Ladrière: Filosofia e Ciência

Jean Ladrière. Filosofia e Práxis Científica. Org. Olinto Pegoraro. Trad. Maria José J. G. de Almeida. Francisco Alves, 1978

O presente estudo sobre filosofia e ciência é o texto de uma conferência pronunciada diante do Philosophy Club da Universidade de Saint Louis, nos Estados Unidos, a 19 de abril de 1958. O texto foi originalmente escrito em francês e depois traduzido para o inglês. Foi o texto inglês que serviu de base à tradução em português que aqui se publica.

A. A filosofia e o fundamento da ciência segundo Descartes

A possibilidade de refletir sobre a relação entre a filosofia e a ciência é relativamente recente enquanto problema. Ela remonta tão-somente à Renascença, à separação que nessa época ocorreu entre filosofia e ciência e que parece ter encontrado sua forma acabada na filosofia de Descartes. A filosofia cartesiana, de fato, não é apenas uma filosofia que se distingue estritamente da ciência. Ela é ao mesmo tempo uma filosofia que desenvolve de maneira sistemática e decisiva as categorias nas quais é pensada a oposição filosofia-ciência: as categorias de pensamento e espaço. A filosofia será, nessa perspectiva, o desenvolvimento daquilo que está contido na ideia de pensamento, a res cogitans, com base na experiência fundamental do cogito. E, como sabemos, essa ideia leva à redescoberta filosófica da ideia de Deus e da criação. Ela também contém, por intermédio da noção de Deus e da relação de criação, uma espécie de justificação transcendental do mundo e, em particular, do mundo da extensão espacial. A filosofia, enquanto tal, nada tem a ver com esse mundo da pura extensão, mas deve oferecer uma justificação dele. Tal é precisamente um dos objetivos da reflexão metafísica de Descartes e o papel filosófico, se é que se pode admitir semelhante expressão, da ideia de Deus em seu sistema.

Por outro lado, o estudo das propriedades do espaço pertence à ciência enquanto tal, no sentido da ciência positiva. E sabemos que Descartes concebia essa ciência como mathesis universalis, embora não ainda no sentido de Leibniz. Para ele, a intuição fundamental era a da geometria analítica, mas ele ainda permanecia preso à ideia do espaço e não percebera o desenvolvimento implicado na própria ideia da geometria analítica: a possibilidade de se levar a cabo uma transição em direção à matemática puramente formal. Para ele, o mundo exterior à consciência, ao cogito, é o mundo da extensão no espaço. Isso equivale a dizer que deve ser possível construir a ciência em total conformidade com o modelo da mecânica, e a própria mecânica com a ajuda da geometria analítica. Temos assim uma espécie de redução gradual — redução à figura e ao movimento e, deste modo, redução a propriedades espaciais; em seguida, a redução das propriedades espaciais às propriedades numéricas. Mas — é preciso observar mais uma vez — a intuição do espaço permanece fundamental, e isso, afinal de contas, é de certo modo surpreendente. A álgebra ainda é apenas um instrumento. Uma vez solucionada o problema, ela tem de ser novamente submetida a uma interpretação geométrica e o significado do resultado deve ser explicado em termos de figuras.

Entretanto, ao mesmo tempo que efetua sua famosa distinção e, em consonância com ela, desenvolve suas meditações metafísicas e seu tratado do mundo como dois corpos de doutrina separados, Descartes conserva a ideia diretriz de um saber universal, no antigo significado grego da palavra episteme. É o que explica no texto muito conhecido onde o saber é descrito como uma árvore cujo tronco é constituído pela metafísica e cujos ramos são as diferentes ciências.

Como é que essas duas perspectivas podem se tornar compatíveis? Provavelmente mediante a ideia de fundamento.

Como vimos, a tarefa da filosofia consiste em dar à ciência uma justificação. Para Descartes, essa justificação da ciência é uma justificação do espaço, posto que a ciência nada mais é que o estudo do espaço, sendo o espaço e mais nada a realidade exterior ao cogito. Tal justificação da ciência é, pois, ao mesmo tempo, uma justificação epistemológica e uma justificação metafísica.

Justificação epistemológica: corresponde ao famoso problema da “ponte”. A ciência não é uma descrição direta do mundo, mas uma reconstituição do mundo por meio das figuras ideais da geometria. Estou certo da validez de minhas demonstrações geométricas, porque essas demonstrações podem ser feitas na evidência da ideia clara e distinta. Mas como posso estar certo da verdade de minhas ideias, como posso estar certo de que essas ideias realmente correspondem à realidade do mundo e que, por conseguinte, a geometria é realmente uma ciência? Em outras palavras, como posso estar certo da validez universal da mathesis universalis? E aqui que intervém a veracidade divina, juntamente com a ideia da criação. Em última análise, a solução do problema da “ponte” é obtida graças a uma dupla redução transcendental: redução transcendental da realidade de minhas ideias à realidade divina e redução simultânea da realidade do mundo à realidade divina. É essa dupla redução que me assegura da correspondência entre minhas ideias e o mundo, e isso de maneira a priori. Este é um ponto realmente decisivo e constitui a força filosófica desta posição.

Mas compreendemos deste modo que essa justificação da ciência não é apenas uma justificação epistemológica — relativa ao valor do conhecimento científico — mas também, ao mesmo tempo e mais profundamente, uma justificação metafísica. Temos mesmo que dizer que a primeira depende da segunda. Porque há uma redução, transcendental, simultânea e correlativa, do pensamento finito e do mundo à Realidade infinita de Deus o pensamento finito torna-se possível (acerca do mundo).

Se estivermos certos da possibilidade e da realidade dessa redução, compreenderemos então que a ciência não é radicalmente distinta da filosofia, mas está antes fundada nela. De fato, sem essa justificação, a ciência não passaria de um sonho dos matemáticos e não teria nenhuma consistência, quer epistemológica, quer ontológica. Não seria absolutamente ciência. Se é ciência, isso se deve unicamente ao fato de que sua validez é certa. E sua validez é garantida pelo mecanismo da reflexão metafísica. Assim, não há de fato nenhuma separação real entre a ciência e a filosofia. A ciência sem a filosofia não seria ciência, pois não saberíamos se é justificada, ou se pode ser justificada, ou como eventualmente poderia ser justificada. A filosofia sem a ciência, por sua vez, seria um discurso incompleto. Ela descreveria, claro, um fundamento, mas não saberíamos nada acerca daquilo que se encontrava fundado, pelo menos no que concerne ao espaço e a ele pertence.

Por conseguinte, temos que tomar a totalidade da ciência mais a filosofia para que tenhamos um real saber, um saber que satisfaça todas as exigências de um verdadeiro saber, algo que tenha ao mesmo tempo um conteúdo e um fundamento. A filosofia sem a ciência tem por conteúdo apenas o cogito, mas o próprio cogito nos transporta para seu conteúdo por intermédio das ideias, e esse conteúdo pode ser analisado em conformidade com métodos adequados. A ciência, de sua parte, sem a filosofia seria um sonho inconsistente, posto que “não saberíamos a respeito de que estamos falando, nem se o que dizemos é verdadeiro” (a observação — feita quando falava da matemática pura — é de Bertrand Russell e é rigorosa e literalmente exata).

Assim, fica claro o caráter imponente da estrutura filosófica de Descartes, pois ela consegue garantir a unidade de nosso saber no momento mesmo em que essa unidade se cinde em duas direções aparentemente irreconciliáveis.