Fernando Belo. “A metamorfose das ciências”, in Caderno de Filosofias, Coimbra, 1991. (visite)

1. Algumas das principais ciências conheceram, ao longo deste século perto de terminar, um desdobramento não linear, diferente para cada uma, com aspectos espectaculares e outros recobertos, que, aparentemente, a chamada “Filosofia das ciências” não entendeu ainda, mantendo-se nesse domínio um “modelo de ciência” (Física) que foi engendrado ao longo dos fabulosos séculos XVII a XIX europeus. Ora sucede que o pensamento de Heidegger, a partir do terreno que Husserl abrira com a sua fenomenologia, mas rompendo claramente com o Mestre, veio colocar algumas questões e temas que parecem permitir trazer alguma luz às “novidades” de tais ciências. Paradoxo, quando se sabe da como que “hostilidade” ou aversão de Heidegger às ciências europeias e à metafísica moderna em que foram paridas. É esta questão que este texto tentará apresentar.

2. Ocupar-me-ei de cinco domínios científicos: da Física-Química, da Biologia, da Psicanálise, da Linguística saussuriana e da Antropologia estrutural. O mínimo que posso esperar, se acaso algum praticante duma dessas ciências me ler, é que ele tenha resistências em relação ao que avanço. E em qualquer leitor a dúvida surgirá de saber se é possível a alguém “saber” suficientemente em tão diversos e especializados domínios. Obviamente que não sou praticante em nenhum deles, os conheço desigualmente por leituras diversas e que tenho anos de leitura e escrita suficientes para medir a audácia do que faço, para saber que só se sabe algo do que se pratica. De qualquer forma, a leitura dos textos científicos por praticantes de filosofia não pode deixar de ser uma “leitura filosófica” desses textos, sabendo-se embora do seu carácter científico. Isto é, sabendo-se que um texto científico consta de como que três estratos indissociavelmente articulados entre si, o que releva da experimentação e/ou observação e respectivas operações, o que releva do sistema teórico de conceitos científicos e o que releva do epistema civilizacional em que os corpus de cada ciência são elaborados (os dois primeiros pertencendo ao que Kuhn chamou “paradigma” e o terceiro ao que Foucault chamou “epistema”). É o paradigma que resiste necessariamente ao “saber” do leitor não especialista: mas métodos, conceitos e epistema relevam todos da história da civilização europeia e da dimensão filosófica essencial dessa civilização, que forneceu boa parte da maquinaria de que qualquer ciência se faz, embora cada uma delas tivesse reformulado o que recebeu para se instituir. É por isso que “de jure” é legítimo que qualquer seu texto possa ser tomado como literatura filosófica. Que isso possa ser fecundo para os próprios praticantes dessa ciência, é outra história, a minha esperança.

 

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Martin Heidegger, Thomas Kuhn