PELA COMUNICAÇÃO E PELA INTERCOMPREENSÃO…
J. Habermas, Teoria da ação comunicativa1

[J. Habermas parte da constatação de que todo ato de linguagem põe em jogo ao mesmo tempo uma declaração sobre o mundo objetivo, a busca de uma comunicação e de um acordo com aqueles a quem nos dirigimos, a expressão de um estado interior ou de uma experiência pessoal. Assim, o enunciado linguístico refere-se a três mundos (o mundo objetivo, o mundo social e o mundo subjetivo) e corresponde a três critérios de validade: a validade objetiva do conteúdo, a conformidade da forma às normas lógicas e intersubjetivas, a autenticidade ou veracidade da intenção.]

Os locutores integram num sistema os três conceitos formais de mundo […] e pressupõem este sistema como um quadro de interpretação comum no interior do qual eles podem chegar a um entendimento. Não é mais de maneira não refletida que eles se referem a algo no mundo; eles relativizam mais suas expressões com relação à possibilidade de sua validade ser contestada por outros atores. Como mecanismo que coordena a ação, a intercompreensão supõe que os beneficiários da interação concordem sobre a validade de suas expressões, isto é, reconheçam intersubjetivamente as pretensões à validade que eles objetam reciprocamente. Reportando-se por sua expressão a pelo menos um “mundo”, um locutor faz valer uma pretensão criticável. Ao mesmo tempo, a fim de conduzir seu confronto a uma tomada de posição racionalmente fundamentada, ele usa o fato de que a relação entre ator e mundo é fundamentalmente acessível a uma apreciação objetiva. O conceito de atividade comunicativa pressupõe a linguagem como meio para processos de intercompreensão de uma certa natureza, processos durante os quais os beneficiários objetam um perante o outro, reportando-se a um mundo, pretensões à validade que podem ser aceitas ou contestadas.

Esse modelo pressupõe que os beneficiários da interação mobilizem, expressamente para o fim do entendimento para o qual eles cooperam, o potencial de racionalidade que […] se investe nas três relações com o mundo. Se pusermos de lado o aspecto da boa formação da expressão simbólica utilizada, um ator que busque a intercompreensão nesse sentido é obrigado a objetar implicitamente, ao expressar algo, exatamente três pretensões à validade, ou seja, a pretensão de que:

— o enunciado efetuado é verdadeiro (ou ainda, que estão efetivamente preenchidos os pressupostos de existência de um conteúdo simplesmente evocado numa proposição);

— a ação linguística é exata em relação a um contexto normativo em vigor (ou ainda, que o contexto normativo ao qual ela deve responder é, em si, legítimo);

— a intenção manifesta pelo locutor é pensada por ele do mesmo modo que ele a expressa.


… RUMO À UNIVERSALIDADE
J. Habermas, Teoria da ação comunicativa2

[Este modelo formal pode ser aplicado aos “padrões de racionalidade” constituídos nas diferentes culturas e às obras culturais cuja produção eles determinam. Uma racionalidade universal só pode ter origem através da dinâmica de uma tal inter compreensão.]

Consideremos a estrutura racional interna dos processos de intercompreensão: caracterizamos esta estrutura conforme a) as três relações com o mundo instauradas pelos atores, e os conceitos correspondentes de mundo objetivo, mundo social e mundo subjetivo; b) as pretensões à validade especificadas como verdade propositiva, exatidão normativa, veracidade ou, ainda, autenticidade; c) o conceito, em primeiro lugar, racionalmente motivado, em outras palavras, o conceito de um acordo baseado no reconhecimento de pretensões criticáveis à validade; e d) o conceito de inter-compreensão, entendida como negociação cooperativa que visa definições comuns de situações. Se a exigência de objetividade deve ser satisfeita, deve-se poder mostrar em que sentido determinado essa estrutura racional interna tem valor universal. Há aí uma exigência fortíssima para alguém que opere sem estar coberto pela metafísica e que não espere que se possa realizar um programa transcendental-pragmático3 rigoroso, adiantando pretensões a uma fundação última.

É claro que o tipo de ação cuja estrutura interna esboçamos provisoriamente, o agir orientado para a intercompreensão, não deve em absoluto ser considerado o caso normal que encontraríamos sempre e em toda parte na prática diária da comunicação. Eu mesmo indiquei as contradições entre a compreensão mítica e a compreensão moderna de mundo, os contrastes típicos que podemos reconhecer entre as orientações da ação nas sociedades modernas. Se quisermos, com mil reservas, pretender a validade universal para nosso conceito de racionalidade e não aderir assim a uma crença perfeitamente insustentável no progresso, o ônus da prova a assumir é considerável. Seu peso fica totalmente evidenciado se passarmos dos contrastes abruptos e hiper-simplistas que sugerem uma superioridade do pensamento moderno às oposições menos nítidas que desvenda a comparação intercultural entre os modos de pensamento das diferentes religiões e civilizações universais.


  1. Traduzido para o francês por J.-M. Ferry e J.-L. Schlegel, Ed. A. Fayard, 1987, T.I, p. 115. 

  2. Traduzido para o francês por J. M. Ferry e J.-L. Schlegel, Ed. A. Fayard, 1987, T. I, pp. 115,153-154. 

  3. Programa que, à maneira de Kant, pretendia deduzir a priori as condições e limites de exercício da razão dentro da ordem da ação. N.T.: O grifo é de J. Habermas. 

Jürgen Habermas