de Castro – Meio, uma abordagem metafísica

Segundo a metafísica tradicional, a natureza individual de todo ser, sua individualidade em um determinado estado de manifestação, procede da relação de dois elementos de ordem diferente: o ser em si mesmo, lado interior e ativo, e o conjunto das influências do meio no qual o ser se manifesta, lado exterior e passivo1.

A constituição de uma individualidade é, portanto, ordenada pela ação do ser (ativo) sobre o meio (passivo)2, ou sob uma perspectiva geométrica, pelo cruzamento da vertical, que religa entre si diferentes estados de manifestação de um mesmo ser, com um determinado plano horizontal, entendido como domínio de um certo estado de manifestação. Ou seja, pela interseção da vertical considerada, com o plano horizontal, ou da virtude (do latim virtus, força, potência) do ser com o seu meio, se define a manifestação do ser neste estado determinado, sua combinação de potência e ato, no sentido aristotélico. Por conseguinte, o ser, por sua própria natureza, prescreve as condições de sua manifestação, sendo estas condições uma especificação, ou especialização das condições gerais do estado visado pelo ser; a manifestação do ser se constitui portanto em um desenvolvimento das possibilidades contidas a princípio no estado por ele visado, exercitadas, por sua vez, em conformidade com o meio que interage.

O ser, desta maneira, se manifesta revestindo-se de elementos apropriados do “meio”. Esta cristalização de elementos será determinada pela ação do ser sobre o meio, de sua natureza interna (supra-individual, no sentido vertical). A cristalização final não exprime todas as influências do meio na constituição do indivíduo, pois estas se estendem indefinidamente em todos os sentidos. O meio deve ser entendido como um conjunto cujas partes estão ligadas entre si, sem solução de continuidade, pois o vazio é inconcebível (abominável, segundo Aristóteles). O meio, por sua vez, reúne relações (ações e reações) entre todos os seres individuais, manifestados neste domínio, simultaneamente e sucessivamente.

Resumindo, o ser sofre do meio apenas limitações inerentes ao caráter condicionado de todo estado de manifestação. A afinidade entre elementos apropriados do meio e a natureza do ser, ou dito de outra maneira, a conformidade do meio com as possibilidades que o ser porta em si, é um dos axiomas desta visão de mundo e de homem, que parece se alinhar com as constatações recentes dos biólogos Maturana & Varela3, vistas anteriormente.

Por conseguinte, como afirma o filósofo Titus Burckhardt4, o menor fenômeno participa de distintas continuidades ou dimensões que não podem ser medidas segundo os mesmos critérios. Em cada ponto do tecido cósmico existe uma trama e uma urdidura que se entrelaçam, como expressa a antiga simbologia do tecido5: os fios da urdidura, que no tear tradicional correm verticalmente, representam as essências imutáveis das coisas, as qualidades ou formas essenciais dos seres; enquanto os fios da trama, que correm horizontalmente de um lado a outro, articulando e unindo entre si os fios da urdidura, representam o elemento variável e contingente, ou seja, correspondem à continuidade substancial ou material do mundo, aos elementos do meio, que configuram um estado de manifestação de um certo indivíduo.

Podemos ver na urdidura um símbolo dos princípios, que religam entre eles todos os estados de manifestação ou todos os mundos, cada um de seus fios religando, por conseguinte, pontos correspondentes nestes diferentes estados. A trama, por sua vez, representa o conjunto de eventos em um mundo determinado. Sob um outro ponto de vista, podemos também ver que a manifestação de um ser em um certo estado de existência é, como todo evento, qualquer que seja, estabelecida pelo encontro de um fio da urdidura, com um fio da trama.

Cada fio da urdidura é, portanto, um ser observado em sua natureza essencial, que religa todos os estados, mantendo sua unidade própria através da multiplicidade indefinida destes estados. Neste caso, o fio da trama, que o fio da urdidura encontra, em um certo ponto, corresponde a um estado definido de existência; e a interseção dos dois fios define as relações deste ser, quanto a sua manifestação neste estado, ou seja, com o meio no qual ele se situa sob esta relação6.

Sobre estes mesmos princípios se assenta o hilemorfismo clássico, que distingue a forma, o “selo” da unidade essencial de uma coisa ou de um ser, da matéria, que, como substância plástica, recebe esta “marca”, esta “assinatura”, conferindo-lhe uma determinada existência. A forma é um aspecto das coisas que não pode ser apreendido quantitativamente7, pois tem um duplo significado: reúne a designação da circunscrição de uma coisa, como parte da matéria, da substância plástica que circunscreve e limita as realidades; e se refere à designação dada à quintessência das qualidades de uma coisa ou de um ser.

Dessa maneira, o mundo individual é o mundo formal, constituído por realidades que existem graças a união de uma forma com uma matéria. A forma se apresenta, portanto, como arquétipo, que prescindido de seu fenômeno material particular, é indivisível. A forma8 é uma unidade cognitiva, contida na unidade mais ampla do ser.

As coisas que existem estão religadas entre si por elementos intermediários; nada está isolado, cada coisa é apoiada por outra e, ao mesmo tempo, apoia outra. O meio se apresenta também, desta maneira, como um liame entre imaterial e material, entre númeno e fenômeno. Este meio tem afinidades com ambos. Em todas as suas produções, a natureza tem algo pelo qual a coisa é produzida, um meio com o qual ela produz, um recipiente ou forma onde se efetua a gênese dos fenômenos.

A racionalidade identitária, aplicada segundo uma lógica simplista “by the book”, tende a reduzir a opulência do real ao binômio Mesmo-Outro, a recortar as figuras do mundo segundo pares binários (pretensas combinações forma-matéria ou ser-meio), e sobretudo a exorcizar toda diferenciação constitutiva de uma diferença. Nasce assim uma grande “prosa do mundo”, assentada sobre grades taxionômicas e formalismos lógicos, que por diferentes trajetórias, disciplinam qualquer diferencial, reduzem a complexidade9.

O pensamento identitário tenta reduzir a diferenciação a uma alternativa entre a confusão e a separação de duas determinações que partilham o campo do dado. De maneira geral, o espaço separando as duas determinações de referencia se encontra totalmente vazio. As aporias deste pensar identitário vêm justamente desta ignorância do meio entre determinações extremas; um meio que separa, apesar das forças de unificação, e que religa, apesar de todo poder de exclusão de um extremo a outro. Como tornar possível uma inteligibilidade deste meio, através do qual transitam o Mesmo e o Outro? Como definir o estatuto deste “entre lugares” (mi-lieux), para ele não ser agregado de novo às determinações extremas?

Monismo e dualismo, e o pensar identitário em geral, repousam sobre o esvaziamento da consistência e da fecundidade do meio, do “entre-lugares”, que tornam possível a distribuição do Mesmo e do Outro. Este terceiro dado (tertium datum), que se interpõe entre determinações postas em relação, não é da diferença em si mesma, mas o que permite pensar e produzir a diferença. Em outras palavras, o meio toma posição entre as determinações, não se agregando, mas condicionando a disposição recíproca dos extremos.

Essa cristalização de uma zona mediana, essa emergência de um intermediário em qualquer díade, enfim, de um “meio” que não é membrana capilar osmótica ou fronteira erigida em defesa, pode oferecer-se ao tratamento conceitual e simbólico, visando reduzir o poder da chamada razão identitária, de origem aristotélica. O “meio” pode, de fato, ser um auxiliar a mais na problematização da oposição e relação de determinações extremas, desde que sua noção implique e manifeste o reconhecimento de uma certa comunidade de essência, entre dois termos irredutíveis entre si10.

Talvez por essa razão, o geógrafo Vincent Berdoulay11 tenha afirmado, em consonância com o pensamento de Vidal de La Blache (1845-1918), que a Geografia optou pelo termo meio12, como uma forma de dar maior precisão (sic) ao termo natureza; enquanto o termo homem é mantido ou coletivizado através do uso de termos como sociedade, cultura, civilização, grupo ou mesmo indivíduo. Mas isto vamos deixar para discutir mais adiante.


  1. GUÉNON, René. La grande triade. Paris: Gallimard, 1957. 

  2. É preciso esclarecer que ser e meio, em sua relação, estão mobilizados por duas forças: no ser, uma força de natureza ativa, e no meio, uma força também de natureza passiva. 

  3. MATURANA, Humberto & VARELA, Francisco J.. The Tree of Knowledge — The Biological Roots of Human Understanding. San Francisco: Shamballa, 1992. 

  4. BURCKHARDT, Titus. Ciencia Moderna y Sabiduria Tradicional. Madrid: Taurus, 1979. 

  5. Mircea Eliade desenvolve uma excelente análise sobre este tema do tecido, no simbolismo tradicional. [ELIADE, Mircea. Images et symboles. Essais sur le symbolisme magico-religieux. Paris: Gallimard, 1952.] 

  6. GUÉNON, René. Le symbolisme de la croix. Paris: 10/18, 1970. 

  7. Esta forma (eidos) em Platão, dando continuidade à Pitágoras, era recebida da Ideia (idea) através do Número, uma vez que “tudo é ordenado segundo o Número”; já, em Aristóteles, esta forma devia ser abstraída do próprio objeto ou corpo, e compreendida pelas matemáticas. 

  8. O que caracteriza o pensamento platônico está nesta distinção capital: a forma não é do mundo da aparência, mas do mundo da inteligência, pois pode ser captada intelectivamente, e o que é mais importante, a “in-formação” da matéria é uma entidade diversa da matéria, de outra ordem distinta da materialidade [dos Santos, M. F.. O Um e o Múltiplo em Platão. São Paulo: Logos, 1958.]. 

  9. WUNENBURGER, Jean-Jacques. La Raison Contradictoire. Paris: Albin Michel, 1990. 

  10. “Que dois termos formem sós uma bela composição, isto não seria possível sem um terceiro. Porque é preciso que no meio deles exista algum liame que aproxime ambos.” Timeu 31b-c. 

  11. BERDOULAY, Vincent. Des Mots et des Lieux. La Dynamique du Discours Géographique. Paris: Éditions du CNRS, 1988. 

  12. Um termo que efetivamente se apresenta situado entre duas determinações, Sociedade e Natureza, que assumiam um papel relevante, como objetos de estudo, à época de institucionalização da Geografia; poderia também se alegar que a emergente ecologia de Haeckel, tenha sido um fator importante na apropriação do termo meio, pela Geografia.