ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995, pgs. 10-11
Antes, portanto, de começarmos a especular sobre as possíveis vantagens de nossa atual situação, seria prudente refletir sobre o que realmente queremos dizer quando observamos que a teologia, a filosofia e a metafísica chegaram a um fim. Certamente não é que Deus esteja morto, algo sobre o qual o nosso conhecimento é tão pequeno quanto o que temos sobre a própria existência de Deus (tão pequeno, de fato, que mesmo a palavra “existência” está mal empregada); mas que a maneira pela qual Deus foi pensado durante milhares de anos não é mais convincente; se algo está morto, só pode ser o pensamento tradicional sobre Deus. E algo semelhante vale também para o fim da filosofia metafísica: não que as velhas questões tão antigas quanto o próprio aparecimento do homem sobre a Terra tenham se tornado “sem sentido”, mas a maneira pela qual foram feitas e respondidas perdeu a razoabilidade.
O que chegou a um fim foi a distinção básica entre sensorial e o supra-sensorial, juntamente com a noção pelo menos tão antiga quanto Parmênides de que o que quer que não seja dado aos sentidos — Deus, ou o Ser, ou os Primeiros Princípios e Causas (archai), ou as Ideias — é mais real, mais verdadeiro, mais significativo do que aquilo que aparece, que está não apenas além da percepção sensorial, mas acima do mundo dos sentidos. O que está “morto” não é apenas a localização de tais “verdades eternas”, mas a própria distinção. Enquanto isso, os poucos defensores da metafísica, em um tom cada vez mais estridente, nos alertaram sobre o perigo do niilismo inerente a essa afirmação. Embora disponham de um importante argumento a seu favor, eles próprios raramente o invocam: de fato, é verdade que uma vez descartado o domínio suprassensível, fica também aniquilado o seu oposto, o mundo das aparências tal como foi compreendido ao longo de tantos séculos. O sensível como é ainda compreendido pelos positivistas não pode sobreviver à morte do suprassensível. Ninguém sabia disso melhor do que Nietzsche, que, com sua descrição poética e metafórica do assassinato de Deus, tanta confusão produziu sobre esse assunto. Numa importante passagem de O crepúsculo dos ídolos, ele esclarece o que a palavra “Deus” significava na história anterior. Era meramente um símbolo para o domínio supra-sensorial tal como foi compreendido pela metafísica; agora, em vez de “Deus”, utiliza a expressão “mundo verdadeiro” e diz: “Abolimos o mundo verdadeiro. O que permaneceu? Talvez o mundo das aparências? Mas não! Junto com o mundo verdadeiro, abolimos também o mundo das aparências.”
A descoberta de Nietzsche de que “a eliminação do suprassensível elimina também o meramente sensível, e, portanto, a diferença entre eles” (Heidegger), é tão óbvia que desafia qualquer tentativa de datá-la historicamente; qualquer pensamento que se construa em termos de dois mundos já implica que esses dois mundos estejam inseparavelmente ligados entre si. Assim, todos os modernos e elaborados argumentos contra o positivismo foram antecipados pela simplicidade insuperável do pequeno diálogo de Demócrito entre o espírito, o órgão do suprassensível, e os sentidos. As percepções sensoriais são ilusões, diz o espírito; elas mudam segundo as condições de nosso corpo; doce, amargo, cor, e assim por diante, existem somente nomo, por convenção entre os homens, e não physei, segundo a verdadeira natureza das aparências. Ao que os sentidos respondem: “Espírito infeliz! Tu nos derrotas enquanto de nós obténs a tua evidência [pisteis, tudo em que se pode confiar]? Nossa derrota será a tua ruína.” Em outras palavras, uma vez que o equilíbrio sempre precário entre os dois mundos está perdido, não importa se o “verdadeiro mundo” aboliu o “mundo aparente”, ou se foi o contrário; rompe-se todo o quadro de referências em que nosso pensamento estava acostumado a se orientar. Nesses termos, nada mais parece fazer muito sentido.