Simondon (MEOT:51-52) – Juízo de valor do objeto técnico

Por fim, considerado como objeto de um juízo de valores, o objeto técnico pode suscitar atitudes muito diferentes, conforme seja tomado no nível do elemento, do indivíduo ou do conjunto. No nível do elemento, seu aperfeiçoamento não provoca nenhum transtorno que produza angústia por entrar em conflito com os hábitos adquiridos: assim foi o clima de otimismo do século XVIII, ao introduzir a ideia de um progresso contínuo e infinito, portador de uma melhora constante da condição humana. Ao contrário, o indivíduo técnico, durante algum tempo, torna-se o adversário do homem, seu concorrente, pois na época em que só existiam as ferramentas o homem centralizava em si a individualidade técnica; a máquina toma o lugar do homem porque este exercia uma função de máquina, de portador de ferramentas. A essa fase corresponde uma concepção dramática e apaixonada do progresso, que se transforma em violação da natureza, conquista do mundo, captação de energias. Essa vontade de poder se exprime através do descomedimento tecnicista e tecnocrático da era da termodinâmica, que tem uma expressão ao mesmo tempo profética e cataclísmica. Por último, no nível dos conjuntos técnicos do século XX, a energética termodinâmica é substituída pela teoria da informação, cujo conteúdo normativo é eminentemente regulador e estabilizador: o desenvolvimento das técnicas aparece como uma garantia de estabilidade. A máquina, como elemento do conjunto técnico, torna-se aquilo que aumenta a quantidade de informação, aquilo que aumenta a neguentropia,1 aquilo que se opõe à degradação da energia: a máquina, obra de organização, de informação, é aquilo que, tal como a vida e com a vida, se opõe à desordem, ao nivelamento de todas as coisas, que tende a privar o Universo de poderes de mudança. Através da máquina o homem se opõe à morte do Universo. Tal como a vida, ela torna mais lenta a degradação da energia e passa a ser estabilizador do mundo.

Essa modificação do olhar filosófico sobre o objeto técnico anuncia a possibilidade de uma introdução do ser técnico na cultura: essa integração, que não pôde se efetuar de maneira definitiva nem no nível dos elementos nem no nível dos indivíduos, poderá ocorrer, com maior chance de estabilidade, no nível dos conjuntos. Tornada reguladora, a realidade técnica poderá integrar-se à cultura, que é essencialmente reguladora. Na época em que a tecnicidade residia nos elementos, essa integração só podia ocorrer por acréscimo. Na época em que ela residia nos novos indivíduos técnicos, só podia ocorrer por arrombamento e revolução. Atualmente, a tecnicidade tende a residir nos conjuntos. Por isso pode tornar-se um fundamento da cultura, à qual trará poder de unidade e estabilidade ao adequá-la à realidade que ela exprime e regula.


  1. Neguentropia, ou entropia negativa, designa a propriedade que as máquinas processadoras de informação têm de deter ou reverter a entropia. Esta última, um conceito fundamental da termodinâmica, é uma medida da desordem de um sistema. [N.T.]