Destas considerações sobre a polêmica aberta na Inglaterra em torno das investigações físicas mais características da hora atual se depreende, pelo menos, que esta grande ciência atravessa uma etapa perigosa. Perigosa porque caminha sem clareza suficiente sobre si mesma. Não se sabe bem qual é o caráter de conhecimento próprio à física. Não se sabe bem qual é o papel da experiência e o do puro raciocínio na faina de sua edificação. E nem sequer se sabe bem o que seus grandes iniciadores dos séculos XVI e XVII — Kepler, Galilei, Newton — pretenderam fazer.
Porque dar como coisa patente e indiscutível, consoante intenta o Dr. Dingler, que a obra de Galilei consiste em desprezar os raciocínios a priori, como fundamento da física, e partir, sem mais, da observação, é uma arbitrariedade do enérgico doutor.
Conceda-me o leitor a satisfação de ler agora o que, em 1927, escrevia eu como nota a meu ensaio “La filosofia de la historia de Hegel y la historiologia”1:
“Nada houvera surpreendido tanto a Galilei, Descartes e demais instauradores da nuova scienza como saber que três séculos mais tarde seriam considerados como os descobridores e entusiastas do ‘experimento’. Ao estatuir Galilei a lei do plano inclinado, foram os escolásticos aqueles que se faziam fortes no experimento contra aquela lei. Porque, com efeito, os fenômenos contradizem a fórmula de Galilei. É este um bom exemplo para entender o que significa a ‘análise da natureza’ diante da simples observação dos fenômenos. O que observamos no plano inclinado é sempre um desvio da lei da queda dos corpos, não somente no sentido de que nossas medidas dão apenas valores aproximados àquela, senão que o fato tal e como se apresenta não é uma queda. Ao interpretá-lo como uma queda, Galilei começa por negar o dado sensível, se volta contra o fenômeno e opõe a ele um ‘fato imaginário’, que é a lei: o puro cair no puro vazio de um corpo sobre outro. Isto lhe permite decompor (analisar) o fenômeno, medir o desvio entre este e o comportamento ideal de dois corpos imaginários. Esta parte do fenômeno, que é desvio da lei da queda, é, por sua vez, interpretada imaginariamente como choque com o vento e roçar do corpo sobre o plano inclinado, que são outros dois fatos imaginários, outras duas leis. Depois pode recompor-se o fenômeno, o fato sensível como intersecção dessas várias leis, como combinação de vários fatos imaginários.
“O que interessa a Galilei não é, pois, adaptar suas ideias aos fenômenos, mas, ao contrário, adaptar os fenômenos mediante uma interpretação a certas ideias rigorosas e, a priori, independentes do experimento; em suma, a formas matemáticas. Esta era sua inovação; portanto, tudo o contrário do que vulgarmente se acreditava há cinquenta anos. Não observar, mas construir a priori, matematicamente, é o específico do galileismo. Por isso dizia para diferenciar seu método: ‘Giudicare, signore Rocco, qual dei due modi di filosofare cammini più a segno, o il vostro físico puro e simplice bene, o il mio condito con qualche spruzzo di matematica’ (Opere, II, 329) .
“Com clareza quase ofensiva aparece éste espírito num lugar de Toscanelli: ‘Che i principii della dottrina de motu siano veri o falsi a me importa poquissimo. Poiché se non son veri, fingasi che sian veri conforme habbiamo supposto, e poi prendasi tutte le altre specoíazioni derívate da essi principa non come cosi miste, ma pure geometrich. Io fingo o suppongo que qualch corpo o punto se mouova all (ingiù de all’insù con la nota proporzione e horizontalmente con moto equabile. Quando questo sia io dico che seguirá tutto quello che ha detto il Galilei, ed io anchora. Se poi le palle di piombo, di ferro, di pietra, non osservano quella supposta proporzione, suo danno, noi diremmo che non parliamo di esse’ (Opere, ed. Faenza, 1919, vol. III, 357).
“De modo que se os fenômenos — as bolas de chumbo, de ferro e de pedra — não se comportam consoante nossa construção, pior para elas, suo danno.
“Claro está que a física atual se diferencia muito da de Galilei e Toscanelli, não somente por seu conteúdo, mas por seu método. Mas esta diferença metódica não é contraposição, senão ao contrário, continuação e aperfeiçoamento, depuração e enriquecimento daquela tática intelectual descoberta pelos gigantes do pós-renascimento.”
Dez anos se passaram e, ao que pôde ver o leitor, toda a vanguarda da física vem a coincidir da maneira mais literal com aquela caracterização minha, incluindo nela as frases dos clássicos que eu adotava, uma das quais, a mais audaz, a de Toscanelli, era bem pouco conhecida. Como Milne diz, provocando a zanga de Dingler: “Não importa que as coisas não coincidam com o pormenor da construção matemática” (Milne fala propriamente da extrapolação), o grande Toscanelli diz que se as coisas não se comportam como a teoria, “pior para elas”. Ora, Toscanelli é o máximo discípulo de Galilei e é o chefe da geração imediata a este. Que resta da patética afirmação do Dr. Dingler sobre a fidelidade sem par ao programa galileano das gerações subsequentes? Claro que, no fundo, tem razão, contra sua vontade. Toscanelli é fiel a Galilei, porque o programa de Galilei não é o que o Dr. Dingler supõe.
Quando, na altura de 1920 ou 1921 Einstein visitou Madrid me ocorreu dizer-lhe: “Acabará o senhor fazendo da física uma geometria!” Não são para serem enunciadas aqui as razões que me moviam já naquela época a pensar assim, porque sua compreensão requer inexcusavelmente certo, ainda que bem modesto, tecnicismo. (Para o leitor matemático me basta referir-me à evidente tendência que manifestava desde logo a mecânica relativista em absorver a dinâmica na cinemática.) Os que assim são para dizer são os espantos que fez Einstein, os olhos estupefactos que pôs. Era toda a cenografia e o jogo pantomímico com que se costuma enfrentar a audição de uma gigantesca estupidez, uma dessas cretinices sem tratamento nem ortopedia possíveis . Estou tão convencido de que vimos a este mundo para não entender-nos uns aos outros, somos na mútua incompreensão tão geniais e empregamos tal refinamento, que se tornou para mim em regozijante diversão estudar esta arte de não entender-nos, analisar suas diferentes formas e reconstruir em cada caso seu mecanismo. A diversão chega ao superlativo quando o mal-entendido sou eu e diante de mim vejo uma pessoa convencida plenamente de que sou um imbecil. Neste alvoroço entre o altruísmo muito mais do que se suspeita, porque na maioria das ocasiões eu sei que o outro necessita acreditar que sou um imbecil, convém-lhe convencer-se disso para nutrir a fé em si mesmo que leva ferida ou claudicante. Faço-lhe, pois, um grande favor sendo eu um mentecapto. Não era este, está claro, o caso de Einstein, pelo menos naquele momento. Poucos homens tiveram tanto direito como ele em acreditar em si mesmos, posto que vinham a adular-lhe até as próprias constelações . Precisamente sua cerração — que é enorme — provém do mecanismo inverso. Para compreender temos que estar bastante alerta, isto é, bem prevenidos de que não vamos compreender . Ora, é isto muito difícil quando o Zodíaco veio a dar-nos de golpe a razão e passeamos pelo planeta, levando como balangandãs, dependurados na corrente do relógio, o próprio Sagitário e o Leão, a Balança e a Virgem. Por isso Einstein se crê com certo direito a não dizer mais que parvoíces quando fala de assuntos alheios à física.
E mesmo neste assunto que pertencia à física podia ter-se poupado os espantos. E, com efeito, um fato que hoje Milne chama com todas suas letras geometria à física que se está fazendo e que declara ter sido levado a esta direção pela teoria da relatividade.
Mas não olvidemos, antes de tudo, e depois de tudo, o principal ensinamento que desta cacofonia na física devemos reter: a falta de clareza em que esta ciência se acha hoje com referência a si mesma como ciência. Porque esta conversão da física em geometria que a vanguarda da física está executando não é mais, como o próprio Milne diz, que um “fato surpreendente”, isto é, um fenômeno surgido na vida do pensamento, mas cujo sentido e cujos fundamentos não conhecemos.
E esta falta de clareza na ciência mais exemplar procede da mesma causa que a falta de clareza reinante hoje nas demais ordens da vida; por exemplo, na política, a saber: da resistência anárquica a submeter toda disciplina a uma filosofia que o seja de verdade, portanto, que seja uma arquitetura radical de nossas ideias. Como uma coletividade numerosa não pode viver sem um poder público e sua política, a exuberante civilização europeia não pode existir sem a instância última de uma filosofia. Nem sequer durante a Idade Média foi isto possível, apesar de que a Religião conservava toda sua vigência sobre as almas. O escolasticismo foi durante muitos séculos o agente policial das ideias ocidentais, inclusive das ideias teológicas.
La Nación, de Buenos Aires, 7 de novembro de 1937.
Veja-se o livro Goethe desde dentro, Madrid, 1933, [Tomo IV das Obras Completas] ↩