ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
Como frequentemente ocorre com os eventos históricos, parece que as verdadeiras implicações da tecnologia, isto é, da substituição de instrumentos e utensílios por máquinas, só vieram à luz em seu derradeiro estágio, com o advento da automação. Para os fins do nosso estudo talvez seja útil lembrar, mesmo brevemente, os principais estágios do desenvolvimento da tecnologia desde o início da era moderna. O primeiro estágio, a invenção da máquina a vapor, que levou à revolução industrial, era ainda caracterizado pela imitação de processos naturais e pelo uso de forças naturais para finalidades humanas que, em princípio, ainda não diferia do antigo uso das forças da água e do vento. A novidade não era o princípio da máquina a vapor, mas sim a descoberta e o uso das minas de carvão que deveriam alimentá-la1 ao «conhecido enigma, no estudo da história econômica do mundo antigo, de que a indústria se desenvolveu até certo ponto, mas deixou de fazer o progresso que era de se esperar», é bem interessante e convincente neste particular. Diz ele que o único fator que «impediu a aplicação das máquinas à indústria (foi) … a inexistência de combustível bom e barato, … uma vez que não havia fontes abundantes de carvão de pedra de fácil acesso» (p. 123).)). Os utensílios mecânicos desta fase inicial refletem essa imitação de processos naturais conhecidos; eles, também, imitam e imprimem maior vigor às atividades naturais da mão humana. Já hoje nos dizem que «o maior perigo a evitar é a suposição de que a finalidade da construção (dessas máquinas) seja reproduzir os movimentos da mão do operador ou operário».2
O segundo estágio foi caracterizado principalmente pelo uso da eletricidade — e realmente a eletricidade continua a determinar a fase atual de desenvolvimento técnico. Esta fase já não pode ser descrita em termos de gigantesca ampliação e continuação de antigos ofícios e artes; e é somente a este mundo que as categorias do homo faber, para quem todo instrumento é um meio de atingir um fim prescrito, já não se aplicam. Pois agora já não usamos material tal como a natureza o fornece, matando processos naturais, interrompendo-os ou imitando-os. Em todos estes casos, alteramos e desnaturalizamos a natureza para nossos próprios fins mundanos, de sorte que o mundo ou o artifício humano, de um lado, e a natureza, de outro, passam a ser duas entidades nitidamente separadas. Hoje, passamos a «criar», por assim dizer, isto é, a desencadear processos naturais nossos que jamais teriam ocorrido sem nós; e, ao invés de defender cuidadosamente o artifício humano contra as forças elementares da natureza, mantendo-as o mais possível à parte do mundo feito pelo homem, canalizamos essas forças, juntamente com o seu poder elementar, para o próprio mundo. Isto resultou em verdadeira revolução no conceito de fabricação: a manufatura, que sempre havia sido «uma série de passos separados», tornou-se «um processo contínuo», o processo da correia transportadora ou da linha de montagem.3
A automação representa o estágio mais recente desta evolução, e realmente «ilumina toda a história da mecanização».4)
Uma das importantes condições materiais da revolução industrial foi a extinção das florestas e a descoberta do carvão mineral como substituto da madeira. A solução proposta por R. H. Barrow (em seu livro Slavery in the Roman Empire (1928 ↩
John Diebold, Automation: The Advent of the Authomatic Factory (1952), p.67. ↩
Ibid, p.69. ↩
Friedmann, Problèmes humains du machinisme industriel, p. 168. Esta é, aliás, a mais óbvia conclusão a ser tirada do livro de Diebold: a linha de montagem é o resultado «do conceito da fabricação como processo contínuo»; e poder-se-ia acrescentar que a automação é o resultado da mecanização da linha de montagem. À liberação do «labor power» humano nos primeiros estágios da industrialização, a automação acrescenta a liberação do «brain power» humano, uma vez que «as tarefas de fiscalização e controle atualmente realizadas por seres humanos serão feitas por máquinas» (op.cit., p. 140). Tanto uma como outra libera labor, e não trabalho. Em ambos os casos, o trabalhador ou o «artífice dotado de amor próprio», cujos «valores humanos e psicológicos» (p.164) quase todos os que escrevem sobre o assunto procuram desesperadamente salvar — certas vezes, com uma pitada de ironia involuntária, como quando Diebold e outros acreditam sinceramente que o trabalho de consertos, que talvez jamais venha a ser inteiramente automatizado, pode trazer a mesma satisfação que a fabricação e a produção de um objeto novo — está fora de cogitação, pelo simples fato de ter sido eliminado das fábricas muito antes de se ouvir falar em automação. Os trabalhadores fabris sempre foram operários (laborers); e, embora seu amor próprio tenha excelentes fundamentos, certamente não decorre do trabalho que executam. A única coisa que podemos fazer é esperar que eles próprios se recusem a aceitar os substitutos sociais da satisfação e do amor próprio que lhes propõem os teoristas do trabalho, os quais, a esta altura, realmente acreditam que o interesse no trabalho e a satisfação do artesanato podem ser substituídos por «relações humanas» e pelo respeito que os trabalhadores «granjeiam entre seus companheiros» (p. 164). Afinal, a automação devia ter pelo menos a vantagem de mostrar os absurdos de todos os «humanismos do trabalho» («humanisms of labor»); basta atentar para o significado verbal e histórico da palavra «humanismo» para que se verifique que a expressão «humanism of labor» implica uma contradição nos termos. (Veja-se excelente crítica do modismo das «relações humanas» em Daniel Bell. Work and its Discontents (1956), cap.5, e R. P. Genelli, «Facteur humain ou facteur social du travail». Rente fiançaise da travail, Vol.VII, Nos. 1-3 (janeiro-março de 1952), onde há também firme denúncia da «terrível ilusão» da «alegria do trabalho». ↩