C.S. Lewis, professor de inglês medieval e renascentista na Universidade de Cambridge, percorre em um de seus livros menos conhecido1 o labirinto de sentidos e usos de algumas palavras inglesas, reencontrando suas genealogias e seus “termos ancestrais” — vocábulos gregos, latinos e ingleses em seus sentidos originais.
Entre essas palavras, o termo Natureza (Nature) é dos mais analisados, tendo como origem de seus significados os vocábulos: natura (latim), kind (inglês) e physis (grego):
Natura e kind guardam uma raiz comum, que se reflete no termo Natureza com o significado de: espécie, qualidade e característica.
Já, do vocábulo grego physis, descende um outro conjunto de significados para o termo Natureza, dividido em dois ramos principais: um, na linha de habitar, viver, morar, estar em um lugar ou em uma condição; outro, na de crescer, tornar-se, devir, “vir-a-ser”.
A Natureza, neste sentido de geração (que guarda o próprio verbo physein), representa em conjunto com os demais significados, uma conexão íntima entre as ideias de totalidade, essencialidade e nascimento. Desta forma o termo Natureza, “na sua acepção mais geral indica o conjunto das coisas que existem, referindo-se particularmente, mais do que a uma configuração determinada, objetiva (neste caso a designação mais exata é a de “mundo”), aos seus princípios constitutivos essenciais; todas as coisas quando nascem, realizam-se sempre segundo uma característica sua, própria e imanente.”2.
Os filósofos gregos, anteriores a Sócrates, considerados por alguns pensadores, como os primeiros a romper, por meio da própria razão, o domínio dos mitos sobre o pensamento, instituindo uma filosofia da Natureza ou natural, empregavam o termo Natureza, justamente nesta acepção associada à ideia de totalidade conhecida ou acreditada; tornando esta coleção heterogênea e amorfa, constituída por todas as coisas, em um objeto ou pseudo-objeto, referenciado no próprio título de algumas de suas obras, por exemplo: “Sobre a Natureza” de Parmênides e “A Natureza das coisas que são” de Empédocles.
Este sentido, que C.S. Lewis considera “perigoso”, por se referir a tudo e portanto a nada em particular, sofreu após uma ou duas gerações de filósofos gregos, uma primeira redução importante, ao se afirmar a existência de algo mais, além da Natureza.
Este movimento determinou e delimitou desde então o domínio e o campo de ideias e significados do termo Natureza, com base em duas linhas de pensamento, gêmeas em sua origem: a platônica e a aristotélica.
Na platônica, a Natureza enquanto aparência, é um produto, uma cópia das Ideias, por intermediação dos Números, das “matemáticas”. Esta visão integrada guardava as ideias de totalidade, essencialidade e nascimento (geração), dentro de um único corpo filosófico; delimitando, sem, no entanto, compartimentalizar na teoria, o domínio a que se refere o termo Natureza.
Na linha de pensamento aristotélica, a Natureza é definida como aquilo que contém em si mesmo o princípio do movimento: “o estudo da Natureza se refere ao movimento” (De Caelo IV)3. A filosofia é dividida segundo seu objeto teórico, em metafísica, matemática e física: “Porque a física trata de objetos concretos mas não imóveis; pelas matemáticas são tratados os objetos imóveis, e sem dúvida, não concretos, mas existentes na matéria; a filosofia primeira (a metafísica) trata de objetos ao mesmo tempo concretos e imóveis.” (Metaphysica, livro E)4.
Em retrospectiva, alguns pensadores consideram que os pré-socráticos, como filósofos da Natureza, a tomaram como base original para o nascimento da razão ocidental, dando o primeiro passo decisivo na passagem da visão mítica à concepção racional do mundo, e elaborando o conceito de Natureza (physis) como princípio intrínseco do ser e do devir de todas as coisas não só animadas como inanimadas. Na evolução deste conceito até Aristóteles, a Natureza, concebida como força (dynamis), uma capacidade operativa (energeia), tem seu domínio delimitado pela manifestação, união da matéria (hyle) e da forma (eidos)5.
Esta forma (eidos) em Platão, em continuidade a Pitágoras, era recebida da Ideia (idea) através do Número, uma vez que “tudo é ordenado segundo o Número”; já, em Aristóteles, esta forma devia ser abstraída do próprio objeto ou corpo, e compreendida pelas matemáticas.
O que caracteriza o pensamento platônico está nesta distinção capital: a forma não é do mundo da aparência, mas do mundo da inteligência, pois pode ser captada intelectivamente, e o que é mais importante, a “informação” da matéria é uma entidade diversa da matéria, de outra ordem distinta da materialidade6.
Neste sentido, toda forma, que é intrínseca a cada ser, é uma proporcionalidade interna, não apenas quantitativa, mas também qualitativa, como valor, tensão, conjunto, função, relação, símbolo, fluxo, etc. Essa essência , entendida como proporcionalidade, e representada pelo Número, é a harmonia dos opostos intrínsecos de um ser: todo ser é o que é e o que não é, ou do que está privado, sua presença ontológica e a privação que o delimita, sua ausência.
Segundo Aristóteles, “…Platão só modifica o nome: os pitagóricos, com efeito dizem que os seres existem por imitação dos números: para Platão , isto é por participação…” (Metaphysica, livro A). Em outro parte deste mesmo livro, Aristóteles afirma: “Um outro ponto que lhe é particular, é que ele (Platão) coloca os números fora dos objetos sensíveis, enquanto os pitagóricos pretendem que as coisas em si são números, por outro lado, não colocam as Coisas matemáticas como seres intermediários entre as Ideias e o sensível.”.
Para Platão este ser, aqui e agora, é uma coisa sensível, objeto da intuição dos sentidos, que existe e se manifesta por meio de sua participação, no Número-Ideia através de uma hierarquia que tem os seguintes níveis: Números-Ideias, estruturas ontológicas, formas, números matemáticos, estruturas geométricas, coisas sensíveis7.
O papel e o lugar das matemáticas na filosofia natural não é, portanto, um problema muito novo, pelo contrário há mais de dois mil anos estas linhas de pensamento, a platônica e a aristotélica, reconhecem sua importância, apesar de uma aparente disputa, que se deve muito mais a incompreensão de seus seguidores do que a princípios tão divergentes em sua origem grega.
“Se se reenvindica para as matemáticas um estatuto superior, se se atribui ainda mais um valor real e uma posição decisiva na física, se é platônico. Se ao contrário se vê nas matemáticas uma ciência abstrata, portanto de menos valor que aquelas — física e metafísica — que tratam do ser real; se em particular se sustenta que a física não necessita de qualquer outra base que a experiência e deve se edificar diretamente sobre a percepção, que os matemáticos devem se contentar com um papel secundário e subsidiário de um simples auxiliar, se é aristotélico.”8.
Mas estamos nos adiantando um pouco, além de nosso tema, até porque uma questão que merece ser colocada a este respeito, e que é preciso fazê-lo então, é: estamos tratando do mesmo objeto, matemáticas, e do mesmo processo “matematização” seja na linha de “Pitágoras-Platão-Aristóteles”, na de “Galileu-Descartes-Newton”, e na da ciência contemporânea ?
Entrementes, é preciso ressaltar de qualquer modo, que, em Platão ou em Aristóteles, a importância (absoluta ou relativa) das matemáticas para a filosofia da Natureza, se refletiu desde a Antiguidade, passando pela Idade Média e Renascença, no próprio sistema de educação.
Contam os antigos, que o sofista Hípias, contemporâneo de Sócrates era o autor do sistema de educação fundado nas sete artes liberais, denominadas desta forma por serem “estudos dignos de um homem livre, não servindo portanto para ganhar dinheiro”. Na Idade Média por influência de Boécio, após algumas adições, fixaram-se novamente nas sete originais, divididas no chamado trivium: gramática, retórica e dialética; e no quadrivium (as matemáticas): aritmética, geometria, música e astronomia. O conceito de arte liberal, deve ser rigorosamente separado de “arte” no sentido moderno, significando então: “conjunto de regras que ensinam a fazer com acerto alguma coisa”9.
O quadrivium, como tal, vem desde os pitagóricos, que entendiam: a aritmética como o estudo do número em si mesmo, distinguindo o Número-Ideia e o número científico (próprio ao cálculo); a geometria como o estudo do Número no espaço; a música ou harmônica, como o Número no tempo; e, a astronomia, como o Número no espaço-tempo.
O quadrivium já era considerado por Platão em seu sistema de educação proposto na República, juntamente com o que denominou esteriometria, investigação do número no espaço tridimensional (os sólidos e outros poliedros platônicos, que tanto interesse tiveram para Kepler).
LEWIS, C.S. (1960), Studies in Words, Cambridge, Cambridge University Press. ↩
Micheli, G. (1990): “Natureza”, em Enciclopédia Einaudi, volume 18, Lisboa, Imprensa Nacional. ↩
Granger, G.-G. (1976): La Théorie Aristotélicienne da la Science. Paris, Aubier. ↩
Granger, G.-G. (1976): La Théorie Aristotélicienne da la Science. Paris, Aubier. ↩
Selvaggio, F. (1988): Filosofia do Mundo. São Paulo, Loyola. ↩
Santos, M. F. dos (1958): O Um e o Múltiplo em Platão. São Paulo, Logos. ↩
Santos, M. F. dos (1958): O Um e o Múltiplo em Platão. São Paulo, Logos. ↩
Koyré, A. (1966): Etudes d’Histoire de la Pensée Scientifique. Paris, PUF. ↩
Curtius, E.R. (1957): Literatura Europeia e Idade Média Latina. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro. ↩