de Castro – A Característica Universal

Apesar do avanço progressivo, dentro dos enunciados da lógica, no uso de variáveis simbólicas em lugar de termos concretos, ao longo da época clássica e medieval, a linguagem natural ainda predominava à época de Leibniz; ou seja, um mesmo raciocínio poderia ser expresso de várias maneiras diferentes. Para Leibniz, não se tratava apenas de construir uma linguagem que fosse capaz de facilitar a comunicação, mas de fundar uma escritura universal graças à qual se poderia, do mesmo modo que na álgebra e na aritmética, construir demonstrações1. O que o levou, segundo Rossi, a se interessar pelos aspectos sintáticos da linguagem, pela descoberta da “magia do algoritmo” ou do “caráter funcional” dos procedimentos formais e pela possibilidade de uma ciência geral das formas.

Respondendo a um ideal de univocidade lógica, e influenciado pela filosofia e escrita chinesas, assim como pela estrutura binária do I Ching, que afirmava ser capaz de enunciar de modo poético qualquer situação da realidade, através de seus 64 hexagramas, Leibniz expôs pela primeira vez, em 1666, os princípios de uma escritura ideográfica, única capaz de expressar de forma direta as ideias, sem passar pelo intermediário da fonética. Ele denominou esta “escritura”, a característica universal.

O projeto leibniziano de uma característica universal se fundamentava – como se sabe – sobre os três princípios seguintes: 1) as ideias são analisáveis, e é possível descobrir um alfabeto dos pensamentos que constitua o catálogo das noções simples ou primitivas; 2) as ideias podem ser representadas simbolicamente; 3) é possível representar simbolicamente as relações entre as ideias, e, por regras oportunas, proceder a sua combinação. Este projeto de Leibniz, no entanto, não nasceu certamente sobre o terreno da “álgebra” ou do “formalismo lógico” contemporâneo.2

Segundo Leibniz, a álgebra representava uma modelo de escritura racional, com o inconveniente de só se aplicar aos números. Portanto, fazia-se necessário uma “álgebra geral”, uma linguagem filosófica que permitisse a expressão de todas as ideias, de forma tal, que não mais existiriam disputas metafísicas ou morais; estas seriam resolvidas por um cálculo. Enunciava-se assim uma nova abertura no percurso da moderna lógica matemática.

Entretanto, vale frisar que a característica universal não foi concebida inicialmente sob a forma de uma álgebra ou de um cálculo, mas de uma linguagem ou de uma “escritura universal, quer dizer, inteligível para não importa que leitor especializado em uma linguagem qualquer”. Nesta época, Leibniz considerava ainda, nos mesmos passos de Bacon e de Kircher, os caracteres da língua universal como compostos “de figuras geométricas e de pinturas do gênero daquelas que utilizavam no passado os egípcios e que empregam hoje em dia os chineses; pinturas que não se referem a um alfabeto ou a letras determinadas, o que é uma lástima para memória”.

Inicialmente encantado pela obra de John Wilkins, Essay towards a Real Character, and a Philosophical Language, publicada em 16683, Leibniz vai posteriormente criticá-la pelo fato de não se empenhar na construção de uma linguagem verdadeiramente “filosófica”, isto é, própria para indicar as relações lógicas entre os conceitos. Para Leibniz, Wilkins se satisfez em criar uma linguagem que poderia facilitar o comércio entre as nações. A linguagem internacional, afirmava Leibniz, é a menor das vantagens que uma linguagem universal pode oferecer, pois esta antes de tudo é um instrumentum rationis.

A característica universal proposta por Leibniz se assenta assim sobre as seguintes teses:

    • A linguagem universal ou característica real procede de um sistema de signos que “representam diretamente os pensamentos, e não as palavras”, consequentemente, podem ser lidos e compreendidos independentemente da língua que se fala efetivamente;
    • A construção de uma linguagem universal coincide com aquela de uma escritura universal;
    • Os hieróglifos egípcios, os caracteres chineses e os símbolos da química são formas exemplares;
    • Pode-se aprender a linguagem universal em pouco tempo, servindo também para propagar a fé cristã e converter os povos;
    • O aprendizado da linguagem universal coincide com o da enciclopédia ou da ordenação sistemática das noções fundamentais; o projeto da enciclopédia é organicamente ligado ao da linguagem universal; “aquele que aprende esta linguagem aprende ao mesmo tempo igualmente a enciclopédia que é a verdadeira porta abrindo às ciências”;
    • O aprendizado da linguagem universal constitui em si um remédio para a fraqueza da memória; neste sentido, a proposta de Leibniz segue de perto a tradição da “arte da memória”4;
    • A superioridade da linguagem universal sobre a escritura chinesa vem do fato que as ligações entre os caracteres correspondem à ordem e ao lugar que existem entre as coisas.

Os caracteres da linguagem universal objetivam expressar as referências e as relações que existem entre os pensamentos; como para a álgebra e a aritmética eles devem servir à invenção (ingenium) e ao juízo.

A construção da “característica universal” visava conduzir assim não apenas a realização de um meio de comunicação, mas contribuir igualmente de uma maneira direta à realização da ars inveniende. O nome que se dá na linguagem universal a um objeto ou a uma noção determinada, não serve apenas para perceber as relações que existem entre a coisa significada e as outras, pertencentes a mesma classe ou espécie, e a determinar as referências entre a coisa mesma e as diferenças e os gêneros nos quais ela está contida. Do mesmo modo, a nomenclatura não serve apenas para indicar a “posição” que ocupa o objeto no sistema do universo, mas igualmente “para indicar as experiências que se devem empreender racionalmente a fim de estender nosso conhecimento”.

Para que o nome de cada objeto ou de cada noção possa exprimir a definição deste objeto ou desta noção, de modo que os termos da linguagem artificial se tornem símbolos apropriados e transparentes, é preciso que se determinem os elementos primeiros e mais simples que compõem o alfabeto do pensamento. Mas para determinar este alfabeto, é preciso um inventário de todos os conhecimentos humanos; é indispensável se dispor de uma enciclopédia onde todas as noções estejam classificadas dentro do quadro de um sistema unitário, e onde se possa referenciá-las a um número limitado de categorias fundamentais. Razão pela qual Leibniz devotou grande parte de sua vida à elaboração de uma enciclopédia universal, que mais que um balanço do conhecimento humano, servisse de guia à pesquisa científica.

Decorrente da “característica universal”, como sua vertente operatória, Leibniz propôs o calculus ratiocinator, recuperando das matemáticas seu poder de operar sobre símbolos segundo procedimentos exatamente especificados, mas estendendo este poder além do domínio da quantidade. Para Leibniz, um cálculo só pode ser feito sobre uma característica, um sistema de signos visíveis cujas combinações e transformações estão sujeitas a regras sem ambiguidade.

Este projeto se associa também a sua tentativa de construir uma “máquina de raciocinar”, que não teve condições de se materializar com os recursos mecânicos da época. Em relação às tentativas anteriores, como a máquina de Pascal, ela oferecia a vantagem de ser capaz de realizar as quatro operações aritméticas. Sobre este modelo, Charles-Xavier Thomas de Colmar (1785-1870) construiu o arithmomètre um engenho prático, portável, de fácil uso e sobretudo que funcionava. Esta máquina foi comercializada com grande sucesso, vendendo mais de 1500 unidades em trinta anos e recebendo a medalha de ouro na exposição de Paris de 18555.

Umberto Eco resume o esforço que Leibniz sustentou ao longo de toda sua vida, como a construção em quatro momentos fundamentais de um imenso edifício filosófico-linguístico: 1) a determinação de um sistema de elementos primitivos, organizados em um alfabeto do pensamento, ou enciclopédia geral; 2) a elaboração de uma gramática ideal, onde sua proposta de um latim simplificado seria um exemplo; 3) eventualmente, uma série de regras para tornar os caracteres pronunciáveis; 4) a elaboração de um léxico de caracteres reais, sobre os quais fosse possível fazer um cálculo capaz de conduzir o locutor a formular automaticamente proposições verdadeiras.


  1. ROSSI, Paolo (1993), Clavis Universallis. Arts de la mémoire, logique combinatoire et langue universelle de Lulle à Leibniz. Grenoble, Millon. 

  2. ibid., p. 202 

  3. ECO, Umberto (1994), La recherche de la langue parfaite dans la culture européenne. Paris, Seuil. 

  4. YATES, Frances. The Art of Memory. London: Penguin, 1966. 

  5. BRETON, Philippe. Une histoire de l’informatique. Paris: La Découverte, 1987.