Heidegger (SZ:215-217) – concordância de algo com algo

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução revisada de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 286-288

O que significa o termo “concordância”? A concordância de algo com algo tem o caráter formal da relação de algo com algo. Toda concordância e, assim também, toda “verdade” é uma relação. Mas nem toda relação é uma concordância. Um sinal assinala para o assinalado. Assinalar é uma relação entre o sinal e o assinalado, mas não uma concordância. Decerto, nem toda concordância significa uma espécie de convenientia, tal como se fixou na definição da verdade. O número 6 concorda com 16-10. Os números concordam e são iguais, no tocante à quantidade. Igualdade é um modo de concordância. A ela pertence estruturalmente uma espécie de “perspectiva”. O que é isso em cuja perspectiva concorda aquilo que, na adaequatio, se relaciona? Ao se esclarecer a relação de verdade, deve-se também considerar a especificidade dos membros da relação. Em que perspectiva intellectus e res concordam? Será que, em seu modo de ser e em seu conteúdo essencial, eles proporcionam algo em cuja perspectiva podem concordar? Caso seja impossível uma igualdade entre eles, por não pertencerem à mesma espécie, não será então possível que ambos (intellectus e res) sejam semelhantes? Todavia, qualquer conhecimento deve “dar” a coisa assim como ela é. A “concordância” tem o caráter da relação “assim como”. De que modo essa relação se torna possível enquanto relação de intellectus e res? A partir dessas questões evidencia-se que, para se esclarecer a estrutura da verdade, não basta simplesmente pressupor esse todo relacional, mas é preciso reconduzir o questionamento a seu contexto ontológico que sustenta esse todo como tal.

Mas será necessário para isso arrolar toda a problemática “epistemológica” referente à relação sujeito-objeto? Ou será que a análise pode restringir-se à interpretação da “consciência (Bewusstsein) imanente da verdade”, permanecendo-se, portanto, “na esfera” do sujeito? Segundo a opinião geral, só o conhecimento é verdadeiro. Conhecer, porém, é julgar. Em todo julgamento, deve-se distinguir a ação de julgar enquanto processo psíquico real e o conteúdo julgado enquanto conteúdo ideal Deste último, diz-se que é “verdadeiro”. Em contrapartida, o processo psíquico real é simplesmente dado ou não. O conteúdo ideal do juízo é, pois, o que se acha numa relação de concordância. E esta diz respeito a um nexo entre o conteúdo ideal do juízo e a coisa real sobre a qual se julga.

Em seu modo de ser, a concordância é real, ideal ou nenhuma delas? Como se deve apreender ontologicamente a relação entre o ente ideal e o real simplesmente dado? Essa relação subsiste e consiste em juízos fáticos não somente entre o conteúdo do juízo e o objeto real, mas também entre o conteúdo ideal e a ação real de julgar; e aqui a relação não será manifestamente mais “intrínseca”?

Ou será que não se deve levantar a questão sobre o sentido ontológico da relação entre real e ideal (da methexis)? A relação deve, porém, subsistir. O que significa, do ponto de vista ontológico, subsistência?

O que pode constituir um obstáculo para a legitimidade dessa questão? Será um acaso que esse problema há mais de dois milênios não consiga sair do lugar? Ou será que o descaminho da questão consiste em seu ponto de partida, ou seja, na separação ontologicamente não esclarecida entre real e ideal?

E a separação entre a realização real e o conteúdo ideal não será ilegítima justamente no tocante à ação “real” de julgar alguma coisa? Não será que a realidade do conhecimento e do juízo se rompe em dois modos de ser ou “camadas”, cuja sutura jamais chegará a alcançar o modo de ser do conhecimento? Não terá razão o psicologismo quando se opõe a esta separação, embora ele próprio não esclareça ontologicamente o modo de ser do pensamento que pensa alguma coisa e nem mesmo reconheça esse problema?

Na questão sobre o modo de ser da adaequatio, apontar para a cisão entre conteúdo do juízo e ação de julgar não levará a discussão muito adiante. Com isso apenas se evidenciará que o esclarecimento do modo de ser do conhecimento ele mesmo torna-se inevitável. E preciso tentar uma análise do modo de ser do conhecimento e, ao mesmo tempo, visualizar o fenômeno da verdade que o caracteriza. Quando é que o fenômeno da verdade se torna expresso no próprio conhecimento? Sem dúvida, quando o conhecimento se mostra como verdadeiro. É a própria verificação de si mesmo que lhe assegura a sua verdade. No contexto fenomenal dessa verificação, portanto, é que a relação de concordância deve tornar-se visível.