de Castro – a co-constituição do “eu” e do objeto técnico

Um sistema informacional-comunicacional (SIC), baseado em computador, como qualquer sistema, se constitui através de um processo. A exemplo de qualquer processo, também percorre etapas para sua constituição. Não apenas aquelas etapas mais explícitas e visíveis, consagradas pelos engenheiros de sistemas em suas metodologias de desenvolvimento tecnológico, que preconizam uma materialização progressiva do objeto técnico, desde sua idealização até sua concretude “física”, como instrumento ou ferramenta de trabalho. Ou seja, etapas não só constitutivas do objeto técnico, mas também institutivas de um “eu apropriador” do objeto técnico, um “ser-com” o instrumento ou ferramenta.

Na visão de Raymond Abellio (19651, 19812 e 19893), um processo mais denso e complexo está se desenvolvendo na constituição de um objeto técnico, que é o processo de gênese ou de instituição do “ego”. Um processo em que consciência e técnica se configuram, sob tensão permanente, como pólos de uma díade, na instituição deste ego. Em outras palavras, consciência e técnica são, neste processo, o zênite e o nadir, ou seja, os extremos de um eixo ordenador na gênese e desenvolvimento do ego.

Esse processo cujas etapas respondem pela instituição do ego e pela constituição do objeto técnico, simultaneamente, responde também pela ascensão progressiva da Razão a um determinado lugar e papel, no indivíduo e na sociedade. Dado o próprio caráter “iniciático” do processo, Abellio identifica as suas etapas a “ritos de passagem” na gênese do “ego”. Usando, com reservas, uma terminologia religiosa, Abellio denomina as etapas da gênese, “sacramentos”, que etimológicamente significariam “fazimentos sagrados”.

Entre o momento da concepção e do nascimento, quer dizer durante a gestação, faço parte das águas indiferenciadas no seio de minha mãe. Não sou ser-no-mundo mas ser-antes-do-mundo. Já uma questão se coloca: qual é este “Eu”que fala aqui e que tem ele de comum com este outro “Eu” imerso em seu limbo? De imediato deparo com a contradição ou ilusão de toda explicação genética, que não saberia jamais ser uma explicação radical no sentido que se apoia sempre sobre o saber atual disto que a gênese deve justamente explicar. De imediato, me acho tratando do inacabado em termos de acabado, e digo inocentemente: Eu fui ou Eu sou, enquanto Eu resto a ser. É um fato: o Eu que fala aqui é meu Eu atual, tal qual ele se tornou, e ele coloca apenas um olhar objetivante, e por conseguinte alienante, sobre este embrião que ele foi e cujo olhar ele jamais conheceu. E nada, com efeito, não me permite afirmar que o embrião também não tinha seu olhar, embora este seja para mim como se jamais tivesse sido. Toda reserva deve ser feita desde o inicio sobre o caráter imperfeito da visão deste “Eu”, que é, pode-se dizer, duplamente inocente, no sentido que é inocentemente objetivo pois vê meu embrião de fora, como um objeto banal semelhante a todos os embriões humanos, e também inocentemente subjetivo pois se associa a uma visão “humana”, provavelmente provisória e em todo caso localizada e limitada deste embrião.4

Desta maneira, percebe-se que todo discurso radical sobre a gênese do ego, ou seja, sobre sua plena instituição, em sua dimensão espacial e temporal, será, portanto, uma tentativa para nos fazer sair da objetividade e da subjetividade “ingênuas”5, e pode-se mesmo pensar que esta necessidade que tenho de destacar em tudo estruturas invariantes, e mesmo esta confiança intuitiva que tenho deste termo estrutura, indicam justamente minha crença nesta possibilidade de “ir além” das aparências.


  1. ABELLIO, Raymond. La Structure Absolue. Paris: Gallimard, 1965. 

  2. ABELLIO, Raymond. Approches de la Nouvelle Gnose. Paris: Gallimard, 1981 

  3. ABELLIO, Raymond. Manifeste de la Nouvelle Gnose. Paris: Gallimard, 1989 

  4. ABELLIO, Raymond. La Structure Absolue. Paris: Gallimard, 1965, p. 37. 

  5. No sentido husserliano, semelhante ao de “atitude natural”.