Arendt – Trabalho, Instrumentos e Ferramentas

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

É verdade que o enorme aperfeiçoamento de nossos instrumentos de trabalho — os robôs mudos com os quais o homo faber acorreu em auxílio do animal laborans, em contraposição aos instrumentos humanos dotados de fala (o instrumentam vocale, como foi chamado o escravo doméstico dos antigos), aos quais o homem de ação tinha que subjugar e oprimir sempre que desejava libertar o animal laborans de sua servidão — tornou o duplo labor da vida, o esforço de sua manutenção e a dor de gerá-la, mais fácil e menos doloroso do que jamais foi antes. Isto, naturalmente, não eliminou a compulsão da atividade do labor, nem eliminou da vida humana a condição de sujeição à necessidade. Mas, ao contrário do que ocorria na sociedade de escravos, na qual a «maldição» da necessidade era uma realidade muito vívida porque a vida do escravo testemunhava diariamente o fato de que a «vida é escravidão», esta condição já não é hoje inteiramente manifesta; e, por não parecer tanto, torna-se muito mais difícil notá-la ou lembrá-la. O perigo aqui é óbvio. O homem que ignora ser sujeito à necessidade não pode ser livre, uma vez que sua liberdade é sempre conquistada mediante tentativas, nunca inteiramente bem sucedidas, de libertar-se da necessidade. E, embora possa ser verdade que o que mais fortemente o impele a buscar essa liberdade é sua «repugnância à futilidade», é também possível que o impulso enfraqueça à medida em que essa «futilidade» parece mais fácil e passa a exigir menor esforço. Pois ainda é provável que as enormes mudanças da revolução industrial, no passado, e as mudanças ainda maiores da revolução atômica no futuro sejam apenas mudanças do mundo, e não mudanças da condição básica da vida humana na Terra.

As ferramentas e instrumentos que podem suavizar consideravelmente o esforço do labor não são, eles mesmos, produtos do labor, mas do trabalho; não pertencem ao processo do consumo: são parte integrante do mundo de objetos de uso. O papel que desempenham, por maior que seja para o labor de qualquer civilização, jamais pode atingir a importância fundamental que os instrumentos têm para todo tipo de trabalho. Nenhum trabalho pode ser produzido sem instrumentos: o aparecimento do homo faber e o surgimento de um mundo de coisas, feito pelo homem, são, na verdade, contemporâneos da descoberta de instrumentos e ferramentas. Do ponto de vista do labor, as ferramentas reforçam e multiplicam a força humana até quase substituí-la, como ocorre em todos os casos nos quais as forças naturais, como os animais domésticos, a força hidráulica ou a eletricidade, e não coisas materiais, são domadas pelo homem. Da mesma forma, os instrumentos aumentam a fertilidade natural do animal laborans e produzem uma abundância de bens de consumo. Mas todas estas mudanças são de natureza quantitativa, ao passo que a própria qualidade das coisas fabricadas, desde o mais simples objeto de uso até a obra-prima de arte, depende intimamente da existência de instrumentos adequados.

Além disto, as limitações dos instrumentos no tocante à atenuação do labor da vida — o simples fato de que os serviços de um único servo jamais podem ser inteiramente substituídos por uma centena de aparelhos na cozinha ou por meia dúzia de robôs no subsolo — são de natureza fundamental. Prova curiosa e inesperada deste fato é que ele pôde ser previsto milhares de anos antes do fabuloso desenvolvimento de instrumentos e máquinas. Em tom meio fantasioso e meio irônico, Aristóteles imaginou, certa vez, aquilo que, de lá para cá, já se tornou realidade, ou seja, que «cada instrumento fosse capaz de executar o seu trabalho quando se lho ordenasse … como as estátuas de Dédalo ou as trípodes de Hefesto que, segundo diz o poeta, ‘de moto próprio, vinham ter aos deuses’». Assim, a «lançadeira teceria e o plectro tangeria a lira sem que a mão humana os guiasse». E prossegue: isto significaria realmente que o artífice já não dependeria de assistentes humanos, mas não que os escravos domésticos pudessem ser dispensados. Pois os escravos não eram instrumentos de fazer coisas, ou da produção, mas da vida, que constantemente consome os seus serviços.1 O processo de fabricar uma coisa é limitado, e a função do instrumento atinge um fim previsível e controlado no produto acabado; o processo vital que exige o labor é uma atividade interminável, e o único «instrumento» à sua altura seria um perpetuam mobile, isto é, o instrumentam vocale, tão vivo e ativo quanto o organismo a que serve. «Dos instrumentos domésticos nada resulta além do uso da própria posse»; e é precisamente por isto que eles não podem ser substituídos pelas ferramentas e instrumentos do artífice, «dos quais resulta algo além do mero uso do instrumento.»2


  1. Aristóteles, Política 1253b30-1254a18. 

  2. Winston Ashley, op.cit., cap.5.