KOYRÉ, Alexandre. Galileu e Platão. Tr. Maria Teresa Brito Curado. Lisboa: Gradiva, sem data
Num artigo publicado na Critique1) afirmei que o problema da origem do mecanicismo, considerado no seu duplo aspecto, a saber: a) por que razão o mecanicismo nasceu no século XVII e b) por que motivo não nasceu vinte séculos mais cedo, nomeadamente na Grécia, não tem uma solução satisfatória, isto é, uma solução que não nos remeta simplesmente para o fato (duvido, aliás, que em história se possa alguma vez eliminar o fato). Mas, em contrapartida, é possível, parece-me, esboçar-lhe uma solução de conveniência, uma solução que nos faça ver, ou compreender, que a ciência grega não podia dar lugar a uma verdadeira tecnologia. Isto porque, na ausência de uma física, uma tecnologia é rigorosamente inconcebível. Ora a ciência grega não elaborou qualquer física, e não poderia fazê-lo porque, na constituição desta, a estática deve preceder a dinâmica: Galileu é impossível antes de Arquimedes.
Podemos, sem dúvida, interrogar-nos por que razão a antiguidade não produziu um Galileu… Mas isso equivale a retomar o problema da paragem, tão brusca, do magnífico ímpeto da ciência grega: por que motivo cessou o seu desenvolvimento? Por causa da ruína da polis? Da conquista romana? Da influência cristã? Talvez. Todavia, nesse intervalo, Euclides e Ptolomeu puderam muito bem viver e trabalhar no Egito. Realmente, nada se opõe a que Copérnico e Galileu lhes tivessem sucedido diretamente.
Mas regressemos ao nosso problema. A ciência grega, como já disse, não constituiu uma verdadeira tecnologia2, porque não elaborou uma física. Mas por que motivo, mais uma vez, o não fez? Segundo toda a aparência, porque não procurou fazê-lo. E isso, sem dúvida, porque acreditava que tal não era realizável.
Com efeito, fazer física no nosso sentido do termo — e não naquele dado a esse vocábulo por Aristóteles — quer dizer aplicar ao real as noções rígidas, exatas e precisas das matemáticas e, antes de mais, da geometria. Um empreendimento paradoxal, se fosse levado a cabo, porque a realidade, a da vida quotidiana, no meio da qual vivemos e estamos, não é matemática. Nem mesmo matematizável. É do domínio do mutável, do impreciso, do «mais ou menos», do «aproximadamente». Ora, na prática, importa muito pouco saber se — como no-lo diz Platão, ao fazer da matemática a ciência por excelência — os objetos da geometria possuem uma realidade mais elevada do que a dos objetos do mundo sensível; ou se — como no-lo ensina Aristóteles, para quem a matemática não é senão uma ciência secundária e abstrata — eles não têm mais do que um ser «abstrato», de objetos do pensamento: em ambos os casos, entre a matemática e a realidade física existe um abismo. Daí resulta que querer aplicar a matemática ao estudo da natureza é cometer um erro e um contrassenso. Não há na natureza círculos, elipses ou linhas retas. É ridículo querer medir com exatidão as dimensões de um ser natural: o cavalo é, sem dúvida, maior que o cão e mais pequeno do que o elefante, mas nem o cão, nem o cavalo, nem o elefante têm dimensões estrita e rigidamente determinadas: há, por todo o lado, uma margem de imprecisão, de «jogo», de «mais ou menos» e de «aproximadamente»3.
Eis as ideias (ou as atitudes) às quais o pensamento grego permaneceu obstinadamente fiel, quaisquer que fossem as filosofias de onde as deduzia.
Nunca quis admitir que a exatidão pudesse ser deste mundo, que a matéria deste mundo, do nosso mundo, do mundo sublunar, pudesse encarnar os seres matemáticos (exceto no fato de a isso ser forçada pela arte)4. Admitia, em contrapartida, que as coisas se passassem de outro modo nos céus, que os movimentos absoluta e perfeitamente regulares das esferas e dos astros fossem conformes às leis da mais estrita e rígida geometria. Mas, justamente, os céus não são a Terra. E, por isso, a astronomia matemática é possível, mas a física matemática não o é. Desse modo, a ciência grega não só constituiu uma cinemática celeste, mas ainda, para o fazer, observou e mediu o céu com uma paciência e exatidão surpreendentes, servindo-se de cálculos e de instrumentos de medida que herdou ou inventou. Mas, por outro lado, nunca tentou matematizar o movimento terrestre e — com uma única exceção —5 empregar na Terra um instrumento de medida e mesmo medir exatamente o que quer que fosse para além das distâncias. Ora é através do instrumento de medida, que a ideia da exatidão toma posse deste mundo e que o mundo da precisão consegue, por fim, substituir o mundo do «aproximadamente».
Nada me parece revelar de modo mais marcante a oposição radical entre mundo celeste e mundo terrestre — mundo da precisão e mundo do mais ou menos — do que, para o pensamento grego, a incapacidade de este último ultrapassar essa dualidade radical, concebendo uma medida unitária de tempo. Porque, se é verdade que os organa e kronou do céu, se a abóbada celeste, com as suas revoluções uniformes, cria, ou determina, divisões rigorosamente iguais do tempo, se, por esse motivo, o dia sideral tem uma duração perfeitamente constante, o mesmo não se passa com o tempo da Terra, com o nosso tempo. Para nós, o dia solar decompõe-se num dia e numa noite de duração essencialmente variável, dia e noite subdivididos num número igual de horas, de duração igualmente variável, mais ou menos longos, ou mais ou menos curtos, segundo a estação. Esta concepção está tão profundamente ancorada na consciência e na vida gregas que — supremo paradoxo! — o quadrante solar, instrumento que transmite à Terra a mensagem do movimento dos céus, se encontra afastado da sua função primária e vemo-lo obrigado a marcar as horas mais ou menos longas do mundo do «mais ou menos».
Ora, se pensarmos que a noção do movimento está inseparadamente ligada à de tempo, que foi na e por uma nova concepção de movimento que se realizou a revolução intelectual que deu lugar ao nascimento da ciência moderna, no seio da qual a precisão do céu desceu sobre a Terra, compreender-se-á bem que a ciência grega, mesmo a de Arquimedes, não pudesse ter fundado uma dinâmica. E também que à técnica grega não foi possível ultrapassar o nível da techne.
A história da Idade Média dá-nos provas evidentes de que o pensamento técnico do senso comum não depende do pensamento científico, o qual pode, contudo, absorver os elementos, incorporando-os no senso comum6; que pode desenvolver, inventar e adaptar descobertas antigas a necessidades novas e até mesmo fazer outras; que, guiado e estimulado pela experiência e pela ação, pelos sucessos e pelos fracassos, pode transformar as regras da techne; que pode até criar e desenvolver quer utensílios, quer máquinas; que, com meios frequentemente rudimentares e servido pela habilidade dos que os empregam, pode criar obras cuja perfeição (sem falar da beleza) ultrapassa de longe a dos produtos da técnica científica (sobretudo no seu começo). Com efeito, como no-lo diz Lucien Febvre num trabalho que, ainda que apenas o faça de passagem, me parece de uma importância capital para a história da técnica7: «Já não falamos, hoje em dia, da Noite da Idade Média, e isso de há uns tempos para cá, nem do Renascimento, que na postura do arqueiro vencedor lhe dissipou as trevas para sempre. E isto porque, tendo prevalecido o bom senso, já não seríamos capazes de acreditar realmente nessas férias totais de que antes nos falavam: férias da curiosidade humana, férias do espírito de observação e, se assim o quisermos, da invenção. E porque nos convencemos finalmente de que a uma época que tinha tido arquitetos da envergadura dos que conceberam e construíram as nossas grandes basílicas romanas: Cluny, Vézelay, Saint-Sernin, etc, e as nossas grandes catedrais góticas: Paris, Chartres, Amiens, Reims, Bourges; e as poderosas fortalezas dos grandes barões: Coucy, Pierrefonds, Château-Gaillard, com todos os problemas de geometria, de mecânica, de transporte, de suspensão, de manutenção que tais edifícios acarretam, todo o tesouro de experiências bem conseguidas e de insucessos registrados que este trabalho exige e alimenta — a uma tal época era irrisório negar, em bloco e sem discriminação, o espírito de observação e o espírito de inovação. Se os observarmos atentamente, os homens que inventaram ou reinventaram, ou adotaram e implantaram na nossa civilização do Ocidente o arreio dos cavalos pelo arnaz, as ferragens, o estribo, o botão, o moinho de água e de vento, a plaina, a roda dentada, a bússola, a pólvora, o papel, a imprensa, etc. — esses homens mereceram bem ser considerados com espírito de invenção e humanidade.»
Ora os homens dos séculos XV e XVI que inventaram o numerador e a roda de escape, que aperfeiçoaram as artes do fogo — e as armas de fogo — , que obrigaram a metalurgia e a construção naval a fazer progressos enormes e rápidos, que descobriram o carvão e subjugaram a água, segundo as necessidades da sua indústria, não foram, é bom que se diga, inferiores aos seus predecessores. É o espetáculo deste progresso, deste acumular de invenções, de descobertas (e, portanto, de um certo saber) que nos explica — e justifica parcialmente — a atitude de Bacon e dos seus sucessores, que opõem a fecundidade da inteligência prática à esterilidade da especulação teórica. São estes progressos, sobretudo os que foram feitos na construção das máquinas, que, como sabemos, servem de base ao optimismo tecnológico de Descartes; mais ainda: servem de fundamento à sua concepção do mundo, à sua doutrina do mecanismo universal.
Mas, enquanto Bacon conclui que a inteligência se deve limitar ao registo, à classificação e à ordenação dos fatos do senso comum e que a ciência (Bacon nunca compreendeu nada da ciência)8 não é ou não deve ser mais do que um resumo, generalização ou prolongamento do saber adquirido na prática. Descartes, por seu lado, tem uma conclusão exatamente oposta, a saber, a da possibilidade de fazer a teoria penetrar a ação, isto é, a possibilidade da conversão da inteligência teórica em real, da possibilidade, a um tempo, de uma tecnologia e de uma física. Possibilidade essa que encontra a sua expressão e garante no próprio fato de o ato de inteligência — que, ao decompor e recompor uma máquina, lhe compreende a organização, bem como a estrutura e funcionamento das suas múltiplas engrenagens — ser exatamente análogo àquele pelo qual, decompondo uma equação nos seus fatores, lhe compreendemos a estrutura e a composição. Ora não é do desenvolvimento espontâneo das artes industriais pelos que as exercem, mas sim da conversão da teoria em prática, que Descartes espera os progressos que tornarão o homem «senhor e dono da natureza».
Creio, por meu lado, que a história, ou, pelo menos, a pré-história da revolução técnica dos séculos XVII e XVIII, confirmam a concepção cartesiana: é por uma conversão da episteme na techne que a máquina eotécnica9 se transforma na máquina moderna (paleotécnica); porque é esta conversão, por outras palavras, a tecnologia nascente, que dá à segunda o que forma o seu próprio caráter e a distingue radicalmente da primeira, e que mais não é do que a precisão.
Com efeito, quando estudamos os livros de máquinas dos séculos XVI e XVII10, quando fazemos a análise das máquinas (reais ou simplesmente projetadas) de que nos oferecem descrições e desenhos, somos surpreendidos pelo caráter aproximativo das suas estruturas, do seu funcionamento, da sua concepção. São frequentemente descritas com as suas dimensões (reais) exatamente medidas. Pelo contrário, nunca são «calculadas». Portanto, a diferença entre as que são irrealizáveis e as que foram realizadas não consiste no fato de as primeiras terem sido «mal calculadas», ao passo que as outras não. Todas — à exceção talvez dos aparelhos de suspensão e de mais algumas, como o moinho, que empregavam como meios de transmissão de força motriz ligações de rodas dentadas, meios que convidam positivamente ao cálculo — foram concebidas e executadas «a olho», «por estimativa». Todas pertencem ao mundo do «aproximadamente». Eis a razão por que as operações mais grosseiras da indústria, tais como bombear a água, moer o trigo, prensar a lã, acionar os foles das forjas, podem ser confiadas a máquinas. As operações mais finas não se executam senão com a mão do homem. E com a sua força.
Acabei de dizer que as máquinas eotécnicas não eram «calculadas». E como poderiam sê-lo? Não esqueçamos, ou, melhor, demo-nos conta de que o homem do Renascimento, o homem da Idade Média (e o mesmo pode ser dito do homem antigo), não sabiam calcular. Não estavam habituados a fazê-lo. Não tinham meios para o fazer. Sem dúvida sabiam (os astrônomos sabiam-no) muito bem executar cálculos astronômicos, dado que a ciência antiga elaborara e desenvolvera os métodos e os meios apropriados; mas11 não sabiam — uma vez que a ciência antiga pouco ou nada se importara com isso — executar cálculos numéricos12. Tal como no-lo recorda L. Febvre, não dispunham de «qualquer espécie de linguagem algébrica». Nem sequer de linguagem aritmética, cômoda, regular e moderna. O uso dos algarismos a que chamamos árabes porque são indianos — o uso dos algarismos Gobar, que vieram de Espanha ou da Barbárie, na Europa ocidental estava longe de ser geral, ainda que os mercadores italianos deles tivessem conhecimento desde o século XIII ou XIV. Se o uso destes símbolos cômodos se expandiu rapidamente nos calendários para eclesiásticos e nos almanaques para astrólogos e médicos, deparou-se-lhe, na vida corrente, uma viva resistência dos algarismos romanos, minúsculos, ligeiramente modificados, a que se chamava algarismos de finança. Apareciam agrupados em categorias separadas por pontos: dezenas ou vintenas encabeçadas por dois XX, centenas por um C e milhares por um M; tudo tão mal feito quanto possível, mas, mesmo assim, permitindo proceder a uma qualquer operação aritmética elementar.
«Também nada de operações à mão, operações que nos parecem tão cômodas e simples e que aos homens do século XVI pareciam ainda monstruosamente difíceis e boas apenas para a elite matemática. Antes de sorrirmos, lembremos que Pascal, em 1645 […], insistia, na dedicatória da sua máquina de calcular ao chanceler Séguier, na extrema dificuldade das operações feitas à mão. Não somente obrigam permanentemente ‘a conservar ou pedir as somas necessárias’, donde decorrem inúmeros erros […], mas, além disso, exigem do infeliz calculador ‘uma atenção profunda, que fatiga o espírito em pouco tempo’. Com efeito, no tempo de Rabelais contava-se, antes de mais e quase exclusivamente, com a ajuda dessas letras do tesouro que deixaram do outro lado da Mancha o seu nome aos ministros do Tesouro e com as fichas que o Antigo Regime manipulou, com maior ou menor destreza, até ao seu declínio.»
Os cálculos são certamente difíceis. Portanto, ninguém os faz. Ou, pelo menos, fazem-se tão poucos quanto possível. E os enganos são frequentes, ninguém se preocupando muito com eles. Um pouco mais, um pouco menos, que importância tem isso? Nenhuma, geralmente, não há que duvidar. Entre a mentalidade do homem da Idade Média (e, em geral, do homem do «aproximadamente») e a nossa há uma diferença fundamental. Citemos de novo L. Febvre: o homem que não calcula, que «vive num mundo em que as matemáticas são ainda elementares, não tem a razão formada da mesma maneira que o homem mesmo ignorante, mesmo incapaz de, por si próprio, resolver uma equação ou de fazer um problema mais ou menos complicado, mas que vive numa sociedade subordinada, no seu conjunto, ao rigor dos modos de raciocínio matemático, à precisão dos modos de calcular, à correção elegante das maneiras de demonstrar».
«Toda a nossa vida moderna está como que impregnada de matemática. Os atos quotidianos e as construções dos homens trazem-lhe a marca — e nem sequer as nossas alegrias artísticas e a nossa vida moral escapam à sua influência.» Nenhum homem do século XVI poderia subscrever estas verificações de Paul Montei. Elas não nos admiram, mas tê-lo-iam, com razão, deixado totalmente incrédulo.
Coisa curiosa: dois mil anos antes, Pitágoras proclamara que o número é a própria essência das coisas; e a Bíblia ensinara que Deus fundara o mundo sobre «o número, o peso, a medida». Todos o repetiram — mas ninguém o acreditou. Pelo menos ninguém, até Galileu, o tomou a sério. Ninguém tentou determinar estes números, estes pesos e estas medidas. Ninguém se deu ao trabalho de contar, de pesar e de medir. Ou, mais exatamente, nunca ninguém procurou ultrapassar o uso prático do número, do peso, da medida, na imprecisão da vida quotidiana — contar os meses e os animais, medir as distâncias e os campos, pesar o ouro ou o trigo — , para fazer dele um elemento do saber exato.
Creio que não chega dizer, com L. Febvre, que, para o fazer, o homem da Idade Média e o do Renascimento não possuíam os instrumentos materiais e mentais. É sem dúvida verdade, e de uma importância capital, que «a utilização dos instrumentos mais usuais hoje em dia, os mais familiares e, aliás, os mais simples continuava a ser-lhes desconhecida. Para observar, nada melhor que os seus dois olhos, quando muito, servidos, se necessário, por óculos forçosamente rudimentares (nem o estado da óptica, nem o da vidraria lhe permitiriam seguramente outros). Lentes de vidro ou de cristal talhado e próprias para aumentar os objetos muito afastados, como os astros, ou muito pequenos, como os insectos ou os germes». É igualmente verdade que não são apenas os instrumentos de medida que faltam, mas a linguagem que teria podido servir para lhes exprimir os resultados: «Nem nomenclatura clara e bem definida, nem padrões de uma exatidão garantida, adotados por todos com um alegre consentimento. Havia uma multidão incoerente de sistemas de medidas variáveis de cidade para cidade, de aldeia para aldeia, quer se tratasse de comprimento, de peso ou de volume. Quanto a registrar as temperaturas, era impossível: o termômetro ainda não tinha surgido. E não surgiria antes de bastante tempo.»
Podemos interrogar-nos, contudo, sobre se esta dupla carência não se poderá explicar pela mentalidade característica, pela estrutura geral do «mundo do aproximadamente». Ora, a este respeito, o caso da alquimia parece fornecer-nos uma resposta decisiva. Com efeito, no decurso da sua existência milenar, a única entre as ciências das coisas terrestres pôde constituir um vocabulário, uma notação e mesmo um instrumental de que a nossa química recebeu e conservou a herança. Acumulou tesouros de observações, realizou milhares de experiências, fez mesmo descobertas importantes. Nunca conseguiu fazer uma experiência precisa porque nunca o tentou. As descrições das operações alquímicas nada têm de comum com as fórmulas dos nossos laboratórios; são receitas de cozinha, tão imprecisas, tão aproximativas e qualitativas como aquelas. E não é a impossibilidade material de executar as medidas que detém o alquimista; ele não se serve delas, mesmo quando as tem à mão. Não é o termômetro que lhe falta, é a ideia de que o calor seja susceptível de medida exata. Assim, contenta-se com os termos do senso comum: fogo vivo, fogo lento, etc, e não se serve, ou quase nunca, da balança. E, todavia, a balança existe; ela própria — a dos ourives e joalheiros — relativamente precisa. É justamente por isso que o alquimista a não usa. Se a usasse, seria um químico. Mais: para que se lembrasse de a usar teria sido necessário que já o fosse.
Ora acredito que se passa algo de semelhante no que respeita aos instrumentos ópticos. E com todos os outros. Portanto, estando o mais de acordo possível com L. Febvre sobre a importância da sua ausência, não estou inteiramente satisfeito com a explicação que aquele dela apresenta.
Com efeito, tal como no-lo recorda o próprio L. Febvre, os óculos encontram-se em uso desde o século XIII, talvez mesmo depois de fins do século XII. A lupa ou o espelho côncavo foram, sem dúvida, conhecidos na antiguidade. Então por que razão, durante quatro séculos — o telescópio é de começos do século XVII — , ninguém, nem dentre aqueles que os faziam, nem dentre os que os usavam, teve a ideia de experimentar talhar, ou mandar talhar, uma lente um pouco mais espessa, com uma curva de superfície mais pronunciada, e chegar assim ao microscópio simples, que não aparece senão cerca do começo do século XVII, ou no fim do século XVI? Não podemos, parece-me, invocar o estado da vidraria. Não era notável e os vidreiros do século XIII, e mesmo do século XIV, deveriam ser incapazes de fabricar um telescópio (muito mais tarde, durante toda a primeira metade do século XVII, os vidreiros italianos serão os únicos a poder, ou a saber, talhar lentes astronômicas13 e é só na segunda metade que vêm a ser alcançados, e por vezes ultrapassados, pelos Holandeses e Alemães). Mas o mesmo não se passou com o microscópio simples, que mais não é do que uma pérola de vidro bem polida: um operário capaz de talhar as lentes dos óculos é ipso fato capaz de fazer um microscópio. Mais uma vez não se trata de insuficiência técnica, é a falta da ideia que nos fornece a explicação14.
A falta da ideia também não quer dizer insuficiência científica. Sem dúvida, a óptica medieval (tal como a óptica grega) — se bem que Al-Hazen e Witello a tivessem obrigado a fazer progressos significativos — conhecia o fato da refração da luz, embora não lhe conhecesse as leis: não é senão com Kepler e Descartes que a óptica física nasce verdadeiramente. Mas, a bem dizer, Galileu não sabia muito mais que Witello; apenas um pouco mais para, tendo concebido a ideia, ser capaz de a realizar.
Além disso, nada há mais simples que um telescópio, ou, pelo menos, que um óculo de longo alcance15. Para os construir não é necessária ciência, nem lentes especiais, não sendo precisa portanto uma técnica desenvolvida: duas lentes de óculos, colocadas uma após outra — e eis um óculo de longo alcance. Ora, por mais estranho e inacreditável que pareça, durante quatro séculos ninguém tivera a ideia de ver o que aconteceria se, em lugar de utilizar um par de óculos, fossem usados simultaneamente dois.
É que o fabricante de óculos não era, de modo algum, um óptico: era um artesão que não fazia um instrumento óptico, mas sim um utensílio. Portanto, fazia-o de acordo com as regras tradicionais da profissão e não procurava fazer outra coisa. Há talvez uma verdade muito profunda na tradição — possivelmente lendária — que atribui a invenção do primeiro óculo de longo alcance ao acaso, brincadeira do filho de um oculista holandês.
Ora, para o homem que os usava, os óculos não eram também um instrumento óptico. Eram igualmente um utensílio. Um utensílio, isto é, qualquer coisa que, tal como já tinha visto, e muito bem, o pensamento antigo, prolonga e reforça a ação dos nossos membros, dos nossos órgãos dos sentidos; qualquer coisa que pertence ao mundo do senso comum. E que nunca pode levar-nos a ultrapassá-lo; quando, pelo contrário, a própria função do instrumento não é um prolongamento dos sentidos, mas, na acepção mais forte e mais literal do termo, uma encarnação do espírito e uma materialização do pensamento.
Nada nos revela melhor esta diferença fundamental do que a história da construção do telescópio por Galileu. Enquanto os Lippertshey e os Janssen, que haviam descoberto, por um feliz acaso, a combinação de vidros que forma o óculo de longo alcance, se limitavam a fazer os aperfeiçoamentos indispensáveis e de certo modo inevitáveis (tubo, ocular móvel) aos seus óculos reforçados, Galileu, logo que teve notícia da luneta de aproximação holandesa, elaborou-lhe a teoria. E foi a partir desta teoria, sem dúvida insuficiente, mas teoria apesar de tudo, que, levando cada vez mais longe a precisão e o poder dos seus vidros, construiu a série das suas perspicilles, que lhe abriram aos olhos a imensidade do céu.
Os oculistas holandeses não fizeram nada de semelhante, porque, justamente, não tinham a ideia do instrumento que inspirava e guiava Galileu. Deste modo, a finalidade procurada — e atingida — por ele e por aqueles era inteiramente diferente. A luneta holandesa é um aparelho com um sentido prático: permite-nos ver, a uma distância que ultrapassa a da vista humana, o que lhe é acessível a uma distância menor. Não vai mais longe, não pretende ir mais além — e não foi por acaso que nem os inventores, nem os utentes da luneta holandesa se serviram dela para observar o céu. Pelo contrário, foi para responder a necessidades puramente teóricas, para atingir o que não cai na alçada dos nossos sentidos, para ver o que ninguém jamais viu, que Galileu construiu os seus instrumentos: o telescópio e depois o microscópio. Para ele, o uso prático dos aparelhos que encantaram os burgueses e os patrícios de Veneza e de Roma não é mais que um subproduto. Ora, por ricochete, a pesquisa deste fim puramente teórico produziu resultados de importância decisiva para o nascimento da técnica moderna, da técnica de precisão. Pois, para fazer aparelhos ópticos é necessário não apenas melhorar a qualidade dos vidros que se empregam, como determinar-lhes — isto é, medir primeiro e calcular depois — os ângulos de refração. É preciso melhorar ainda o seu corte, isto é, saber dar-lhes uma forma precisa, uma forma geométrica exatamente definida; e, para o fazer, é necessário construir máquinas cada vez mais precisas, máquinas matemáticas, que, tal como os próprios instrumentos, pressupõem a substituição, no espírito dos seus inventores, do universo do aproximadamente16 pelo universo da precisão. Por conseguinte, não foi de modo algum por acaso que o primeiro instrumento óptico foi inventado por Galileu e a primeira máquina moderna destinada a talhar vidros parabólicos por Descartes.
Ora, se é na e pela invenção do instrumento óptico que se efetua a penetração e se estabelece a intercomunicação entre os dois mundos — o mundo da precisão astral e o do aproximadamente do mundo cá de baixo — , se é por esse canal que se opera a fusão da física celeste com a física terrestre, é por outro ângulo que a noção de precisão acaba por se introduzir na vida quotidiana, se incorpora nas relações sociais e transforma, ou pelo menos modifica, a estrutura do próprio senso comum: refiro-me ao cronômetro — o instrumento de medir o tempo.
Os aparelhos de medir o tempo não aparecem senão muito tarde na história da humanidade17. E isso compreende-se porque, ao contrário do espaço, que, sendo essencialmente mensurável, sendo talvez a própria essência do mensurável, não se nos oferece a não ser como qualquer coisa a medir, o tempo, sendo essencialmente não mensurável, nunca se nos apresenta senão como provido já de uma medida natural, cortado já em fatias pela sucessão das estações e dos dias, pelo movimento — e os movimentos — do relógio celeste, que a natureza previdente teve o cuidado de pôr à nossa disposição. Fatias um pouco espessas, sem dúvida. E bastante mal definidas, imprecisas, de duração desigual: mas que importância pode isso ter no quadro da vida primitiva, da vida nômada, ou mesmo da vida agrícola? A vida desenrola-se entre o erguer e o pôr do Sol, com o meio-dia como ponto de divisão. Um quarto de hora, ou mesmo uma hora a mais ou a menos não mudam absolutamente nada. É apenas a civilização urbana, evoluída e complexa, que, por exigências precisas da sua vida pública e religiosa, pode vir a sentir a necessidade de saber a hora, de medir um intervalo de tempo. E só então que surgem os relógios. Ora, mesmo nessa altura, na Grécia como em Roma, a vida quotidiana escapa à precisão — muito relativa, aliás — dos relógios. A vida quotidiana move-se no aproximadamente do tempo vivido.
O mesmo se passa na Idade Média e mais tarde ainda. Sem dúvida, a sociedade medieval tem sobre a antiga a insigne vantagem de haver abandonado a hora variável e de a ter substituído por uma hora de valor constante. Mas não sente grande necessidade de conhecer melhor esta hora. Perpetua, como muito bem no-lo diz L. Febvre, «os hábitos de uma sociedade de camponeses, que aceitam nunca saber a hora certa senão quando o sino toca (supondo-o bem regulado) e que para o resto se limitam a observar as plantas e os animais, o voo de certo pássaro e o canto de tal outro». «Cerca do nascer do Sol», ou então «cerca do pôr do Sol».
A vida quotidiana está dominada pelos fenômenos naturais, pelo nascer e pôr do Sol — levantam-se cedo e não se deitam tarde —18, e o dia é marcado, mais que medido, pelo toque dos sinos que anunciam «as horas» — as horas dos serviços religiosos muito mais do que as do relógio.
Certos historiadores, e não dos menores, insistiram, aliás, na importância social desta sucessão regular dos atos e cerimônias da vida religiosa, que, sobretudo nos conventos, submetia a vida ao ritmo rígido do culto católico; ritmo que requeria, e exigia mesmo, a divisão do tempo em intervalos estritamente determinados e que, portanto, implicava a sua medida. Foi nos mosteiros, e por necessidades do culto, que terão nascido e se terão propagado os relógios, e terá sido este hábito da vida monástica, o hábito de se conformar com a hora, que, difundindo-se em redor da muralha conventual, impregnou e informou a vida citadina, fazendo-a passar do plano do tempo vivido ao do tempo medido.
Há, sem dúvida, algo de verídico no que acabo de expor, bem como na famosa boutade do abade de Thélème: «As horas são feitas para o homem, e não o homem para as horas», citada, muito a propósito, por L. Febvre. Sentimos aqui perpassar o vento da revolta do homem natural contra a imposição da ordem e a escravatura da regra. E, todavia, não nos deixemos laborar em erro: a ordem e o ritmo não são a medida, o tempo marcado não é o tempo medido. Continuamos ainda no aproximadamente, no mais ou menos; estamos a caminho, mas apenas a caminho do universo da precisão.
Com efeito, os relógios medievais, os relógios de pesos, cuja invenção constitui uma das grandes glórias do pensamento técnico da Idade Média, não eram propriamente precisos, muito menos, em todo o caso, que os relógios de água da antiguidade, pelo menos na época imperial. Eram — e é evidente que isto se aplica muito mais aos relógios dos conventos do que aos das cidade — «máquinas robustas e rudimentares a que era necessário dar corda várias vezes nas vinte e quatro horas» e que era preciso cuidar e vigiar constantemente. Nunca indicavam as subdivisões da hora, e mesmo as horas indicavam-nas com uma margem de erro que tornava o seu uso praticamente sem valor, mesmo para as pessoas da época, pouco exigentes na matéria. Portanto, não tinham, de modo algum, suplantado aparelhos mais antigos. «Em grande número de casos [as horas] não eram ditas, e aproximadamente, aos vigilantes noturnos, a não ser por clepsidras de areia ou água que tinham a incumbência de virar. Gritavam do alto das torres as indicações que estas lhes forneciam e os vigias repetiam-nas pelas ruas.»
Ora, se os grandes relógios públicos dos séculos XV e XVI, relógios astronômicos e de figuras que Willis Milham nos descreve tão bem, não são propriamente simples; se, ao mesmo tempo, graças ao emprego do foliot e da roda de escape, são sensivelmente mais precisos que as máquinas antigas de movimento contínuo, são, em contrapartida, extremamente raros, porque, graças à sua complexidade, não só são muitíssimo difíceis (e demorados) de construir, como extremamente caros. Tão caros, que apenas as cidades muito ricas, como Bruges ou Estrasburgo, ou o imperador da Alemanha e os reis de Inglaterra e de França — que dotam com eles as suas capitais — , se podem oferecer tal luxo. O mesmo se passa praticamente com os relógios domésticos da época: relógios murais de pesos, simples reduções, bastante grosseiras quanto ao seu mecanismo, dos grandes relógios públicos, relógios portáteis com molas, inventados no começo do século XVI por Pierre Hanlein, de Nuremberga (relógios de mesa e relógios de mostrador). Mas estes continuam a ser objetos de luxo — até mesmo de grande luxo — , e não de uso prático, pois os pequenos relógios são, com efeito, muito pouco precisos ; muito menos precisos ainda, diz-nos W. Milham, que os grandes19. Em contrapartida, são muito belos, muito caros e raros. Como L. Febvre no-lo diz: «Quanto aos particulares, quantos eram aqueles que no tempo de Pantagruel possuíam um ‘relógio de mostrador’?» O seu número, para além dos reis e dos príncipes, era ínfimo; sentiam-se orgulhosos e julgavam-se privilegiados os que possuíam, sob o nome de relógio, uma daquelas clepsidras de água, e não de areia, de que Joseph Scaliger faz o elogio pomposo no segundo Scaligerana: horiogia sunt valle recenda et praeclarum inventum. Portanto, não é de admirar que o tempo do século XVI, pelo menos na sua primeira metade, seja ainda e sempre o tempo vivido, o tempo do aproximadamente, e que, no que respeita ao tempo e a tudo mais, «reina por toda a parte, na mentalidade dos homens, a fantasia, a imprecisão e a inexatidão. E disto não faltam exemplos no fato de haver homens que não sabem exatamente a sua idade; de serem incontáveis as personagens históricas desse tempo que nos dão a escolher entre três ou quatro datas de nascimento, por vezes distantes vários anos umas das outras», mostrando haver homens que não conhecem nem o valor nem a medida do tempo.
Acabo de dizer: pelo menos na primeira metade do século XVI, porque, na segunda, a situação se modifica de modo sensível. A imprecisão e o aproximadamente reinam, sem dúvida, ainda. Mas, paralelamente ao crescimento das cidades e da riqueza urbana, ou, se o preferirmos, paralelamente à vitória da cidade e da vida urbana sobre o campo e a vida campestre, o uso dos relógios espalha-se cada vez mais. São peças sempre muito belas, muito trabalhadas, muito cinzeladas, muito caras. Mas já não são muito raras, ou, mais exatamente, tornam-se cada vez menos raras. E no século XVII deixarão completamente de o ser.
Por outro lado, o relógio evolui, melhora, transforma-se. A maravilhosa habilidade e engenhosidade não menos surpreendente dos relojoeiros (constituídos, a partir de então, numa guilda independente e poderosa), a substituição da roda reguladora pelo foliot, a invenção do stackfreed e do fuso que igualizam e uniformizam a ação da mola, fazem de um puro objeto de luxo um objeto de utilidade prática capaz de indicar as horas de uma maneira quase precisa.
Não foi, todavia, do relógio dos relojoeiros que saiu finalmente o relógio de precisão. O relógio dos relojoeiros nunca ultrapassou — e nunca poderia fazê-lo — o estádio do «quase» e o nível do «aproximadamente». O relógio de precisão, o relógio cronométrico, tem uma origem completamente diferente. Não é, de modo algum, uma promoção do relógio de uso prático. É um instrumento, quer dizer, uma criação do pensamento científico, ou, melhor ainda, a realização consciente de uma teoria. É certo que, uma vez realizado, um objeto teórico se pode tornar um objeto prático de uso corrente e quotidiano. É certo também que considerações práticas — no caso que nos interessa, o problema da determinação das longitudes, que a extensão da navegação tornava cada vez- mais urgente — podem inspirar o pensamento teórico. Mas não é a utilização de um objeto que lhe determina a natureza: é a estrutura; um cronômetro permanece um cronômetro mesmo se forem os marinheiros a utilizá-lo. Isto explica-nos por que razão não é aos relojoeiros, mas aos sábios, não a Jost Burgi e a Isaak Thuret, mas a Galileu e a Huygens (e a Robert Hook também), que remontam as grandes invenções decisivas a que devemos o relógio de pêndulo e o relógio de espiral reguladora. Tal como muito bem o diz Jacquerod, no seu prefácio ao excelente trabalho que L. Défossez20 recentemente consagrou à história da cronologia (trabalho cujo mérito consiste em recolocar a história da cronologia na história geral do pensamento científico e que tem o título característico de Os Sábios (e não Os Relojoeiros do Século XVII e a Medida do Tempo): «Os técnicos ficarão talvez surpreendidos, mesmo desiludidos, ao verificarem o pequeno papel desempenhado nesta história pelos relojoeiros práticos, comparado com a imensa importância das pesquisas dos sábios. Sem dúvida, as realizações são, em geral, obra de relojoeiros; mas as ideias, as invenções, germinam frequentemente no cérebro dos homens de ciência e vários dentre eles não receiam pôr as mãos ao trabalho e construir, eles próprios, os aparelhos, os dispositivos que imaginaram.» Este fato, que pode parecer paradoxal, é explicado, segundo Jacquerod e, bem entendido, por Défossez, «por uma razão muito precisa e, em certa medida, dupla, que faz compreender ao mesmo tempo a razão pela qual nos séculos seguintes a situação foi por vezes invertida»:
«Em primeiro lugar, esta razão consiste no fato de a medida exata do tempo ser muito mais uma necessidade capital para a ciência, a astronomia e a física do que para as atividades quotidianas e as relações sociais. Se os quadrantes solares e os relógios de foliot eram, no século XVII, largamente suficientes para o grande público, já para os sábios o não eram.» Era-lhes necessário descobrir uma medida exata. Ora «os processos empíricos eram impotentes para esta descoberta e apenas os teóricos, aqueles que precisamente nesta época elaboravam as teorias e estabeleciam as leis da mecânica racional, eram capazes de a fazer. Portanto, os físicos, os mecânicos, os astrônomos, sobretudo os maiores dentre eles, preocuparam-se com o problema a resolver pela simples razão de serem os primeiros interessados».
«O segundo lado da questão, de uma importância ainda maior, deve ser procurado nas necessidades da navegação […] No mar, a determinação das coordenadas geográficas, a determinação do ‘ponto’, é fundamental e sem ela nenhuma viagem longe das costas pode ser empreendida com alguma segurança. Se a determinação da latitude é facilitada pela observação do Sol ou da Polar, a da longitude é muito mais difícil […] exige o conhecimento da hora do meridiano de origem. E é necessário levar consigo essa hora, conservá-la preciosamente. É, pois, preciso possuir ‘um guarda-tempo’ em que se possa confiar.» «Os dois problemas, da medida e da conservação do tempo, estão naturalmente ligados de modo íntimo. O primeiro foi resolvido por Galileu e Huygens através da utilização do pêndulo. O segundo, bem mais difícil […] recebeu uma solução perfeita — pelo menos em princípio — com a invenção, devida a Huygens, do sistema balanceiro-espiral.»
«Durante os dois séculos seguintes, apenas houve aperfeiçoamentos de pormenor […] mas não mais descobertas fundamentais […] E crê-se que então o papel dos técnicos […] se tenha tornado preponderante.»
Estou mais ou menos de acordo com Jacquerod e Défossez no que respeita à explicação do papel desempenhado pela ciência teórica na invenção do cronômetro, e foi por isso que os citei tão longamente ; por isso, e também porque é muito raro encontrar um físico e um técnico — Défossez é um técnico de relojoaria — não infectados pelo vírus da epistemologia empirista e positivista, que fez, e faz ainda, tantas devastações entre os historiadores do pensamento científico. Todavia, não estou inteiramente de acordo com eles. Particularmente, não acredito no papel preponderante do problema das longitudes; creio que Huygens teria empreendido e continuado as suas pesquisas sobre o movimento pendular e o movimento circular, o isocronismo e a força centrífuga, ainda que não tivesse sido estimulado pela esperança de ganhar 10 000 libras (que, aliás, não ganhou), simplesmente porque eram problemas que se impunham à ciência do seu tempo.
Pois, se pensarmos que, para determinar o valor da aceleração, Galileu, quando das suas famosas experiências do corpo rolando sobre um plano inclinado, foi obrigado a empregar uma clepsidra de água, clepsidra muito mais primitiva na sua estrutura que a de Ctesíbio e que, por esse motivo, obtivera números completamente falsos), e que Riccioli, em 1647, para estudar a aceleração dos corpos em queda livre, fora obrigado a montar um relógio humano21, dar-nos-emos conta da impropriedade dos relógios usuais no emprego científico e da urgência absoluta, para a mecânica física, de descobrir um meio de medir o tempo. Portanto, é perfeitamente compreensível que Galileu se tenha preocupado com a questão: para quê, com efeito, possuir fórmulas que permitem determinar a velocidade de um corpo a cada instante da sua queda em função da aceleração e do tempo decorrido, se não é possível medir nem a primeira nem o segundo?
Ora, para medir o tempo — já que não é possível fazê-lo diretamente — é indispensável utilizar um fenômeno que o encarna de uma maneira apropriada; o que significa quer um processo que se desenrola de uma maneira uniforme (velocidade constante), quer um fenômeno que, não sendo ele mesmo uniforme, se reproduz periodicamente na sua identidade (repetição isócrona). Foi para a primeira solução que se orientou Ctesíbio, ao manter constante o nível da água num dos recipientes da sua clepsidra, de onde, por este motivo, ela escorria para o outro com uma velocidade constante; foi para a segunda que se orientou Galileu (e Huygens) ao descobrir nas oscilações do pêndulo um fenômeno que se reproduz eternamente.
Mas é evidente — ou, pelo menos, deveria ser evidente — que uma tal descoberta não pode ser fruto do empirismo. É claro que nem Ctesíbio, nem Galileu — que os historiadores de ciências colocam, todavia, entre os empiristas, ao louvá-los por terem estabelecido, através de experiências, alguma coisa que não podia ser estabelecida por elas — puderam estabelecer, quer a constância do fluxo, quer o isocronismo da oscilação através de medidas empíricas. Quando mais não fosse, pela razão muito simples — mas inteiramente suficiente — de lhes faltar precisamente aquilo com que teriam podido medi-las; por outras palavras, o instrumento de medida que a constância do esvaziamento ou o isocronismo do pêndulo iam justamente permitir realizar.
Não foi por ver balançar o grande candelabro da Catedral de Pisa que Galileu descobriu o isocronismo do pêndulo, uma vez que esse candelabro não foi aí colocado senão após a sua partida da cidade natal — mas é inteiramente possível que tenha sido um espetáculo deste gênero que o tenha incitado a meditar sobre a estrutura própria do vaivém: as lendas contêm quase sempre um elemento de verdade — neste caso, o estudar matematicamente, a partir das leis do movimento acelerado, que tinha estabelecido por meio de uma dedução racional, a queda dos corpos graves ao longo das cordas de um círculo colocado verticalmente. Ora foi apenas então, isto é, depois da dedução teórica, que ele pôde pensar numa verificação experimental (cuja finalidade não era de modo algum confirmar esta, mas descobrir de que maneira essa queda se realiza in rerum natura, isto é, como se comportam os pêndulos reais e materiais que oscilam, não no espaço puro da física, mas sobre a terra e no ar) e, realizada a experiência com sucesso, tentar construir um instrumento que permitisse utilizar, na prática, a propriedade mecânica do movimento pendular.
Foi exatamente da mesma maneira, isto é, através de um estudo puramente teórico, que Huygens descobriu o erro da extrapolação galilaica e demonstrou que o isocronismo se realiza, não segundo o círculo, mas segundo a ciclóide; foram considerações puramente geométricas que lhe permitiram encontrar o meio de realizar — em teoria — o movimento cicloidal. E foi nesse momento que se lhe pôs — tal como o que se tinha passado com Galileu — o problema técnico, ou, mais exatamente, tecnológico, da realização efetiva, isto é, da execução material do modelo que tinha concebido. Portanto, não é de admirar que — como Galileu antes, ou Newton depois dele — tivesse necessidade de «pôr as mãos ao trabalho». Tratava-se justamente de ensinar aos «técnicos» qualquer coisa que eles nunca tinham feito e de inculcar na profissão, na arte, na techne, regras novas, as regras de precisão da episteme.
A história da cronometria oferece-nos um exemplo marcante — talvez o mais marcante de todos — do nascimento do pensamento tecnológico, que progressivamente penetra e transforma o pensamento e a realidade técnica ela própria e que a eleva a um plano superior. O que, por sua vez, explica que os técnicos, os relojoeiros do século XVIII, tenham podido melhorar e aperfeiçoar os instrumentos que os seus antecessores não foram capazes de inventar: é que eles viviam num outro «clima» ou «meio» técnico e estavam contaminados pelo espírito da precisão.
Já o disse, mas convém repeti-lo: é pelo instrumento que a precisão toma corpo no mundo do aproximadamente; é na construção dos instrumentos que se afirma o pensamento tecnológico; é para a sua construção que se inventam as primeiras máquinas precisas. Ora é pela precisão das suas máquinas, resultado da aplicação da ciência à indústria, tal como pela utilização de fontes de energia e de materiais que a natureza não nos entrega como tais, que se caracteriza a indústria da idade paleotécnica, a idade do vapor e do ferro, a idade tecnológica no decurso da qual se efetua a penetração da técnica pela teoria.
E é pela supremacia da teoria sobre a prática que poderíamos caracterizar a técnica da segunda revolução industrial, para empregar a expressão de Friedmann, como a da indústria neotécnica da idade da eletricidade e da ciência aplicada. É pela sua fusão que se caracteriza a época contemporânea: dos instrumentos que têm a dimensão de fábricas e de fábricas que possuem toda a precisão dos instrumentos.
(Cf. Critique, n.°s 23 e 26 supra, pp. 305 e segs ↩
A ciência grega lançou, por certo, no seu estudo dos «cinco poderes» (as máquinas simples), as bases da tecnologia. Nunca a desenvolveu. Portanto, a técnica antiga permaneceu no estádio pré-tecnológico, pré-científico, apesar da incorporação de numerosos elementos da ciência geométrica e mecânica (estática) na techne. ↩
Que foi assim, não somente no domínio das ciências biológicas, mas também no da física, foi, como sabemos, a opinião de Leibniz («Lettre à Foucher», cerca de 1668, in Philosophische Schriften, ed. Gerhardt, vol. I, p. 392: «Considero demonstrável não haver figura exata nos corpos») e, mais perto de nós, de Émile Boutroux e Pierre Duhem, que insistiram no caráter de aproximação das leis estritas da mecânica racional. Cf. G. Bachelard, La Formation de l’esprit scientifique, Paris, 1927, p. 216, e os meus Études galiléennes, Paris, 1939, pp. 272 e segs. ↩
Nada é mais preciso do que o desenho da base, ou do capitel, ou do perfil de uma coluna grega: nada é melhor calculado — nem com mais cuidado — do que as suas distâncias respectivas. Mas é a arte que os impõe à natureza. Passa-se o mesmo no que respeita à determinação das dimensões das rodas dentadas ou dos elementos duma balista. ↩
Vitrúvio transmite-nos o desenho de um teodolito, que permite medir os ângulos horizontais e verticais e, portanto, determinar distâncias e alturas. A medida exata existe também no que respeita à pesagem dos metais preciosos. ↩
O senso comum não é algo de absolutamente constante: nós já não vemos a abóbada celeste. O mesmo se passa com o pensamento técnico tradicional, as regras das profissões : a techne pode absorver — e fá-lo no decurso da sua história — os elementos do saber científico. Há muito de geometria (e um pouco de mecânica) na techne de Vitrúvio; também existe outro tanto, ou quase, nos mecânicos, nos construtores, nos engenheiros e nos arquitetos medievais. Sem falar dos do Renascimento. ↩
L. Febvre, Le Problème de l’incroyance au XVIe siècle, 2.» ed., Paris, 1946 ↩
Recordemos o que William Gilbert disse dele: «He writes philosophy like a Lord Chancelor.» ↩
Emprego a terminologia, extremamente sugestiva, de Lewis Munford, Technics and Civilisation, 4. ed., Nova Iorque, 1946 ↩
Encontra-se um resumo muito bem organizado desta literatura na obra de Th. Beck Beiträge zur Geschichte des Maschinenbaus, Berlim, 1900 ↩
O comum dos mortais. Mesmo as pessoas instruídas. ↩
A ciência grega não desenvolveu a «logística». O que não impediu que Arquimedes calculasse o número de pi com uma aproximação de uma precisão surpreendente. Mas tratava-se de matemáticos. E os cálculos tinham um valor científico. Para os usos da vida quotidiana era-se menos exigente: calculava-se com fichas. ↩
Foi Galileu que os ensinou a fazê-lo ↩
Não se olha enquanto não se sabe se há alguma coisa a ver, e sobretudo se sabemos que não há nada a ver. A inovação de Leeuwenhoek consiste principalmente na sua decisão de olhar. ↩
O óculo de longo alcance não é um telescópio: ter transformado o primeiro no segundo é justamente o mérito de Galileu. ↩
Foi com a invenção dos instrumentos científicos — e o seu fabrico — que se realizou o progresso técnico e tecnológico que precedeu, e tornou possível, a revolução. Acerca do fabrico de instrumentos científicos cf. Daumas, Les instruments scientifiques aux XVIIe et XVIIIe siècles, Paris, 1953. ↩
Willis Milham, Time and timekeepers, Nova Iorque, 1945. ↩
As pessoas não sabem iluminar-se. ↩
Quanto aos relógios portáteis, relógios de viagem, relógios de bolso, estes não somente não são precisos, como ainda, tal como nos diz Jérôme Cardan, num texto que deve ter escapado aos historiadores da relojoaria e para o qual chamo a vossa atenção, passam mais tempo no relojoeiro do que com o seu possuidor. Cf. Hieronimus Cardanus, De rerum varietate, I. IX, cap. XLVII, Paris, 1663, pp. 185 e segs. ↩
L. Défossez, Les Savants du XVIIe siècle et Ia mesure du temps, Lausana, 1946. ↩
Cf. os meus artigos «Galileu e a experiência de Pisa», in Annales de l’Université de Paris, 1936, e «An experiment in measurement», in American Philosophical Society, Proceedings, 1952. ↩