Koyré: Do Mundo Fechado ao Universo Infinito (Prefácio)

Excertos de DO MUNDO FECHADO AO UNIVERSO INFINITO

Vezes sem conta, ao estudar a história do pensamento científico e filosófico dos séculos XVI e XVII — na verdade, estão de tal forma entrelaçados e vinculados que, separados, se tornam ininteligíveis —, vi-me forçado a reconhecer, como muitos outros antes de mim, que durante esse período o espírito humano, ou pelo menos o europeu, sofreu uma revolução profunda, que alterou o próprio quadro e padrões de nosso pensamento, e da qual a ciência e a filosofia modernas são, a um só tempo, raiz e fruto.

Essa revolução ou, como já foi chamada, essa “crise de consciência europeia”, foi descrita e explicada de muitas formas. Assim, conquanto se admita geralmente que o surgimento da nova cosmologia — que substituiu o mundo geocêntrico, ou mesmo antropocêntrico, da astronomia grega e medieval, pelo universo heliocêntrico e, posteriormente, acêntrico, da astronomia moderna — desempenhou um papel fundamental nesse processo, alguns historiadores, interessados principalmente nas implicações sociais das mudanças espirituais, têm dado realce à suposta conversão do espírito humano da teoria para a praxis, da scientia contemplativa para a scientia activa et operativa, o que transformou o homem de espectador em proprietário e senhor da natureza; outros salientaram a substituição do modelo teleológico e organicista do pensamento e da explicação pelo modelo mecânico e causai, que levou, em última instância, à “mecanização da concepção do mundo”, que ocupa lugar tão destacado nos tempos modernos, sobretudo no século XVIII; outros simplesmente descreveram o desespero e a confusão trazidos pela “nova filosofia” a um mundo do qual havia desaparecido toda coerência e no qual os céus já não proclamavam a glória de Deus.

Quanto a mim, tentei em meu livro Galilean studies definir os modelos estruturais da antiga e da nova concepção do mundo, e determinar as mudanças acarretadas pela revolução do século XVII. Essas mudanças me pareciam ser redutíveis a duas ações fundamentais e estreitamente relacionadas entre si, que caracterizei como a destruição do cosmos e a geometrização do espaço, ou seja, (a) a substituição da concepção do mundo como um todo finito e bem ordenado, no qual a estrutura espacial materializava uma hierarquia de perfeição e valor, por um universo indefinido ou mesmo infinito, não mais unido por subordinação natural, mas unificado apenas pela identidade de seus componentes supremos e básicos; e (b) a substituição da concepção aristotélica do espaço, um conjunto diferenciado de lugares intra-mundanos, pela concepção da geometria euclidiana — uma extensão essencialmente infinita e homogênea —, a partir de então considerada como idêntica ao espaço real do mundo. A mudança espiritual que descrevi não ocorreu, naturalmente, em uma mutação súbita. Também as revoluções precisam de tempo para se consumar; também as revoluções têm uma história. Assim, as esferas celestiais que continham o mundo e o mantinham íntegro não desapareceram de uma vez, em uma colossal explosão; a bolha terrestre cresceu e inchou antes de rebentar e fundir-se no espaço que a circundava.

O caminho que levou do mundo fechado dos antigos para o aberto dos modernos não foi, na verdade, muito longo: pouco mais de cem anos separam De revolutionibus orbium coelestium, de Copérnico (1543), dos Principia philosophiae, de Descartes (1644); pouco mais de quarenta vão deste Principia aos Philosophia naturalis principia mathematica, de Newton (1687). Por outro lado, esse caminho foi bastante difícil, pontilhado de obstáculos e passagens perigosas. Ou, para usarmos linguagem mais simples, os problemas envolvidos na infinitização do universo são por demais profundos, as implicações das soluções demasiado amplas e importantes para permitirem um progresso desimpedido. A ciência, a filosofia e até mesmo a teologia mostram interesse legítimo por questões sobre a natureza do espaço, a estrutura da matéria, os padrões de ação e, last but not least, sobre a natureza, a estrutura e o valor do pensamento e da ciência humana. Assim, a ciência, a filosofia e a teologia, representadas frequentemente pelos mesmos homens — Kepler e Newton, Descartes e Leibniz — tomam parte no grande debate iniciado com Bruno e Kepler e que termina (provisoriamente, decerto) com Newton e Leibniz.

Não tratei desses problemas em Galilean studies, em que descrevo apenas os estádios que conduziram à grande revolução e que formaram, por assim dizer, sua pré-história. Mas, em minhas conferências na Johns Hopkins University, intituladas “As origens da ciência moderna”, em 1951, e “Ciência e filosofia na era de Newton”, em 1952, nas quais estudei a própria história dessa revolução, tive oportunidade de tratar, como mereciam, as questões que avultavam nas mentes de seus protagonistas. E essa história que, com o título de Do mundo fechado ao universo infinito, procurei narrar nas Noguchi Lecture, que tive a honra de proferir em 1953; e é exatamente a mesma história que, como que retomando o fio de Ariadne, reconto neste volume; este livro representa, na verdade, tão-somente uma versão ampliada das Noguchi Lecture.