Heidegger (GA7:48-50) – a ciência moderna é a teoria do real

[HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Tr. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 48-50]

Como teoria do real, a ciência moderna não é, pois, nada de espontâneo e natural. Não se trata de um simples feito do homem e nem de uma imposição do real. Ao contrário, a vigência do real carece da essência da ciência quando se ex-põe na objetidade do real. Este momento, como qualquer outro semelhante, é um mistério. Se os grandes pensamentos sempre chegam com os pés do silêncio, muito mais ainda é o que acontece com a transformação da vigência de todo vigente.

A teoria assegura para si uma região do real, como domínio de seus objetos. O caráter regional da objetidade aparece na antecipação das possibilidades de pesquisa. Todo novo fenômeno numa área da ciência será processado até enquadrar-se no domínio decisivo dos objetos da respectiva teoria. Trata-se de um domínio que, às vezes, se transforma, enquanto a objetidade, como tal, permanece imutável, em suas características básicas. Numa concepção rigorosa, a essência do “objetivo” propicia o fundamento para se predeterminar comportamento e procedimento. Há teoria pura quando um objetivo determina por si mesmo a teoria. Esta determinação provém da objetidade do real vigente. Abandonar esta objetidade equivaleria a negar totalmente a essência da técnica. Tal é o sentido, por exemplo, da frase de que a física de hoje não abole e elimina a física clássica de Newton e Galileu, apenas restringe-lhe o âmbito de validade. Esta restrição confirma também a objetidade decisiva para a teoria da natureza. Segundo ela, a natureza se oferece à representação num sistema de movimento espaço-temporal, de alguma forma, previsível pelo cálculo.

Porque a ciência moderna é uma teoria neste sentido, adquire importância decisiva em toda a sua observação o modo de tratar da ciência, ou seja, a maneira de ela proceder, em suas pesquisas, com vistas ao asseguramento processador, numa palavra, o seu método. Uma frase de Max Planck diz: “real é o que se pode medir”. Isso significa: a decisão do que deve valer, como conhecimento certo para a ciência, no caso para a física, depende da possibilidade de se medir e mensurar a natureza, dada em sua objetidade e, em consequência, das possibilidades dos métodos e procedimentos de medida e quantificação. Esta frase de Max Planck só é correta por expressar algo que pertence à essência da ciência moderna e não apenas das ciências naturais. O cálculo é o procedimento assegurador e processador de toda teoria do real. Não se deve, porém, entender cálculo em sentido restrito de se operar com números. Em sentido essencial e amplo, calcular significa contar com alguma coisa, ou seja, levá-la em consideração e observá-la, ter expectativas, esperar dela alguma outra coisa. Neste sentido, toda objetivação do real é um cálculo, quer corra atrás dos efeitos e suas causas, numa explicação causal, quer, enfim, assegure em seus fundamentos um sistema de relações e ordenamentos. Também a matemática não é um cálculo com números para se obter resultados quantitativos. A matemática é um cálculo que, em toda parte, espera chegar à equivalência das relações entre as ordens por meio de equações. E por isso mesmo “conta” antecipadamente com uma equação fundamental para todas as ordens possíveis.

Porque, como teoria do real, a ciência moderna se apoia no primado do método, por isso mesmo, para assegurar-se dos domínios de seus objetos, ela tem de separar as regiões do real umas das outras e enquadrá-las em disciplinas especiais, isto é, em especialidades. A teoria do real se cumpre necessariamente em disciplinas, sendo sempre especializações e especialidades.

A pesquisa de uma região do real deve dedicar-se, com seu esforço, à especificidade própria de seus objetos. É esta dedicação que transforma o procedimento da ciência disciplinada em pesquisa especializada. Por isso, a especialização não pode ser uma degeneração obtusa ou um fenômeno de decadência da ciência moderna. A especialização também não é um mal necessário. É uma consequência necessária e positiva da essência da ciência moderna.

A delimitação dos domínios de objetos e seu enquadramento em áreas de especialização não esgarçam as ciências, mas as presenteiam com uma troca entre suas fronteiras, desenhando-lhes regiões limítrofes e fronteiriças. É destas que surge o impulso científico que desencadeia questionamentos novos e muitas vezes decisivos. Trata-se de um fato conhecido. Seu fundamento, porém, continua misterioso, como toda a essência da ciência moderna.

Acabamos assim de caracterizar a essência da ciência moderna, esclarecendo a frase “a ciência moderna é a teoria do real”, em seus dois termos principais. Foi uma preparação para o segundo passo em que perguntamos: “que conjuntura invisível se esconde na essência da ciência?”