Jürgen Habermas – o progresso tecno-científico

HABERMAS, Jürgen. A técnica e ciência como “ideologia”. Tr. Artur Morão. Lisboa: Edições 70.

O aumento das forças produtivas institucionalizado pelo progresso técnico-científico faz explodir todas as proporções históricas. Daí tira o enquadramento institucional as suas oportunidades de legitimação. O pensamento de que as relações de produção pudessem medir-se pelo potencial das forças produtivas desenvolvidas fica cerceado pelo facto de que as relações de produção existentes se apresentam como a forma de organização tecnicamente necessária de uma sociedade racionalizada. A «racionalidade», no sentido de Max Weber, mostra aqui a sua dupla face: já não é só a instância crítica do estado das forças produtivas, perante o qual possa desmascarar-se a repressividade objetivamente supérflua própria das formas de produção historicamente caducas, mas é ao mesmo tempo o critério apologético em que essas mesmas relações de produção se podem também justificar como um enquadramento institucional funcionalmente necessário. À medida que aumenta a sua eficiência apologética, a «racionalidade» neutraliza-se como instrumento de crítica e rebaixa-se a mero correctivo dentro do sistema; a única coisa que assim ainda se pode dizer é que, no melhor dos casos, a sociedade está «mal programada». Por conseguinte, ao nível do desenvolvimento técnico-científico, as forças produtivas parecem entrar numa nova constelação com as relações de produção: já não funcionam em prol de um esclarecimento polí fico como fundamento da crítica das legitimações vigentes, mas elas próprias se convertem em base da legitimação. Isto é o que Marcuse considera novo na história mundial.

Mas, se assim é, não deve então entender-se a racionalidade materializada nos sistemas da ação racional dirigida a fins como uma racionalidade especifica mente restrita? Não deve a racionalidade da ciência e da técnica, em vez de se reduzir às regras invariantes da lógica e da ação controlada pelo êxito, assumir já em si um a priori material surgido historicamente e, por isso, também historicamente superável? Marcuse responde pela afirmativa: «Os princípios da ciência moderna estavam a priori estruturados de tal modo que podiam servir como instrumentos conceituais para um universo de controles produtivos, que se levam a cabo automaticamente; o operacionalismo teórico correspondia, ao fim e ao cabo, ao prático. O método científico, que levava sempre a uma dominação cada vez mais eficaz da natureza, proporcionou depois também os conceitos puros e os instrumentos para uma dominação cada vez mais eficiente do homem sobre os homens, através da dominação da natureza… Hoje, a dominação eterniza-se e- amplia-se não só mediante a tecnologia, mas como tecnologia; e esta proporciona a grande legitimação ao poder político expansivo, que assume em si todas as esferas da cultura. Neste universo, a tecnologia proporciona igualmente a grande racionalização da falta de liberdade do homem e demonstra a impossibilidade «técnica» de ser autônomo, de determinar pessoalmente a sua vida. Com efeito, esta falta de liberdade não surge nem irracional nem como política, mas antes como sujeição ao aparelho técnico que amplia a comodidade da vida e intensifica a produtividade do trabalho. A racionalidade tecnológica protege assim antes a legalidade da dominação em vez de a eliminar e o horizonte instrumentalista da razão abre-se a uma sociedade totalitária de base racional».

A «racionalização» de Max Weber não é apenas um processo a longo prazo da modificação das estruturas sociais, mas também ao mesmo tempo «racionalização» no sentido de Freud: o verdadeiro motivo, a manutenção da dominação objetivamente caduca, é ocultado pela invocação de imperativos técnicos. Semelhante invocação é possível só porque a racionalidade da ciência e da técnica já é na sua imanência uma racionalidade do dispor, uma racionalidade da dominação.

O conceito de que a racionalidade da ciência moderna é uma formação histórica deve-o Marcuse também ao estudo de Husserl sobre a crise da ciência europeia e à destruição que Heidegger realiza da metafísica ocidental. No contexto materialista, também Bloch desenvolveu o ponto de vista de que a racionalização da ciência, desfigurada em termos capitalistas, rouba também à técnica moderna a inocência de uma simples força produtiva. Mas só Marcuse converte o «conteúdo político da razão técnica» em ponto de partida analítico de uma teoria da sociedade tardo-capitalista. Porque quer desenvolver este ponto de vista não só filosoficamente, mas também comprová-lo na análise sociológica, podem aqui patentear-se as dificuldades de tal concepção. Vou aqui limitar-me a apontar apenas uma dúvida que já aparece no próprio Marcuse.