Heidegger (GA27:209-211) – Conhecimento Científico

[HEIDEGGER, Martin. Introdução à Filosofia. Tr. Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 209-211]

c) A positividade da ciência. O projeto prévio, não-objetivo, demarcador do campo da constituição de ser

Agora, porém, é importante ver que com esse projeto não apenas o ser do ente é determinado de antemão de maneira diversa, mas que, nesse e com esse projeto do ser, é delimitado e demarcado um campo ôntico. Pois, com isso, é decidido desde o princípio o que pertence ao campo denominado natureza, ainda que todo esse campo não seja faticamente mensurado de antemão ou mesmo apenas conhecido. O projeto prévio não-objetivo da constituição de ser é um projeto que demarca um campo.

No entanto, esse projeto não se confunde com o estabelecimento extrínseco de uma linha divisória. Ao contrário, ele é um projeto da constituição ontológica do ente. Isso significa: as definições que esse projeto determina desde o princípio em relação ao ente “natureza” vêm à tona em todo conhecimento concreto de um determinado evento natural, e, com efeito, de uma tal forma que todos os conceitos e proposições da física remontam implicitamente a essas definições. Ou seja: os conhecimentos físicos encontram aí a sua fundamentação derradeira ou primeira, toda demonstração física específica funda-se na constituição de ser estabelecida. O projeto da constituição de ser, um projeto prévio não-objetivo e de-marcador de campo, é com isso um projeto que fornece um fundamento, um projeto fundamentador. Conceitos fundamentais são aquelas representações que, no contexto de sua constituição, fornecem o fundamento de todo conhecimento do ente.

Assim, no todo obtemos o seguinte: o projeto prévio e não-objetivo, mas demarcador de campo e fundamentador, o projeto da constituição de ser deixa o ente, cujo ser ele determina, vir à luz pela primeira vez por meio dessa caracterizada determinação. Sobre o pano de fundo do ser delineado no projeto, o ente assim determinado ganha relevo pela primeira vez. Nesse e com esse projeto do ser, o ente em questão torna-se pela primeira vez manifesto como algo que se acha e está aí defronte para a contemplação concreta. O projeto impele o ente pela primeira vez para a luz, sem nada alterar nele. O ente é manifesto como algo que se acha aí defronte, como o positum. Somente se o ente se torna manifesto dessa maneira como algo que se acha aí defronte ele é cognoscível nele mesmo. O conhecimento do ente nele mesmo – assim caracterizamos o conhecimento científico. Por conseguinte, ele é conhecimento do ente como positum ou conhecimento positivo. A essência do conhecimento científico como conhecimento positivo consiste então naquilo que perfaz à possibilidade interna desse caráter “positivo”, nesse achar-se-aí-defronte manifesto nele mesmo. Denominamos positividade à possibilidade interna desse caráter positivo da ciência. A essência da ciência reside na positividade. No entanto, essa positividade consiste por seu lado no que possibilita o achar-se-aí-defronte do ente nele mesmo. Esse elemento possibilitador é o projeto caracterizado da constituição ontológica do ente.

Na primeira distinção do comportamento científico ante o pré-científico dissemos que a ciência não descobre absolutamente pela primeira vez o ente, de tal modo que antes disso nada seria manifesto e o ser-aí só se comportaria em relação ao ente em razão da ciência. Ao contrário, todo comportamento científico assenta-se sobre a base de um comportamento já existente em relação ao ente. O ente já precisa se achar de alguma forma manifestamente aí defronte, de tal modo que, com efeito, a ciência possa justamente tornar o ente manifesto como um ente que se acha aí defronte, como um positum que é nele mesmo.

Como é possível que o ente nele mesmo se ache aí defronte como um ente manifesto? No que se funda a possibilidade da positividade do positum? O projeto da constituição ontológica não é apenas um projeto prévio, não-objetivo, demarcador de campo, mas é ao mesmo tempo um projeto fundamentador. Ele constitui a possibilidade interna — possibilidade = essência – do conhecimento do ente como um ente que se acha aí defronte. Todavia, ciência é conhecimento positivo. Portanto, o projeto mencionado é a essência da positividade da ciência.