Início do capítulo II da «Condição Humana»
A vita activa, ou seja, a vida humana na medida em que se empenha ativamente em fazer algo, tem raízes permanentes num mundo de homens ou de coisas feitas pelos homens, um mundo que ela jamais abandona ou chega a transcender completamente. As coisas e os homens constituem o ambiente de cada uma das atividades humanas, que não teriam sentido sem tal localização; e, no entanto, este ambiente, o mundo ao qual viemos, não existiria sem a atividade humana que o produziu, como no caso de coisas fabricadas; que dele cuida, como no caso das terras de cultivo; ou que o estabeleceu através da organização, como no caso do corpo político. Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos.
Todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos; mas a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens. A atividade do labor não requer a presença de outros, mas um ser que «laborasse» em completa solidão não seria humano, e sim um animal laborans no sentido mais literal da expressão. Um homem que trabalhasse e fabricasse e construísse num mundo habitado somente por ele mesmo não deixaria de ser um fabricador, mas não seria um homo faber: teria perdido a sua qualidade especificamente humana e seria, antes, um deus — certamente não o Criador, mas um demiurgo divino como Platão o descreveu em um dos seus mitos. Só a ação é prerrogativa exclusiva do homem; nem um animal nem um deus é capaz de ação,1 e só a ação depende inteiramente da constante presença de outros.
Esta relação especial entre a ação e a vida em comum parece justificar plenamente a antiga tradução do zoon politikon de Aristóteles como animal socialis, que já encontramos em Sêneca e que, até Tomás de Aquino, foi aceita como tradução consagrada: homo est naturaliter politicus, id est, socialis («o homem é, por natureza, político, isto é, social»).2 Melhor que qualquer teoria complicada, esta substituição inconsciente do social pelo político revela até que ponto a concepção original grega de política havia sido esquecida. Para tanto, é significativo, mas não conclusivo, que a palavra «social» seja de origem romana, sem qualquer equivalente na língua ou no pensamento gregos. Não obstante, o uso latino da palavra societas tinha também originalmente uma acepção claramente política, embora limitada: indicava certa aliança entre pessoas para um fim específico, como quando os homens se organizavam para dominar outros ou para cometer um crime.3 É somente com o ulterior conceito de uma societas generis humani, uma «sociedade da espécie humana», que o termo «social» começa a adquirir o sentido geral de condição humana fundamental. Não que Aristóteles ou Platão ignorasse ou não desse importância ao fato de que o homem não pode viver fora da companhia dos homens; simplesmente não incluíam tal condição entre as características especificamente humanas. Pelo contrário, ela era algo que a vida humana tinha em comum com a vida animal — razão suficiente para que não pudesse ser fundamentalmente humana. A companhia natural, meramente social, da espécie humana era vista como limitação imposta pelas necessidades da vida biológica, necessidades estas que são as mesmas para o animal humano e para outras formas de vida animal.
É notável a circunstância de que os deuses homéricos só agem no tocante aos homens, governando-os de longe ou interferindo com o que se passa entre eles. Além disso, os conflitos e as lutas entre os deuses parecem resultar principalmente de sua atuação nos negócios humanos ou de sua conflitante parcialidade em relação aos mortais. O resultado é uma história na qual homens e deuses atuam em conjunto, mas a trama é estabelecida pelos mortais, mesmo quando a decisão é tomada numa assembleia de deuses no Olimpo. Creio que a erg’ andron te theon te, de Homero (Odisseia, I. 338), indica essa «co-operação»: o bardo canta feitos de deuses e homens, não histórias de deuses e histórias de homens. Do mesmo modo, a Teogonia de Hesíodo trata não dos feitos dos deuses, mas da gênese do mundo (116); narra, portanto, como as coisas passaram a existir através da geração e da procriação (constantemente repetidas). O cantor, servo das Musas, canta «os feitos gloriosos dos homens antigos e os deuses bem-aventurados» (97 ff.), mas em parte alguma, ao que eu saiba, os feitos gloriosos dos deuses. ↩
A citação é do Index Rerum da edição de Turim das obras de Sao Tomás de Aquino (1922). A palavra «politicus» não ocorre no texto, mas o Index faz um resumo correto do que ele quer dizer, como se pode verificar pela Snnima theologica i .96. 4; ii.2 109. 3. ↩
Societas regni em Lívio, societas xeeleris em Cornélio Nepos. Esse tipo de aliança podia também ser realizada para fins comerciais, e Tomás de Aquino ainda afirma que uma «verdadeira societas» entre negociantes só existe «quando o próprio investidor compartilha do risco», isto é, quando a sociedade é realmente uma aliança (veja-se W. J. Ashley, An Introduction to English Economic History and Theory (1931), p.419). ↩