uma modalidade de articulação no tempo, uma maneira de exibir uma categoria no tipo de multiplicidade pura ordenada constituída pelo tempo. Mas, por essa razão, o esquema permanece puramente estático. Ora, devemos conceber o ser matemático como animado de um movimento imanente. É preciso, por isso, integrar ao esquema o movimento de desencaixamento progressivo das estruturas, a subida incessante em direção à abstração. Seria preferível falar em esquematização do que em esquematismo.

Sob um outro aspecto, não podemos tampouco seguir Kant em sua concepção do a priori como constitutivo do objeto do conhecimento, se por “objeto do conhecimento” devemos entender o objeto percebido. As matemáticas não constituem um a priori da percepção, mesmo em seu aspecto geométrico. O problema da relação do espaço geométrico com o espaço percebido é da mesma natureza que o problema da relação das mais abstratas estruturas algébricas com os objetos concretos, por exemplo com as figuras simétricas que encontramos na natureza. Isso significa que não se deve interpretar as matemáticas na linha de uma teoria do conhecimento, pelo menos de maneira primordial. Elas intervém, certamente, no processo do conhecimento, e o que está em questão aqui é justamente determinar qual é a modalidade de sua intervenção. Mas não podemos ver nelas um momento da constituição do objeto. Como será sugerido mais adiante, sua virtude está antes em nos permitir a reconstrução do objeto.

Vale dizer que a explicação deve se situar no plano ontológico. Se queremos fundar a dupla possibilidade da autonomização da forma e de sua referência implícita ao concreto, é preciso, parece, pensar em uma teoria da processão, que interprete a realidade como processo de produção e esse próprio processo como captura da forma, descida da forma num substrato que lhe servirá de suporte de lugar de ancoragem. O esquema deve ser entendido como um a priori constitutivo, isto é, como condição relativa à produção do real. Neste sentido, a realidade matemática é imanente à realidade concreta. Ela é por assim dizer seu arcabouço. Mais exatamente, ela representa uma camada constitutiva, ela é arcabouço a um certo nível, aquele que justamente define a noção de estrutura. Em seu devir, as matemáticas remontam o movimento da processão. Mas em sua constituição interna, elas se organizam necessariamente segundo as articulações que pertencem à essência desse movimento. De resto, é também na direção desse movimento que elas operam quando estão voltadas para a aplicação. Se a descoberta matemática é um remontar em direção às condições da processão, a aplicação das matemáticas à realidade refaz, por assim dizer, o próprio movimento processional. Indo às coisas mesmas, elas; levam a seu termo o processo cujos momentos estruturais são descritos pela ciência matemática.

Enquanto esquemas organizadores, meios da processão universal, as formas matemáticas são da alçada, não da intuição perceptiva, nem da pura e simples conceptualização – o conceito é pobre demais para explicar a forma e sua vida interna -, mas da imaginação transcendental. No entanto, evocar aqui a imaginação não significa, de maneira alguma recorrer a um modo de livre criação onde pudesse se expandir o arbitrário do pensamento. Há uma necessidade interna que a invenção vem apenas reconstituir. Essa necessidade deve ser redescoberta porque, enquanto tal, não é imediatamente visível. A razão é que as matemáticas não estão’ dadas em sua unidade, mas unicamente por partes. É só pouco a pouco que os fragmentos se juntam, que a unidade começa a aparecer. Mas ela volta sempre a se desfazer. Contudo, estamos suficientemente informados disso* para pressentirmos que deve haver uma co-pertinência de todas as partes, que a matemática é realmente una. Consequentemente, não podemos nos contentar em ver nas teorias matemáticas simples esboços para mundos possíveis entre os quais a experiência deveria nos permitir descobrir o mundo real, o possível que se encontra de fato realizado. Deveríamos, antes, ver na matemática a possibilidade mesma do mundo, do único’ mundo real e verdadeiro. Em outras palavras, deveríamos ver nela, como se sugeriu, uma ontologia. Mas como a unidade é apenas presuntiva, como ainda estamos muito longe de ter explorado todo o campo, não podemos pensar em fazer de imediato das matemáticas existentes a teoria da realidade. É preciso fazer o rodeio pela experiência, proceder por ensaios e erros, descobrir apenas de maneira progressiva como se juntam os fragmentos, quais fragmentos das matemáticas combinam com quais fragmentos do mundo. A verdade das matemáticas só é descoberta a posteriori, numa experimentação intelectual sempre difícil e perigosa.