Entretanto, retomando o que foi colocado há pouco, a arquitetura platônica “reencarnada” na Idade Média, sob a forma da filosofia medieval latina, esqueceu ou ignorou algumas “conexões” metafísicas importantes, que lhe fragilizaram adiante frente à formação da sociedade mercantilista, à força da técnica emergente, à Reforma, ao Novo Mundo e à Renascença.
A Renascença, em particular, promoveu o “resgate” da cultura clássica, revivendo a riqueza do pensamento grego, além do aristotélico, fazendo ressurgir o atomismo, o platonismo e o hermetismo. Promoveu também, e de igual importância, uma gigantesca revolução nas artes e nas técnicas, acompanhada de todo uma especulação teórica, de base matemática.
Cassirer demonstra como, durante a Renascença, podem se distinguir dois períodos: um, primeiro, onde os sentidos são super-valorizados, como numa tentativa de retorno às coisas em si (como propõe Husserl), para fundamentar uma nova “arquitetura”; no período seguinte a teoria da arte se afirma de mãos dadas com as matemáticas, revolucionando uma Renascença que se perdia em um naturalismo empiricista e sensualista, ao extremo. Em suas palavras: “não se depende mais da elevação, sublimidade, do objeto do saber, para classificá-lo, mas da forma de saber, da qualidade da certeza, do método como centro luminoso do saber, onde se destaca as matemáticas”1.
A figura de Leonardo pode servir de modelo-tipo deste personagem renascentista que nos recusa uma classificação: artista, filósofo, matemático? Sua importância neste processo que toma um impulso definitivo com a revolução cartesiana, está na defesa de uma complementaridade entre a experiência e as matemáticas, posteriormente adotada integralmente por Galileu. Assim como, pela instituição de uma nova maneira de colocar os problemas, através do conceito de “necessidade natural”.
Cassirer elabora este aspecto, demonstrando que esta “necessidade” passa a ser vista como mestre e produtora da Natureza, o próprio tema da Natureza, seu freio e sua regra eterna: “a natureza é governada pela razão, ou seja pela lei que a habita e que jamais, em parte alguma, não pode ser violada”; “se o homem pode se igualar à Natureza e lhe desvendar seus segredos, não é pelos sentidos, pela sensação ou pelo sentimento imediato da vida; somente o pensamento, o princípio da razão, que Leonardo entende como princípio da prova matemática, se mostram à altura da Natureza.”
Embora o gênio de Leonardo ainda represente uma das exceções na apropriação da “arquitetura platônica”, Cassirer reconhece a perda que se seguiu com Galileu, que desvalorizou a arte, considerada por Leonardo como um órgão indispensável para apreender a realidade: a visibilidade e a conceptibilidade da forma encerram o mistério da proporção, enquanto cadeia unindo Natureza (necessidade) e liberdade.
Para Leonardo, a Natureza é o reino do informe, da pura matéria se opondo ao princípio da forma e à sua dominação. Vista através da mediação da arte, ela não repulsa a forma, mas se apresenta como o reino da construção formal, perfeita e completa. A “necessidade” aí reina, como regra eterna, mas não é a aquela da simples matéria, e sim a da proporção pura intimamente aparentada com o espírito. A proporção habita os números e as medidas, reside nos sons, nos tempos e lugares, e em toda força existente. Pela proporção, pela medida interior e a harmonia, salva-se e enobrece-se a Natureza.
Segundo Cassirer, deveria ser mais explorado pelos historiadores e filósofos da ciência, este “paralelismo absoluto que existe entre a teoria da arte e a teoria da ciência, pois o tema que aí se revela é um dos mais profundos de todo o movimento de ideias da Renascença”. Pode-se dizer que quase todas as grandes realizações da Renascença estão aí condensadas, se enraizando nesta convergência entre a arte e a ciência, de onde se formula de uma nova maneira a interação forma-matéria, a partir de uma “nova” sensibilidade da forma, em sintonia com a linha platônica clássica. Não é por coincidência que o mestre Jean Mignot disse, em conexão com a construção da Catedral de Milão em 1398, face ao prenúncio de uma cisão entre arte e ciência: Ars sine scientia nihil (“Arte sem ciência nada é”).
Como pintor frustrado, Galileu considera a arte, até certo ponto, pois recebe a influência das novas formas de representação propostas pela perspectiva linear. Ao mesmo tempo, admite a necessidade, a lei que rege os fenômenos. As razões que os fundam, não são decifráveis pela percepção sensível, precisa-se da espontaneidade do entendimento matemático para descobri-las; toda experimentação, toda questão posta à experiência pressupõe uma “concepção do pensamento”, nas palavras de Galileu, que atua como uma hipótese a ser confirmada ou refutada pela experiência. Assim sendo as leis objetivas, as medidas constantes que determinam e governam todo o curso da natureza, não são somente retiradas da experiência. Como afirma Cassirer2, “não se trata mais de resolver pura e simplesmente o que é empírico na idealidade, despindo-o ao mesmo tempo de seu caráter específico. Ao contrário, a idealidade é que deve descobrir no que é empírico sua acomodação, e desta forma, sua confirmação e sua justificação.”
A descrição do conhecimento científico que acaba emergindo da visão de Galileu é uma descrição representativa. Conhecer a realidade é ter uma representação correta das coisas – um quadro interior correto da realidade exterior, como passou a ser concebido. Descartes declara-se “assuré que je ne puis avoir aucune connaissance de ce qui est hors de moi, que par l’entremise des idées que j’ai eu en moi” (seguro de que não posso ter conhecimento do que está fora de mim a não ser por meio das ideias que tenho dentro de mim). E essa concepção de conhecimento começa a parecer indiscutível depois que uma descrição do conhecimento em termos de uma realidade auto-reveladora, como as Ideias, foi abandonada.
Agora é preciso construir uma representação da realidade. Assim como a noção de “ideia” emigra de seu sentido ôntico para aplicar-se a conteúdos intrapsíquicos, a coisas “da mente”, assim também a ordem das ideias deixa de ser algo que descobrimos e passa a ser algo que construímos.3
Neste sentido, para Galileu, o movimento se tornou uma ideia. Aliás se seu objetivo era instituir uma nova ciência, como se intitula seu tratado maior, nada melhor do que atacar a “arquitetura platônica”, vigorando àquela época, na sua vertente aristotélica e escolástica, na sua “viga” principal, o movimento. Sobre esta “viga”, já bastante desgastada pelos críticos de todos os tempos e pelas descobertas astronômicas recentes, se fundava para Aristóteles o estudo da Natureza, a filosofia natural.
O movimento, em Galileu, deixa de pertencer ao “reino das sombras” do devir, para ser elevado ao nível de ser puro, graças às leis rigorosas, e por isto mesmo, à necessidade que são próprias destas mesmas leis matemáticas. A Natureza não significa mais o mundo das formas substanciais, nem o princípio do movimento e do repouso dos elementos, mas designa a universalidade das leis do movimento, às quais nenhum ser singular, qualquer que seja, pode escapar, pois através delas, este ser se insere em uma ordem universal do devir.
O movimento começa a se definir então, como uma certa relação onde entra espaço e tempo, não em suas propriedades fenomenais, imediatas e psicológicas, mas em seu significado estritamente matemático: espaço contínuo e homogêneo de uma geometria “algebrizada”.
Segundo Hannah Arendt, “o fator decisivo neste particular não é que os homens, no inicio da era moderna, ainda acreditassem, com Platão, na estrutura matemática do universo, nem que uma geração mais tarde, acreditassem, com Descartes, que o conhecimento seguro só é possível quando a mente lida com suas próprias configurações e fórmulas. Decisiva é a sujeição da geometria ao tratamento algébrico, sujeição esta inteiramente anti-platônica e que revela o moderno ideal de reduzir dados sensoriais e movimentos terrestres a símbolos matemáticos”4.
Esta matemática, a que Arendt se refere, é portanto totalmente distinta daquela gerada e desenvolvida pelo “momento” de Pitágoras-Platão-Aristóteles. Cassirer inclusive afirma: “os conceitos desta matemática são frutíferos e indispensáveis em seu campo estreito, mas lhes faltam um elemento essencial para servir de exemplo para todo círculo de problemas lógicos, pois embora a lógica se limite ao formal, sua conexão com os problemas do ser não é quebrada”5.
Mais adiante, Cassirer coloca: “a matemática não pode servir de tipo e modelo pois se restringe ao campo de suas estruturas auto-criadas, sem preocupação com o ser”. Na transformação do “dado” empírico pela intuição em conhecimento matemático, corre-se um sério perigo de falsificação do existente imediato, revelado pela sensação, ao sujeitá-lo ao esquema dos conceitos matemáticos.
Trata-se portanto de uma matemática “órfã” das matemáticas do quadrivium, desfigurada a partir do século XVII pela pretensão de explicar a Natureza de “fora para dentro”, através de uma naturalização da matemática, ou melhor dizendo de uma “banalização” da matemática. Este caminho é o oposto daquele proposto pelo “momento” platônico e em tudo diferente das matemáticas platônicas, que exerciam uma “matematização da Natureza” de “dentro para fora”, pelo status ontológico destas matemáticas, comum a própria Natureza.
Cassirer, E. (1983): Individu et Cosmos. Paris, Editions de Minuit. ↩
Idem. ↩
Taylor, Charles (1997): As Fontes do Self. A construção da identidade moderna. São Paulo, Loyola. ↩
Arendt, H. (1989): A Condição Humana. Rio de Janeiro, Forense. ↩
Cassirer, E. (1953): Substance and Function. New York, Dover. ↩