Pirsig (Zen:C6) – Formas de compreensão do mundo: a romântica e a clássica

[PIRSIG, Robert. Zen e a arte de manutenção de motocicletas. Tr. Celina Cardim Cavalcanti. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, Capítulo 6]

O mundo da forma subjacente é um objeto curioso de análise, pois já é, por si só, um modo de discussão. A gente pode analisar as coisas em função de sua aparência imediata ou em função de sua forma subjacente, e ao tentar analisar essas modalidades de análise envolvemo-nos no que se poderia denominar problema de base. A base a partir da qual se vão analisar essas modalidades é, nada mais nada menos, que as próprias modalidades em questão.

Eu estava analisando o mundo de Fedro, o mundo da forma subjacente, ou, pelo menos, o aspecto denominado tecnologia, de um ponto de vista externo. Agora creio que é hora de falar desse aspecto do seu ponto de vista particular. Quero falar sobre a forma subjacente do próprio mundo da forma subjacente.

Para isso, é necessário estabelecer de imediato uma dicotomia. Mas para poder utilizá-la de forma honesta, devo voltar atrás e dizer o que ela é e o que significa, o que já constitui uma longa história. É uma parte desse problema de exploração do passado. Mas neste momento eu gostaria apenas de utilizar a dicotomia, deixando as explicações para mais tarde. Quero afirmar que existem duas formas de compreensão do mundo: a romântica e a clássica. Em termos de verdade última, tal dicotomia não tem grande significado, mas revela-se bastante autêntica quando se opera dentro da modalidade clássica utilizada para descobrir ou criar o mundo da forma subjacente. Definirei a seguir os termos clássico e romântico no sentido utilizado por Fedro.

A compreensão clássica vê o mundo acima de tudo como a própria forma subjacente. A compreensão romântica o vê, antes de mais nada, em termos de aparências imediatas. Se a gente mostrar a um romântico um motor, uma planta ou um esquema de eletrônica, ele certamente não se interessará muito. Essas coisas não o atraem, porque o que ele está vendo é a superfície. Relações maçantes e complicadas de nomes, linhas e números. Nada de interessante. Mas se a gente mostrar a mesma planta ou esquema, ou fizer a mesma descrição a um clássico, ele ficará fascinado, porque ele vê sob aquelas linhas, formas e símbolos toda uma riqueza de formas subjacentes.

A modalidade romântica baseia-se, acima de tudo, na inspiração, na imaginação, na criatividade e na intuição. Predominam os sentimentos, ao invés dos fatos. A arte que se opõe à ciência é geralmente romântica. Ela não funciona em termos de razão, nem obedece a leis. Funciona na base do sentimento, da intuição e do senso de estética. Nas culturas nórdicas, o romantismo é geralmente associado à feminilidade, mas tal associação é meramente fortuita.

A modalidade clássica, entretanto, parte da razão e obedece a normas que são, por sua vez, formas subjacentes de pensamento e comportamento. Nas culturas europeias é uma modalidade predominantemente masculina. E principalmente por isso que as áreas da ciência, direito e medicina não atraem as mulheres. Embora as viagens de moto sejam românticas, a manutenção das motos é puramente clássica. A sujeira, a graxa necessárias ao domínio sobre a forma subjacente lhes emprestam tão pouco fascínio, que as mulheres nem querem saber dela.

Embora geralmente haja fealdade superficial na modalidade clássica de compreensão, tal fealdade não lhe é inerente. Existe uma estética clássica, que não chama a atenção dos românticos por ser muito sutil. O estilo clássico é direto, objetivo, simplificado, seco, econômico e cuidadosamente dimensionado. Não visa inspirar emocionalmente, mas organizar o que está confuso e conhecer o que é desconhecido. Não é um estilo esteticamente livre e espontâneo. Sua estética é controlada. Tudo nele está sob controle. Mede-se o seu valor em função da habilidade com que se mantém esse controle.

Para os românticos, essa modalidade clássica parece, muitas vezes, maçante, feia e esquisita, como a própria manutenção das motocicletas. Tudo o que se faz envolve peças, componentes, relações. Nada é concebido sem ter passado pelo computador pelo menos uma dúzia de vezes. Tudo tem que ser medido e provado. É um estilo sufocante, pesado, completamente sem graça. Uma força mortal.

Em compensação, os clássicos também têm seus preconceitos em relação ao estilo romântico. É frívolo, irracional, extravagante, instável, interessando-se predominantemente pela procura do prazer. Superficial. Sem conteúdo. Os românticos são geralmente parasitas, não podem consigo mesmos, um autêntico peso morto nas costas da sociedade. Agora essas linhas de conflito devem estar se tornando bastante familiares.

É essa a raiz do problema. As pessoas tendem a pensar e a sentir exclusivamente de acordo com uma dessas modalidades, e ao fazê-lo tendem a interpretar mal e a subestimar o significado da outra modalidade. Como ninguém está disposto a renunciar ao seu modo de enxergar a realidade, que eu saiba, até hoje ninguém conseguiu conciliar essas duas verdades ou modalidades. Não existe um ponto de união entre as duas visões da realidade.

Por isso, nos últimos tempos, observou-se uma enorme ruptura entre a cultura clássica e a contracultura romântica dois mundos cada vez mais isolados um do outro e detestados um pelo outro, todos especulando sobre o futuro, se será sempre assim mesmo, uma casa dividida em dois lados antagônicos. No fundo, ninguém quer isso apesar do que os antagonistas, do outro lado, possam estar pensando.

O que Fedro pensava e dizia era importante nesse contexto. Mas ninguém o ouviu naquela época; a princípio, consideraram-no excêntrico, depois, indesejável, depois, meio biruta, e, por fim, completamente maluco. Provavelmente ele era mesmo louco, mas a maior parte dos escritos de sua autoria correspondentes àquela época indica que o que o estava enlouquecendo era essa atitude de hostilidade em relação a ele. Os comportamentos diferentes provocam nas outras pessoas uma estranheza que tende a piorar os ditos comportamentos, e aí piora a estranheza, num processo de realimentação, até atingir alguma espécie de desenlace. Fedro, por exemplo, foi preso por ordem judicial e afastado do convívio com a sociedade.