Publicado originalmente sob o título: “Vérité et praxis dans la démarche scientifique”, Revue Philosophique de Louvain, tomo 72, maio 1974, pp. 284-309. (trad. Maria José J.G. de Almeida)

Ao fazer da verificação um dos problemas capitais e, em certo sentido, o problema essencial da démarche científica, o neopositivismo recorria, pelo menos implicitamente, a um conceito de verdade que pertencia, na qualidade de pressuposto, ao conjunto das posições epistemológicas comandadas pela metafísica da representação. É verdade que ele o interpretava no quadro prescritivo constituído pelo princípio geral do empirismo. Esse princípio, todavia, é apenas uma modalidade, aliás perfeitamente coerente em sua ordem, da pressuposição geral da representação. A ciência pretende se referir ao que existe e tenta proporcionar-se meios seguros com vistas a discriminar a apreensão do que existe das diversas ilusões que os sentidos, a imaginação, o costume, os interesses ou, num nível mais sublime, o voo audacioso das especulações não cessam de tecer no campo de nossas crenças. Ora, o que existe só se deixa atingir por meio de uma doação. Só podemos atingir o real através da maneira pela qual este nos afeta e nos determina. Só um poder passivo pode ser afetado e, para nós, é a experiência sensível que constitui o lugar e o único lugar da passividade. Portanto, só ela, da maneira como é estimulada, pode dar-nos acesso ao que é.

Mas a percepção está muito próxima das coisas, está por demais mergulhada na vida do mundo para constituir um saber a respeito dele, preciso da linguagem, e da distância com que ela se situa em relação àquilo de que fala, para que advenha essa duplicação na qual e pela qual o que se entrega à percepção pode tornar-se um objeto de conhecimento. Ora, a linguagem não é feita de uma acumulação de traços, cada qual correspondendo a um dado elementar. Ela constitui um meio próprio de articulação no qual as intenções parciais, a partir das quais destacamos o dado, podem se organizar de acordo com um sistema de remetimentos, de dependências e de subsunções que dá lugar, finalmente, a um verdadeiro corpo de saber. Mais ainda. Não somente a linguagem introduz, com relação ao dado, uma ordem de conexões que lhe é própria, como também faz aparecer novos efeitos de sentido, enriquece-se a partir de si mesma, desenvolve mecanismos que lhe permitem, a partir de termos existentes, construir novos termos, estendendo assim o campo do que é dizível. Com isso ela adquire um papel antecipador e prospectivo: sugere observações inéditas, faz ver aspectos da realidade que a percepção não revelara e que pode mesmo se confessar incapaz de apreender. Há uma produtividade própria da linguagem graças à qual se elabora, no meio original das articulações conceituais, proposicionais e discursivas, uma imagem do mundo que supera em todos os sentidos o que a simples percepção poderia nos oferecer.

Trata-se de conciliar o papel criativo da linguagem com a função atribuída à experiência sensível. Em outros termos, trata-se de compreender como podem se combinar, no procedimento científico, a contribuição do componente teórico e a do componente experimental. Pois é na elaboração de sistemas teóricos, de sistemas de proposições que obedecem a leis internas de coerência e de organização, que resulta o funcionamento regulado da linguagem. E, por outro lado, é efetivamente no movimento experimental que a percepção pode exercer seu papel e nos assegurar um contacto com a realidade. A solução do neopositivismo consiste, em suma, em reconhecer que a teoria tem um papel indispensável no processo do conhecimento, enquanto permite explicar e predizer os fatos mostrados pela experiência e, ao mesmo tempo, fazer da experiência simultaneamente o determinante último do sentido dos termos e proposições teóricas e a garantia da validade das afirmações da teoria. As proposições da teoria são consideradas susceptíveis de serem verdadeiras ou falsas. E a verdade de uma proposição teórica é concebida como o seu acordo com o conteúdo da experiência. O meio de se certificar desse acordo consiste em realizar um confronto entre os dois termos em presença: a proposição a comprovar e o dado experimental. Em geral, um confronto direto é impossível, tanto porque as proposições teóricas têm uma generalidade muito grande para serem comparadas com resultados experimentais, como porque fazem intervir termos que não se relacionam de modo direto a traços observáveis da realidade. Será, pois, necessário recorrer a operações de ordem lógica, que permitirão obter, a partir da proposição a comprovar, proposições de um menor grau de generalidade e a operações de ordem hermenêutica, que por sua vez permitirão interpretar as proposições assim obtidas em termos de propriedades observáveis. O processo da comprovação será, portanto, duplamente indireto, mas essa circunstâncias em nada muda a natureza do procedimento, que é efetivamente um confronto destinado a colocar em evidência um acordo ou um desacordo.

Ora, se a questão colocada à teoria é a de seu acordo com a experiência, é por que se espera dela que forneça uma representação daquilo cujo vestígio, por assim dizer, no nível da sensibilidade, é a experiência. O termo “representação” apoia-se numa dupla metáfora, a primeira evocando um contexto diplomático, a outra um contexto teatral. A teoria representa o real no sentido de que o substitui, de que age em seu nome e em seu lugar e de que, em sentido inverso, é possível exercer de certo modo, por seu intermédio, uma influência sobre ele. Mas se ela tem essa virtude é porque fornece um lugar no qual pode se produzir uma ação que é como uma duplicação daquilo que se passa, na realidade, na ordem dos fatos. De certa maneira, essa produção é auto-suficiente. A teoria funciona por si mesma, apoiando-se apenas em seus próprios recursos, que são ao mesmo tempo de ordem linguística e de ordem lógica. Mas o sentido do evento teórico é reproduzir o que acontece num outro lugar, do qual o espaço da teoria é apenas o substituto. Trata-se, pois, de se assegurar não somente da qualidade da produção, de seu acordo com as regras puramente internas que presidem ao seu desenvolvimento, mas também, e mesmo essencialmente, de sua fidelidade reprodutiva, da validade da imagem enquanto imagem, do rigor com que ela recomeça, no meio da linguagem e por meio de uma gênese original de sentido, o que, de outro lado, o curso do mundo não cessa de fazer aparecer no meio originário e primordial dos eventos naturais.

Mas, se a representação deve sua validade presuntiva unicamente à ratificação que é susceptível de receber da parte da experiência, ela não deixa de ser o meio no qual a experiência atinge seu sentido, pelo qual aquilo que estava envolto pela obscuridade do momento perceptivo, e de sua estreita aderência à profundeza do mundo, alcança a transparência que proporcionam o conceito, a abstração, a predicação e a discursividade. Se é a experiência que decide sobre a verdade da representação, num outro sentido, é a representação que é a verdade da experiência. Por trás da noção de verdade-correspondência aparece uma outra noção de verdade, que exprime uma assunção e uma retomada, a um nível mais elevado de integração, daquilo que aparecia inicialmente apenas sob uma forma parcial, dispersa e lacunar. Ora, é efetivamente assim que se apresentam as relações da representação teórica e da experiência. Esta de algum modo só nos dá instantâneos do mundo e só o atinge segundo aspectos sempre estreitamente limitados pelos dispositivos mesmos que tornam possível a experiência. É necessário dizer que a experiência, no sentido que se deve dar a esse termo no contexto do procedimento científico, não é essa espécie de plenitude concreta na qual o mundo se revela quando, deixando-nos invadir por seus ritmos profundos até o âmago mesmo dessa passividade ressoante que constitui em nós a afetividade, somos como que levados no movimento secreto da vida e comungamos com a soberania mesma dos poderes cósmicos. A experiência científica repousa numa tomada de partido em favor da abstração e, se recorre à percepção, é apenas depois de tê-la de algum modo encerrado nos estreitos limites que lhe são impostos justamente por seu modo de representação. A questão será preparar o momento propriamente perceptivo, de tal sorte que um ato de atenção simples poderá, em princípio, decidir sobre o que, em! última análise, convém atribuir ao real. O que se atinge em tais atos de constatação eletiva é apenas uma região extremamente estreita de realidade e qualidades previamente isoladas, que só vêm receber seu sentido dos dispositivos através dos quais a realidade é interrogada e, não, da virtude mesma da percepção e dessa espécie de exuberância com a qual, na abertura que promove, o mundo se revela na densidade mesma de sua substância. No fundo, o que se pede à experiência é um veredicto puramente local, uma resposta em termos de “sim” ou de “não” a uma questão estreitamente circunscrita e, não, uma verdadeira contribuição substancial. Não se trata de deixar o real se manifestar tal qual é, de deixar as qualidades sensíveis irradiarem com toda a força de seu brilho, mas pelo contrário, trata-se de esquecer a coloração do universo, seu brilho e sua profusão, para, doravante, fazer dele apenas um farol longínquo que, de tempos em tempos, emite breves sinais luminosos, que deverão ser compreendidos como confirmações ou como refutações, a partir da sábia interpretação que deles se fizer.

Mas, depois de ter reduzido o mundo a esse sinal intermitente, local e lacônico, depois de ter colocado entre parênteses as significações vividas e relegado ao esquecimento o movimento da manifestação, é necessário refazer uma imagem plausível, dar ao mundo uma figura, reunir os signos dispersos, restaurar a continuidade, tanto na ordem espácio-temporal quanto na ordem das qualidades. Cumpre, portanto, colocar em ação ao mesmo tempo um instrumento de interpretação e um poder de ligação. Cumpre ler os signos e cumpre unir numa figura, se possível única, todos os resultados parciais da interpretação. É o conceito que provê o médium da leitura, e o discurso que torna possível a síntese. O conceito é como uma vista anterior à visão; eis a razão por que permite ver. Tirando seu sentido de sua inserção numa rede complexa, cuja articulação interna é traçada justamente pelo discurso, ele se faz valer por seus próprios recursos, faz aparecer seu sentido pelas modalidades mesmas de seu funcionamento. Operando no espaço abstrato das relações puramente discursivas que o unem ao sistema do qual faz parte, ele traça, por assim dizer de antemão, na ausência de todo objeto, as figuras segundo as quais os objetos poderão nos aparecer, caso existam. Enquanto tal, ele próprio é aparição, mas unicamente sob o modo da pura virtualidade. Enquanto possibilidade de aparecer efetivo é virtualidade manifestante, apresentação inconsistente, no espaço vazio das formas puras, daquilo que só pode se sustentar pelo fato de ser precisamente a lei de figuração de uma presentificação efetiva.

Mas o conceito vale apenas por suas ligações, devendo ser colocado em movimento para poder desempenhar seu papel de esquema regulador. Faz-se necessário, pois, o discurso, com a dupla forma de encadeamento a que recorre: de uma parte, encadeamento dos conceitos ao nível da proposição, de outra parte, encadeamento das proposições ao nível das inferências que asseguram, pouco a pouco, uma solidariedade regulada entre as proposições e, por seu intermédio, entre os conceitos. Assim se constitui como que uma textura única, na qual se elabora progressivamente a figuração abstrata do mundo ausente. Sem dúvida, a estrutura da proposição fornece ao conceito como que um ponto de ancoragem: o termo-sujeito desempenha precisamente o papel de uma entidade-suporte à qual são atribuídas propriedades ou sobre a qual são definidas relações. O discurso formalizado faz de resto ressaltar ainda melhor do que a linguagem ordinária essa função de sustentação. A representação dos predicados sob forma de funções, no sentido matemático do termo, permite que se mostre o domínio a que pertencem os argumentos como o lugar de enraizamento das formas abstratas a que correspondem os predicados. Quando se constrói um modelo, esse domínio aparece explicitamente como um certo conjunto que desempenha o papel de uma base fundadora para todas as construções do modelo. Mas essa representação formal faz ver também que não se trata aí de uma pura função que apenas figura de maneira abstrata as condições reais do enraizamento das formas. Essa função é necessária: é graças a ela que os conceitos podem precisamente se apresentar como aparições, em sua função figurativa, portanto enquanto são eles próprios formas organizadoras. É necessário que eles possam se exibir no ato mesmo da figuração; é necessário, pois, que possam se apresentar no ato mesmo de se relacionarem a um suporte. Mas este; continua a ser um simples auxiliar da representação. Ele só se sustenta pelo fato de se relacionar, enquanto suporte, à ação organizadora das formas, sendo, portanto, apenas um simulacro de suporte. E, aliás, o domínio de base desempenha num modelo um papel inteiramente secundário. Ele é apenas o pretexto, de algum modo para a mostra das relações e, em última análise, para a produção da estrutura que o modelo precisamente tem por missão tornar visível.

O espaço da representação é, pois, apenas um meio inconsistente, desligado de qualquer condição de ancoragem, tendo como realidade apenas a que ele próprio se dá, ao se constituir como lugar de aparição das formas, evanescente como elas, mas, como elas, também revestido do mesmo poder de ilusão e de sedução. Através da imensidão que ele desdobra, e que se abre numa infinidade vertiginosa, anuncia-se o reino brilhante e luminoso do logos, seus maravilhosos encantamentos, suas astúcias admiráveis e suas promessas enganadoras. É precisamente por ser animado pela força do lagos que o espaço da representação pode tornar-se o lugar de uma verdade, e que a experiência pode nele ser como que elevada à dignidade de um discurso de compreensão. Finalmente, a experiência, que aparecera inicialmente como a fonte mesma de todo sentido e de toda verdade, torna-se interiormente dependente das instaurações do discurso. Em sua pretensão de alcançar o mundo, ela não cessou de se afastar dele, persuadindo-se cada vez mais de que toda credulidade é enganadora, de que a percepção selvagem é o lugar das ilusões, de que apenas a virtude organizadora do discurso pode nos iluminar sobre o que seja verdadeiramente o mundo, de que a experiência deve ser reduzida a uma espécie de contacto mínimo e abstrato com a substância do mundo e de que se pode, no máximo, pedir-lhe que forneça, de tempos em tempos, indicações sobre as escolhas que cumpre efetivamente operar nos momentos em que, diante da indeterminação por excesso dos conceitos, o espírito se encontra como que ultrapassado por sua excessiva fecundidade.

Percebe-se de resto que, no fundo, a ideia de um acordo entre proposições teóricas e experiência não se deixa caracterizar por nenhum critério preciso. Pois, em que poderia consistir a comparação necessária ao reconhecimento do acordo? Não se pode comparar uma proposição ao conteúdo instantâneo da consciência perceptiva. Não se pode comparar uma proposição a não ser a uma outra proposição. O que deve servir de teste para a teoria, não será, pois, propriamente falando, a experiência, enquanto ela é somente uma interação entre o aparelho sensorial e um sistema natural ou artificial, convenientemente isolado no seio do universo, mas sim, a proposição na qual se enuncia o resultado das manobras efetivadas e das observações registradas. Mas como é constituída essa proposição e qual é sua validade? Como será seu relacionamento com a experiência? É necessário efetivamente admitir que, com a proposição, já estamos no campo da linguagem, que o grau de generalidade segundo o qual ela opera não tem aqui nenhuma incidência, que entre o momento puramente receptivo da experiência, considerada em seus aspectos sensoriais, e a explicação proposicional, que dela é dada, há um verdadeiro abismo, abismo que precisamente separa a ordem dos acontecimentos naturais da ordem da linguagem, a physis do logos. A partir do momento em que a linguagem entra em ação, estamos sob o domínio do conceito, sob o poder da discursividade, no reino da figuração pura. Tentaremos salvar as prescrições epistêmicas do empirismo, estabelecendo uma distinção entre linguagem teórica e linguagem empírica e colocando as condições de sentido e de verdade das proposições teóricas na total dependência daquelas que governam o funcionamento da linguagem empírica. Mas essa distinção tem um alcance apenas relativo. Ela indica, no máximo, certas relações de antecedência ou de dependência parcial entre essa e aquela parte da linguagem científica. Na realidade, de certa maneira, tudo é teórico, no sentido em que não há, na linguagem científica, como que uma zona privilegiada onde encontraríamos termos, ligados de maneira direta, evidente e definitiva a aspectos isoláveis da experiência perceptiva. Tudo já está compreendido no contexto de uma linguagem ao mesmo tempo interpretativa e explicativa e o único problema que se coloca é o de saber como se pode consolidar e enriquecer essa linguagem e torná-la pertinente com relação a domínios cada vez mais extensos do universo cognoscível.

Assim, por uma sutil inversão, uma doutrina que tinha por objetivo ancorar a linguagem teórica na experiência, fazer repousar inteiramente a ordem da representação numa doação originária, ao preço aliás de uma purificação redutora que reduzia essa doação a uma espécie de contacto pontual elementar, se acha em última análise obrigada a reconhecer um primado incondicional à teoria, a absorver, por assim dizer, a manifestação do mundo na representação e a fazer desta a medida mesma daquela. A bem dizer, é apenas aparentemente que semelhante inversão poderia se mostrar surpreendente. Pois, na realidade, o primado da representação está inscrito desde a origem no projeto epistêmico do empirismo e em sua concepção da experiência. Desde o primeiro momento ignorou-se a percepção, e se fez do que se chama a experiência sensível uma construção abstrata. Ora, a abstração já pertence à representação. É esta, efetivamente, que fornece os instrumentos graças aos quais interrogamos o real e, quando nos propomos explicar, na realidade apenas prolongamos o movimento da interpretação, já encaminhado desde as primeiras fases do processo. Nessas condições, é a representação que se torna a verdade da experiência. É nela que se realiza e encontra sua consagração aquilo que, no momento experimental, é ainda apenas uma sequência descontínua e desorganizada de sinais. Mas, em última análise, a distinção mesma entre o momento teórico e o momento experimental deve ser abandonada. Se a própria experiência é apenas a aplicação de um esquema teórico prévio, então é necessário dizer que a teoria envolve o procedimento científico de ponta a ponta e que, portanto, pertence inteiramente à ordem da representação. Ê necessário dizer, então, que a representação é a verdade do mundo, no sentido em que é somente no espaço fictício que ela proporciona que aquilo que acontece recebe seu sentido, que os acontecimentos se colocam em perspectiva, comunicam-se uns com os outros, organizam-se em redes inteligíveis e associam-se pouco a pouco de modo a se ordenar em uma unidade configuracional total que designamos precisamente com o termo “mundo”.

A doutrina da verdade-correspondência, tal como funcionou na tradição do empirismo, conduz assim a uma doutrina da verdade-integração. É por sua integração na ordem do discurso representativo que o fenômeno é elevado à plenitude de seu sentido, é levado a manifestar sem reserva aquilo que até então trazia em si tão-somente como um esboço mudo. Mas essa integração é também uma metamorfose: a passagem à ordem do sentido é absorção no discurso, e tal passagem implica uma descontinuidade que unicamente uma operação transformante permite superar. É precisamente a linguagem, mais exatamente essa forma particular de linguagem que o procedimento científico constrói, quando elabora a teoria, que assegura essa transformação. Recolhendo em si o fenômeno, ela destaca-o do mundo ao qual pertencia, desliga-o de todas as suas solidariedades concretas e inscreve-o na ordem pura de suas próprias configurações, onde ele valerá doravante, não mais em virtude de sua inerência à profundeza obscura da sustentação, mas em virtude de sua pertinência à translucidez etérea do discurso.

Por trás dessa concepção perfila-se uma certa compreensão do ser. Se a verdade do que se produz está no discurso da representação, é que o ser mesmo do ente natural consiste em ser de alguma maneira destinado à representação, encontrando só nela a plenitude de sua realização. Mas isso significa que esse ser, enquanto medida do destino que está reservado a esse ente, é a própria representação, enquanto processo pelo qual se assegura a metamorfose do dado natural e seu acesso àquilo que faz sua verdade, é apenas no espaço da representação, isto é, por força de um “discurso organizador”, que vale por si mesmo, que o ente natural encontra sua segurança, sua consistência e sua consagração, que é dotado do valor, da solidez, da coerência consigo e da solidariedade com o todo que nos torna possível dizer que ele participa do ser, verdadeiramente.

Mas, por mais que se reduza a experiência a um simples veredicto, que se superestime de todas as maneiras o papel da interpretação, que se afirme o quanto se queira o primado da teoria, resta o fato de que a prática científica concede ao momento experimental o papel de uma instância decisiva e discriminante, de que é em relação a critérios ligados à experiência que ela declara tal teoria melhor que uma outra, de que abandona tal teoria e se obriga a construir outra. O conceito metodológico de “alcance empírico de uma teoria” tem uma significação profunda e deve ser explicado sem se recorrer a um poder interpretativo da teoria. Mas o conceito de experiência, tal como é utilizado pela tradição empirista, deve provavelmente ser reinterpretado de maneira bastante radical. E, correlativamente, aliás, a concepção que se faz da teoria terá de ser submetida a uma séria revisão.

A experiência, no sentido que se deve dar a esse termo no contexto da prática científica, não se reduz de forma alguma a efetuar constatações de caráter mais ou menos elementar. Uma experiência é uma sequência complexa de atos que obedece a um plano e implica uma intervenção positiva na realidade e, portanto, uma certa transformação desta. Sem dúvida, há entre esses atos constatações e, aliás, também, interpretações. Mas trata-se aí apenas de momentos muito parciais, cuja significação se deve inteiramente ao lugar que ocupam na totalidade do processo. Este consiste essencialmente na produção de certos efeitos, em conformidade, é verdade, com concepções teóricas que sugerem a experiência a ser empreendida e indicam, pelo menos esquematicamente, o encaminhamento a seguir para realizá-la, mas em conformidade também com as possibilidades oferecidas pela própria realidade material. Ora, para a ciência moderna, essa realidade já não é formada apenas pelos sistemas naturais, cuja existência podemos constatar e cujo funcionamento podemos captar, pelo menos numa certa escala, simplesmente por meio de nossos órgãos sensoriais. A esses sistemas naturais vieram se juntar sistemas artificiais, que são capazes de operar até certo ponto por si mesmos, sem a intervenção de agentes humanos, sistemas que têm, pois, numa certa medida, o caráter de autômatos. Isso significa que são capazes, até certo ponto, de realizar operações em cadeia, segundo um programa preestabelecido, que são capazes de se auto-controlar, e, portanto, de continuar a funcionar apesar das perturbações dé ordem interna ou externa que possam se produzir, e, eventualmente mesmo, que são capazes de levar em conta informações adquiridas a meio caminho para melhorar seu nível de desempenho. Em suma, eles são dotados de uma relativa autonomia, razão por que se pode considerá-los como^ sistemas. Pois a ideia de sistema corresponde a uma totalidade complexa, relativamente isolável com relação ao exterior, dotada de um grau suficiente de estabilidade e capaz de evoluir,; isto é, passar de estado a estado, em virtude de recursos puramente internos, sob o efeito de interações entre as partes constituintes, que poderão ser caracterizadas por meio de uma lei de caráter dinâmico. Mas, se tem uma relativa autonomia, no sentido de que tem’ suas próprias condições de estabilidade e suas próprias leis de funcionamento, um sistema é sempre susceptível de entrar em interação com outros sistemas, o que, naturalmente, acarreta modificações em seu funcionamento interno e na maneira pela qual se sucedem seus estados. Precisamente, na experimentação científica, estabelecemos conexões entre sistemas artificiais e sistemas naturais, de maneira a criar sistemas mais complexos que realizam configurações inéditas. Graças a essas conexões pudemos estender consideravelmente o domínio dos sistemas naturais accessíveis. Assim, torna-se possível estudar o comportamento de uma partícula elementar ao provocarmos interações entre essa partícula e diversos autômatos e ao fazermos aparecer, nessas últimas, graças a essas interações, estados macroscópicos, cuja presença pode ser diretamente constatada e que temos que interpretar em termos de acontecimentos microscópicos, por princípio não diretamente observáveis. Do mesmo modo, torna-se possível, por procedimentos do mesmo gênero, adquirir informações sobre a natureza do comportamento dos grandes sistemas, tais como as estrelas, as nebulosas e as galáxias.

Ora, a intervenção dos sistemas artificiais é necessária não somente para registrar resultados de interação, mas também, para começar, para produzir as interações que desejamos estudar. Está aí talvez o mais notável aspecto da prática científica moderna, sobre o qual aliás já se insistiu bastante: pode-se dizer que a ciência cria seus objetos. Mas ela o faz em dois sentidos: ela os concebe e os realiza. Ela os concebe, graças à teoria, que lhe fornece um espaço puro de operações, de natureza essencialmente lógica, no qual ela pode construir, a partir de objetos já conhecidos, objetos novos, enquanto objetos possíveis. As matemáticas desempenham aqui um papel essencial, já que oferecem ao espírito uma espécie de domínio ideal de realização, cujo sentido é apenas servir de suporte a operações reguladas, graças às quais podem ser engendradas de modo sistemático novas possibilidades operatórias, que, por sua vez, poderão servir de suporte a operações de nível mais elevado, e assim por diante. Entretanto, a construção num campo matemático fornece apenas um esboço, que indica traços estruturais, um perfil relacional, mas somente ao nível de uma possibilidade. Mais exatamente, o que essa construção faz aparecer é que a existência de tal objeto, não ainda encontrado na experiência, é compatível com tudo o que já se sabe dos sistemas naturais, ou mesmo, nos melhores casos, que sua existência é altamente plausível e até mesmo reclamada de maneira quase impositiva pelo que já é conhecido. As considerações de ordem estrutural desempenham aqui um papel capital, o que faz, aliás, compreender o papel das matemáticas, que fornecem a linguagem necessária para se falar das estruturas. É na medida em que o que já é conhecido sugere uma estrutura, e, por outro lado, na medida em que os objetos verificados correspondem apenas a uma parte da estrutura, que somos levados a supor a existência de objetos que correspondam às casas vazias da estrutura. A dualidade onda-corpúsculo nos fornece a propósito um exemplo particularmente simples. Do momento eml que se sabe que a toda onda está associado um aspecto corpuscular, torna-se quase natural supor, a partir de considerações de simetria, portanto postulando uma certa estrutura dual da realidade, que a todo corpúsculo deve estar associado um aspecto ondulatório.

Mas não basta conceber os objetos, é necessário realizá-los. Dito de outra maneira, é necessário produzir as condições nas quais o objeto concebido é susceptível de se manifestar de maneira real. No exemplo da dualidade onda-corpúsculo, era necessário imaginar um arranjo material susceptível de colocar em evidência as ondas associadas a um fluxo de elétrons. Como na construção teórica, é preciso partir do conhecido, isto é, utilizar aparelhagens existentes e técnicas já disponíveis. Mas trata-se agora de fabricar uma nova aparelhagem, que corresponda às condições do problema, e de conectar essa aparelhagem de maneira conveniente a sistemas naturais já conhecidos. Trata-se, pois, de introduzir na realidade material uma configuração nova. Num certo vocabulário, poder-se-á dizer que o experimentador aumenta localmente o grau de organização da matéria, ou ainda aumenta localmente a neguentropia, um pouco à maneira dos organismos vivos. Ele só pode conseguir isso projetando sobre sistemas já disponíveis uma certa quantidade de informação proveniente do trabalho teórico, que vai se traduzir por um esquema de montagem, portanto por conexões e interações novas, graças às quais os sistemas preexistentes serão integrados em um sistema mais complexo, capaz de desempenhos inéditos.

Entre esses dois momentos produtivos, o da concepção e o da realização, há uma solidariedade estreita, feita de uma constante interação. Não se pode apresentar simplesmente o momento da concepção como a elaboração de um plano ou de um programa, que será em seguida executado de um modo de certa forma inerte. As construções formais acompanham a cada passo as iniciativas concretas, guiando-as, retificando-as, permitindo compreender as resistênciais encontradas, os efeitos obtidos, as sugestões inesperadas proporcionadas pelo que muito impropriamente se chama de “acasos da pesquisa”. Mas, num sentido inverso, as peripécias da prática transformadora repercutem no comentário teórico, seja sob a forma de um ajustamento dos parâmetros, seja sob a forma de deslocamentos no campo teórico, seja mesmo, no caso em que as circunstâncias o exijam, quando o efeito da surpresa é mais profundo, sob a forma de remanejamentos de certos princípios diretores e de certos pressupostos fundamentais. Em suma, o papel do momento teórico é fornecer como que um contraponto do momento experimental, um acompanhamento que ora precede, quando se trata de sugerir a via a seguir, ora segue, quando se trata de interpretar o que se passa, a linha melódica fundamental, que é aquela das práticas concretas, dos ajustamentos de sistemas, das transformações efetivas. A virtude própria desse acompanhamento é que ele opera em um espaço abstrato onde as regras são introduzidas através de definição e podem ser modificadas à vontade. Num tal espaço, será possível explorar diversas possibilidades, simular cursos concebíveis de operação, em suma, fazer variar livremente as condições da realidade e obter, assim, indicações sobre o que poderá se apresentar, com maior verossimilhança, como o caminho ao mesmo tempo mais direto e mais seguro.

Poder-se-ia observar que, ao apresentarmos a prática científica dessa maneira, apagamos qualquer fronteira entre a ciência e a técnica. Efetivamente, é preciso reconhecer que essa fronteira torna-se cada vez mais vaga. Qualquer experiência, não importa qual, se utiliza de procedimentos técnicos mais ou menos sofisticados e, em sentido inverso, qualquer instrumento técnico, não importa qual, se utiliza, em sua construção mesma e em seu funcionamento, de um saber científico mais ou menos extenso. Poder-se-ia dizer que a ciência é cada vez mais da ordem de um “fazer”, que ela implica cada vez mais uma atividade transformadora e que, em sentido inverso, se se pode dizer, a técnica torna-se cada vez mais especulativa, isto é, se afasta cada vez mais da região definida pelos mais imediatos interesses vitais para se abrir a interesses cada vez mais abstratos e, em certo sentido, gratuitos. Seria possível pensar, é verdade, em diferenciar ciência e técnica por suas finalidades respectivas. Mas, precisamente na medida em que a técnica se torna especulativa, suas finalidades próprias, se existem, tornam-se cada vez menos discerníveis das finalidades que se dizem “puramente desinteressadas” da ciência. Por outro lado, a distinção entre ciência fundamental e ciência aplicada torna-se também cada vez mais difícil de ser sustentada. Há uma distinção) relativamente clara que separa as ciências formais puras das ciências ditas “empíricas”, mas, no interior destas, os diferentes tipos de pesquisas estão de tal forma imbricados uns nos outros que se torna arbitrário querer separar núcleos fundamentais de suas aplicações. O que se poderia tentar dizer é que, entre os procedimentos transformadores que se inspiram no modelo da ciência moderna, alguns são de ordem criativa enquanto outros são de ordem repetitiva. Há construções cujo sentido é tentar um avanço no domínio das puras virtualidades e há outras cujo sentido é tornar possível a reprodução, em princípio indefinida, de alguns esquemas operatórios e assim fornecer à ação humana como que substitutivos mais ou menos automatizados nos quais ela possa em qualquer momento se apoiar para se desincumbir de algumas tarefas, ou mesmo, para obter a realização de tarefas das quais seria mesmo incapaz, seja simplesmente de fato, por falta de tempo por exemplo, seja por razões de princípio, devido a diferenças de escala por exemplo.

Como quer que se resolva essa questão, em última análise de alcance secundário, somos levados a reconhecer que os procedimentos de construção teórica e os procedimentos de intervenção efetiva ao nível dos sistemas materiais se imbricam estreitamente no quadro de um processo integrador único, que tem ele próprio o caráter de uma totalidade complexa em movimento, portanto de um sistema. É necessário, pois, pensar a prática científica não como confronto de dois tipos de proposições e, através destas, de dois tipos de procedimentos, mas antes como a elaboração de uma objetividade de tipo original, misturando operações formais que se desenrolam no quadro de um espaço puramente lógico e operações materiais que se desenrolam no quadro do mundo real, concebido como meio universal da co-pertinência de todos os sistemas concretos.

O sistema da prática científica deve ser conforme a certas condições de ordem interna, deve poder se inscrever na realidade, isto é, se situar com relação a outros sistemas te deve poder se transformar. As condições de ordem interna concernem à coerência, à estabilidade e à otimidade do sistema. A coerência é aqui tomada não no sentido da simples não-contradição, que seria apenas uma condição de ordem lógica, mas no sentido da compatibilidade real de todos os componentes e de todos os funcionamentos parciais. É aqui que se encontra a ideia tradicional do acordo entre a teoria e a experiência, mas é necessário examinar, de perto, que sentido assume aqui esse acordo. Não se trata da correspondência entre proposições teóricas e proposições empíricas, nem de uma confirmação de ordem local trazida a tal ou qual proposição teórica por tal ou qual observação, mas da capacidade da teoria de se inserir na rede das ações cuja sequência melódica constitui a prática considerada e determina em última análise a forma do sistema que esta faz existir. Certamente, é em seu conjunto que a teoria deve intervir aqui, isto é, não somente com seu aparelho lógico-matemático, seu vocabulário próprio e seus postulados característicos, mas também, com suas regras semânticas e com seus modelos possíveis, contribuindo todos eles para determinar seu sentido. É verdade que todas as ações empreendidas devem poder ser interpretadas e que é a teoria que fornece essa interpretação. Todavia, isso não significa, de forma alguma, que a condição de coerência se reduza ao acordo da teoria consigo mesma. O fato é que a interpretação representa apenas a face reflexa da ação que é absolutamente inseparável de sua face efetiva. Ora, o que faz a efetividade da ação é sua capacidade de inscrever um efeito num campo que lhe impõe suas próprias condições de funcionamento. A interpretação é necessária para guiar a ação, já que esta não pode contar unicamente com a virtude dos encadeamentos naturais ou das coaptações orgânicas, quando se trata precisamente de fazer aparecer configurações inéditas. Mas ela é julgada quanto à sua adequação no momento em que a ação, ao interferir no curso do mundo, tenta fazer advir concretamente, sob a forma de uma nova unidade de funcionamento, aquilo que o momento interpretativo até então lhe fornecera tão-somente como um esboço antecipador. É preciso ainda tomar cuidado para não isolar as ações umas das outras, como se pudéssemos nos contentar em assegurar, pouco a pouco, região por região, a efetividade daquilo que se propõe na interpretação. O procedimento científico coloca sempre em ação um projeto de certa amplitude, tende a fazer existir, por consequência, um sistema de certa dimensão e é o funcionamento conjunto desse sistema que constitui a verdadeira condição de efetividade das ações particulares. Não apenas estas devem poder ter êxito, localmente, nas condições que imperam nas imediações de seu lugar de efetuação, mas devem poder contribuir, tomando seu lugar numa sequência de operações convenientemente organizada, para a montagem, o funcionamento correto e a manutenção na existência do sistema do qual são apenas suportes parciais.

A estabilidade do sistema exige mais do que a simples coaptação das partes. Trata-se para ele de manter sua configuração e seu modo de funcionamento a despeito das perturbações que possam se produzir, seja em suas imediações seja no interior mesmo de suas fronteiras. Naturalmente, isso não quer dizer que o procedimento científico tenda afinal a se fechar num sistema imutável que poderia funcionar indefinidamente segundo o mesmo esquema, independentemente de tudo o que pudesse advir no mundo. Precisamente, há circunstâncias em que o sistema se transforma, numa direção aliás bem determinada, que será preciso tentar caracterizar. Mas não há um processo contínuo de transformação. A mudança só se efetua por escalões. Há momentos em que um sistema está relativamente estabilizado. Esses momentos correspondem ao que Kuhn chama de ciência normal. Elaborando sistemas capazes de funcionar por si mesmos, segundo um esquema regulado de interação entre práticas materiais e acompanhamento interpretativo de ordem teórica, o procedimento científico tenta assegurar-lhes uma relativa estabilidade, dotando-os de instrumentos de controle apropriados, que estão situados, evidentemente, ao nível da teoria. Esta comporta uma diferenciação interna que distribui suas proposições em diversas categorias funcionais. Há proposições que têm diretamente por função interpretar as operações efetivas e seus resultados, há proposições que têm por função tornar possíveis, por via dedutiva, explicações, previsões e antecipações, e há ainda proposições que desempenham o papel de princípios reguladores e que podem, de resto, se distribuir elas próprias em níveis hierarquizados de generalidade. Quando se produzem perturbações, seja sob a forma puramente lógica da contradição, seja sob a forma de um bloqueio nas interações efetivas, os princípios reguladores entram em jogo para modificar, de modo conveniente,, seja algumas das proposições da própria teoria, seja as interpretações ou antecipações às quais elas dão lugar e, deste modo, alguns fragmentos dos procedimentos práticos. O próprio uso dos princípios reguladores é governado por um princípio de conservação, que prescreve não introduzir modificações a não ser de alcance mínimo, ou seja, resolver as dificuldades sobrevindas preservando, tanto quanto possível, as proposições que desempenham um papel estratégico importante na teoria, isto é, que tenham um grau elevado de generalidade ou que tenham uma função reguladora. Quando essa condição não pode mais ser respeitada e é preciso introduzir modificações em regiões relativamente centrais da teoria, a estabilidade não é mais assegurada. Há então uma reorganização do sistema, uma transição para outros modos de configuração, em suma, uma transformação.

Mas não basta assegurar a coerência e a estabilidade de qualquer maneira. O funcionamento do sistema deve também corresponder a uma condição de otimidade. Esta poderia ser definida como a exigência de uma adaptação tão rigorosa quanto possível entre os efeitos buscados e os recursos empregados. A condição ótima é, pois, em certo sentido, uma condição de economicidade. Trata-se de assegurar o funcionamento do sistema, nas condições prescritas, pelas mais simples vias, isto é, limitando tanto quanto possível o grau de complexidade, tanto das construções formais quanto das montagens experimentais aplicadas. Reconhece-se aí o papel tantas vezes invocado do princípio de simplicidade, que constitui um critério último de seleção entre teorias. É preciso simplesmente estender o princípio ao conjunto do processo da pesquisa. Não se vê muito bem como se poderia justificar esse próprio princípio, vinculando-o a um princípio mais fundamental. O fato é que todos os sistemas parecem obedecer a uma condição desse gênero, que exprime uma espécie de recusa sistemática do desperdício, e talvez, em última análise, o cuidado de não dispor do tempo em vão. Pois todo desperdício se reduz pouco a pouco a um gasto excessivo de tempo. Ora, o tempo, para uma entidade que se inscreve num processo evolutivo, é a dimensão mesma que comanda as possibilidades de existência, de estabilização e de transformação. O tempo é o estofo mesmo da vida, e talvez a tendência profunda da vida, porque criadora, seja carregar cada parcela de tempo do mais alto grau de potencialidade, nada perder daquilo que, a cada momento, pode anunciar felizes metamorfoses e prolongar em direção a seu futuro um esforço obstinado de ser, de durar, de crescer e de se superar.

Mas não se pode definir o sistema da prática científica simplesmente pelas condições puramente internas de sua autoconstrução. Ele deve também ser situado em relação a outros sistemas que são, em parte, sistemas naturais e, em parte, outros sistemas de ação. O procedimento da experimentação isola artificialmente certos sistemas naturais para integrá-los na organização que constrói, mas esse isolamento é sempre relativo. Não é possível e, de resto, não seria fecundo fabricar um sistema completamente fechado. Os sistemas naturais integrados ao sistema da prática científica permanecem de fato solidários do conjunto do cosmo, e só é possível isolá-los relativamente na medida em que semelhante operação permanece compatível com as imposições que pesam sobre os sistemas em questão e circunscrevem o espaço de suas transformações possíveis. Há, pois, não somente condições de coerência interna, mas também condições de coerência externa. A prática científica muda alguma coisa, pelo menos localmente, nos arranjos naturais, mas só pode fazê-lo na medida mesma em que o cosmo autoriza essas variações. Ela é, de resto, desse ponto de vista, bastante análoga aos sistemas vivos, que também introduzem localmente potenciais elevados de organização, só podendo, porém, fazê-lo, ao se apoiarem em propriedades preexistentes e ao tirarem partido das possibilidades de organização já presentes na matéria inorgânica, senão sob a forma fortemente positiva de potencialidades, pelo menos sob a forma negativa de permissividades e sob a forma francamente positiva de disponibilidades.

Mas a prática científica encontra a seu redor não somente o cosmo e sua vida própria, mas também outros sistemas de ação e, em particular, os sistemas políticos. Todo empreendimento de transformação do dado coloca em jogo recursos que podem ser tirados do que é disponível, o que implica atos de poder, decisões, diferentes formas de organização e de controle social. As decisões devem poder se justificar, em função de valores admitidos ou impostos, e também em função das finalidades que a pesquisa se impõe e dos frutos que ela permite esperar. Além do mais, os próprios procedimentos científicos nos quais a prática científica se deixa analisar são comandados por pressuposições provenientes de diversos sistemas de crença ou de sistemas filosóficos, que têm seus próprios critérios de organização e de desenvolvimento. A prática científica temi, talvez, tendência a se tornar autônoma, mas a ideia de uma independência completa com relação a outras instâncias de representação, de avaliação e de interpretação é, evidentemente, de todo ilusória. Quando tenta resolver por si mesmo os problemas que lhe impõem suas próprias condições internas de subsistência e de crescimento, o sistema da prática científica é, pois, forçado a levar em conta suas inter-relações com todos esses outros sistemas e as imposições que estes fazem pesar sobre ele. Ele pode tentar agir sobre essas imposições, para abrandá-las ou limitar sua incidência, mas não pode suprimi-las. O problema da otimidade que ele tem de resolver deve, portanto, ser definido com relação a todas essas imposições externas e não apenas com relação às imposições internas de coerência e de estabilidade. Isso nada tem de surpreendente, já que todo o problema do optimum consiste em buscar um valor extremo de uma certa grandeza, compatível com, valores fixados; de certos parâmetros que definem precisamente as imposições feitas ao sistema.

Mas a questão essencial é evidentemente a da transformação. Se o sistema da prática científica estivesse somente à procura de condições internas de estabilidade, não haveria um devir significativo da ciência e esta seria puramente conservadora. Ora, a estabilidade é apenas uma condição que, em última análise, deve permitir o progresso: é necessário que o funcionamento da prática científica se fixe, num certo momento, em um certo nível de estabilização para que possam ser elaboradas as condições efetivas de uma superação. O fato é que toda inovação se apoia sempre no que já está adquirido. Não há rejeição pura e simples do que já funcionava, mas remanejamento dos planos organizadores e integração dos funcionamentos seguros em conjuntos mais completos, onde se tentarão novas possibilidades.

Há transformação, já se observou, quando o sistema, é afetado por perturbações às quais não está mais em condições de responder por adaptações locais ou’ modificações apenas periféricas, sendo obrigado a colocar em questão alguns de seus princípios mais centrais, se não o conjunto de seus princípios organizadores. Mas como se produzem as perturbações? Elas podem provir de surpresas ao nível da experiência: tal porção do sistema se põe a funcionar de maneira insólita. Podem provir do exterior, sob a forma de problemas impostos pelo sistema social ou cultural. Mas, em geral, elas provêm da vida mesma do sistema: é por seu funcionamento que ele faz aparecer contradições ou lacunas. Assim, duas partes de um mesmo conjunto teórico podem dar» lugar a desenvolvimentos dedutivos que conduzem, num momento dado, a uma contradição lógica. Ou bem a teoria permite prever um efeito que nos esforçamos por realizar experimentalmente, mas o resultado obtido não é compatível com o que a teoria fazia prever, ou bem a própria teoria sugere situações das quais é incapaz de dar uma interpretação. Em última análise, as surpresas da experiência e as perturbações externas se reduzem ao mesmo esquema: trata-se, em todos os casos, de uma incapacidade das estruturas teóricas disponíveis para sugerir uma solução a problemas, quer estes tenham sua origem em desenvolvimentos de ordem propriamente teórica ou nas circunstâncias concretas da prática. Poder-se-ia descrever uma tal situação como a introdução de um corte nos circuitos de interação graças aos quais o sistema existe e conserva sua configuração. O corte pode se situar no interior do componente teórico, no interior do componente experimental, ou na junção de ambos.

Nesse momento entra em ação uma condição que é, provavelmente, a mais fundamental dentre todas as que comandam a vida do sistema: é o que poderíamos chamar de condição de integração. Ela impõe ao sistema a modificação de sua configuração interna de maneira a se tornar capaz de superar a contradição ou de preencher as lacunas. Em ambos os casos, o resultado da transformação é um sistema mais fortemente integrado. Se se trata de absorver uma contradição, o novo sistema deve ser capaz de levar em conta ao mesmo tempo os dois aspectos que apareciam como irreconciliáveis segundo os quadros interpretativos do antigo. E, se se trata de preencher lacunas, o novo sistema deve ter uma área de pertinência mais extensa, isto é, deve absorver em seu funcionamento regiões que o antigo sistema não tinha conseguido assimilar.

As condições mesmas em que se efetuam as transformações indicam a direção geral para onde se orientam: através de patamares sucessivos de reorganização e de estabilização provisória, o sistema da prática científica orienta-se para formas de auto-organização cada vez mais integradas, isto é, formas que abarcam aspectos cada vez mais diversificados e contrastados da realidade e tipos de situação cada vez mais variados. Essa evolução vai de par com um aumento de complexidade, tanto no plano da organização formal quanto no plano dos dispositivos materiais que a prática experimental utiliza. Ela marca também um reforço de autonomia: quanto mais o grau de integração aumenta, tanto mais o sistema se mostra capaz de funcionar por seus próprios recursos, limitando suas interações com o meio circundante. E, por isso mesmo, o próprio desenvolvimento torna-se cada vez mais endógeno. Já não são circunstâncias exteriores, por exemplo as sugestões vindas de outros sistemas interpretativos: ou os problemas colocados pela técnica, que desencadeiam os processos transformacionais, mas, sim, o funcionamento mesmo do sistema, que explora, por assim dizer por seus próprios meios, todo o espaço em princípio accessível, a partir dos princípios reconhecidos nos quais repousa seu componente teórico, sendo levado então a descobrir lacunas que deverão ser absorvidas em uma organização superior. Há uma função antecipadora que prepara, por assim dizer, os momentos da transformação: é reconhecendo por si mesmo seus próprios limites e indicando onde se situam as regiões fora de seu alcance que um sistema anuncia e torna possível sua própria superação.

Essa concepção do devir da prática científica permite-nos voltar ao problema da verdade. Seguramente, encontramos ao nível da condição de coerência e mesmo, ainda que num sentido menos evidente, ao nível da condição de integração, uma certa ideia de apropriação mútua dos componentes que poderia lembrar a ideia de correspondência. Na realidade, trata-se de algo inteiramente diferente. Trata-se da capacidade de um sistema funcionar como sistema, isto é, como uma totalidade complexa provida de condições dinâmicas que asseguram sua estabilidade e, se for o caso, sua transformação. O que conta não é, portanto, uma capacidade de representação, mas, se se pode dizer, uma capacidade de desempenho. Há, certamente, no sistema, um componente teórico e, em certo sentido, ele fornece representações. Todavia, não pode ser considerado à parte, como se tivesse sua finalidade em si mesmo, não sendo sua função fornecer uma imagem propriamente representativa, mas, sim!, oferecer um espaço de jogo às antecipações organizadoras. Essas próprias antecipações têm por sentido tornar possível a instauração de configurações relativamente autônomas, que interpõem entre o domínio das entidades naturais e o das atividades psíquicas o que Popper denomina um terceiro mundo. Esse mundo é como que uma projeção do espírito, ou uma objetivação da ação nas condições da materialidade, isto é, da efetividade operatória. Ele continua a trazer a marca e como que a assinatura dos atos dos quais se originou e permanece habitado por significações que é sempre capaz de reativar, como as frases de um texto abandonado à margem do tempo. Mas, por outro lado, ele participa da concretude, da consistência e da relativa auto-suficiência dos sistemas materiais, aos quais não cessa de se agregar através das conexões e das interações que o tornam finalmente solidário do cosmo inteiro.

Onde está aqui a verdade? Se o conceito de verdade conserva um sentido, ele deve sempre indicar uma certa espécie de adequação. E a adequação é relativa a um dinamismo assimilador. Ora, estamos aqui diante de um dinamismo que comanda um movimento direcional e que depende ele próprio de uma condição de ordem estrutural, que o termo “integração” traduz sofrivelmente. Não seria possível dizer que a verdade de um sistema, enquanto medida de sua adequação, é o grau de sua conformidade à norma de integração, isto é, o que se poderia chamar o grau de seu potencial integrador? Se adotamos essa interpretação, poderemos continuar a dizer que a ciência tende para a verdade, mas isso significará doravante que ela tende, em virtude de suas próprias condições mesmas de funcionamento, a elaborar sistemas operatórios cada vez mais integrados, ou, mais exatamente, a se construir sob a forma de sistemas operatórios cada vez mais complexos e cada vez mais pregnantes, realizando, por assim dizer sob forma tangível, figuras cada vez mais substanciais do que se denomina talvez muito impropriamente logos e que não é, em última análise, nem linguagem, nem pensamento, nem legislação universal, mas, sim, o poder organizador que se alia subterraneamente à virtude germinativa da physis, para produzir, no seio do mundo, não sua duplicação, mas como que uma vida que se teria tornado auto-produção crítica de si mesma e que é, ao mesmo tempo, o prolongamento, a consagração e o questionamento radical daquilo que é simplesmente a vida, tal como a natureza a produziu.

Segundo a concepção mais tradicional da ciência e de seu devir, a verdade científica é, sempre, apenas o horizonte indefinidamente afastado de um esforço que se retoma sem cessar para superar o enigma que o universo lhe propõe. O grau de verdade de uma proposição ou de uma teoria é, então, definido por sua posição relativa em um campo de tensão que se estrutura sob a ação teleológica desse horizonte. Mas este é antecipado como uma espécie de discurso absoluto, desligado de suas amarras, capaz de se assegurar sem reserva da validez incondicional de suas afirmações. Se tentamos compreender a ciência em termos de sistema, somos levados a interpretar sua teleologia imanente não mais na perspectiva de uma visão sempre por vir, mas na de um crescimento e de uma eclosão progressiva que prolonga, com os instrumentos do conceito e do algoritmo realizado, no âmbito da prática informacional, essa imensa guinada ascensional que produziu, no âmbito da combinatória molecular, as surpreendentes arquiteturas que serviram de suporte à emergência do pensamento. Numa tal perspectiva, se a verdade conserva algum sentido, ela só pode ser, em última análise, a pertinência a uma totalidade. A verdade, aliás inteiramente relativa, de uma proposição é sua capacidade de se inscrever, por intermédio de relações lógicas, num conjunto teórico ele próprio reconhecido como relativamente verdadeiro. A verdade de uma teoria, igualmente relativa, é sua capacidade de se integrar em um! sistema de práticas operatórias que comportam ao mesmo tempo transformações materiais! e rodeios por substitutos formais. E a verdade, ela também relativa, de um tal sistema de práticas é sua capacidade de se integrar no campo formado pelos outros sistemas com os quais deve obrigatoriamente entrar em interação para ser capaz de manter sua própria configuração e sua própria dinâmica interna. Portanto, é por seu acordo com a realidade que se julga uma prática, seja ela teórica ou experimental. Mas aqui o acordo não é a conformidade estática da imagem, e, sim, a compatibilidade dinâmica de vários processos de auto-produção. Enquanto ela própria é elaboração progressiva de um sistema autônomo de funcionamento operatório, a prática científica recebe seu valor — aquilo que se poderá denominar sua “verdade” — de seu potencial de coaptação: é necessário que suas próprias instaurações possam vir de alguma maneira se prender às dos outros sistemas dinâmicos, seja de maneira concomitante, numa complementaridade de funcionamento, seja de modo sequencial, numa repetição transformadora.

A verdade de um sistema é sua inscrição no todo. Mas o todo não é um dado já disponível, é uma realidade que se faz. A inscrição no todo é, portanto, a contribuição ao esforço de auto-organização no processo ao mesmo tempo universal e diversificado no qual e pelo qual não cessam de advir figuras sempre novas da natureza e da história. Se a verdade é o relacionamento à totalidade e se a totalidade é, sempre, apenas o movimento de seu próprio advento, então a própria verdade é movimento, incessante devir, esforço para realizar uma integração cada vez mais cerrada no meio de um universo de formas cada vez mais diversificadas, cada vez mais complexas, cada vez mais autônomas. É se especializando e se individualizando que um sistema se torna capaz de assegurar, cada vez mais eficazmente, sua participação na auto-produção do todo. Ao se proporcionar instrumentos mais abstratos e mais polivalentes, ele se proporciona possibilidades de interação mais variadas e mais extensas, universaliza seu campo de ação e contribui com isso para levar o conjunto dos sistemas a graus ainda mais elevados de integração, de coaptação e de autonomização.

Isso significa que não podemos explicar o devir da ciência, e nela o destino da verdade, sem resituar a prática científica na totalidade cósmica. Mas isso significa também que não podemos nos limitar apenas a uma interpretação em termos de sistema. Pois não se pode pensar a totalidade somente como uma espécie de integral dos sistemas, tomada sobre o espaço-tempo a partir da explosão inicial até o instante presente. Ela é um horizonte universal de constituição, que comanda, através da produção dos sistemas, uma gênese de sentido. É somente com relação a um tal horizonte que o conceito de prática, e portanto de ação, pode ser verdadeiramente compreendido. É necessário, pois, tentar captar a articulação do sistema e do sentido, das condições cosmológicas e das condições praxeológicas, dos processos anônimos de auto-produção integradora e de um advento significante, do devir da natureza e da vinda do espírito a si mesmo.

Do lado do cosmo, é necessário poder destinar ao sistema da prática científica um espaço disponível de construção. Do lado da ação, é necessário poder acolhê-lo nesse movimento de expansão pelo qual, a partir de suas mais passivas modalidades, a ação tenta se elevar até à realização efetiva das tarefas infinitas para as quais se abre em virtude das exigências internas que a definem. O que a noção de organização nos permite compreender, hoje, é o fato de o mundo não ser uma totalidade fechada e acabada. Há processos elementares que obedecem a leis parcialmente conhecidas, mas na base desses processos constroem-se arquiteturas sempre susceptíveis de se desfazerem e que, aliás, se mantêm apenas pelo esforço sempre retomado de sua incessante reconstrução. A matéria se organiza em sistemas que se individualizam cada vez mais, à medida que se tornam mais complexas. Mas nenhum limite é fixado para este movimento de auto-organização. Há, pois, no mundo, um campo aberto para a ação humana. Os determinismos só atuam ao nível dos processos-suporte: quanto mais se sobe na ordem da complexidade, tanto mais a indeterminação aumenta. E no nível amplamente indeterminado das altas complexidades que se inscrevem os sistemas de ação e, em particular, o sistema da prática científica.

Mas, inserindo-se no curso do mundo, a ação retoma por sua conta, sob o império de seu dinamismo próprio, o movimiento produtivo e organizador da natureza e, quando constrói seus próprios sistemas, não é para se perder numa espécie de natureza artificializada, mas, sim, para se dar as objetivações através das quais deve necessariamente passar para voltar para junto de si mesma. Isso se deve ao fato de a ação ser ao mesmo tempo uma exigência infinita e uma indeterminação fundamental. Ela se define por uma tarefa — igualar-se à sua exigência —, tarefa esta porém que, para tornar-se real, deve, por assim dizer, arcar com o peso mesmo da realidade. Ora, como poderia a ação, sem se perder, ligar-se a figuras concretas senão suscitando, a partir de seus próprios recursos, as formas de objetivação nas quais poderá ao mesmo tempo se determinar e se reconhecer? Mas as figuras objetivadas da ação devem reproduzir em1 sua ordem e segundo suas potencialidades internas o que constitui o mais profundo e o mais original caráter da ação, a saber, a criatividade. Elas próprias devem ser figuras evolutivas, capazes de engendrar a novidade. Isso é precisamente o que encontramos nos sistemas da prática científica que, mais do que qualquer outra, está armada para se abrir, segundo procedimentos perfeitamente dominados, campos sempre novos de auto-realização. O sistema, em seu próprio devir, simboliza, por assim dizer, o destino total da ação. Esta carrega perante si mesma a responsabilidade de sua coerência e de sua estruturação progressiva e está chamada a se fechar cada vez mais sobre si mesma, numa potencialidade instauradora cada vez mais elevada, ao mesmo tempo que se harmoniza cada vez mais estreitamente à respiração do universal. Assim, o sistema, obedecendo a suas condições internas de integração crescente, não cessa de reforçar a qualidade e o nível de seus desempenhos e faz aparecer, na imensidão do cosmo, zonas de alta concentração operatória, cujas interações atingem regiões cada vez mais extensas da realidade.

Mas o próprio sistema ainda é apenas um substituto da ação. O sentido que nele se esboça e que se mostra na produção que encontra nele seu lugar, ainda é apenas o anúncio enigmático de um sentido sempre por vir, onde a ação viria enfiml se realizar. O horizonte de totalização que comanda o surgimento dos sistemas e em relação ao qual se mede sua verdade é o próprio horizonte que define o esforço sempre retomado da ação. Esse horizonte é o de um apelo que orienta secretamente a ação desde suas origens, que não cessa de solicitá-la através de todas as peripécias de sua aventurosa caminhada e do qual ela própria é, por sua mais profunda vocação, em cada uma das projeções que se dá, a silenciosa, infatigável e incoercível esperança.

Jean Ladrière