A Patafísica (epi meta ta phusika) tem precisa e explicitamente o seguinte objeto: a grande Virada, a superação da metafísica, o remontar para além ou para aquém, “a ciência do que se acrescenta à metafísica, seja em si mesma, seja fora de si, estendendo-se tão longe para além da metafísica quanto esta da física”1. Desse modo, pode-se considerar a obra de Heidegger como um desenvolvimento da patafísica conforme os princípios de Sofrotates, o armênio, e de seu primeiro discípulo, Alfred Jarry. As grandes semelhanças, memoriais ou históricas, concernem ao ser do fenômeno, à técnica planetária e ao tratamento da língua.
I. Em primeiro lugar, como superação da metafísica, a patafísica é inseparável de uma fenomenologia, isto é, de um novo sentido e de uma nova compreensão do fenômeno. É uma semelhança alucinante entre os dois autores. O fenômeno já não pode definir-se como uma aparência, mas tampouco será definido, à maneira da fenomenologia de Husserl, como uma aparição. A aparição remete a uma consciência à qual aparece e pode ainda existir sob uma forma distinta daquilo que faz aparecer. O fenômeno, ao contrário, é o que mostra a si mesmo em si mesmo2. Um mostrador de relógio aparece redondo, cada vez que se lê a hora (utensilidade); ou mesmo, independente da utilidade, em virtude unicamente das exigências da consciência (banalidade cotidiana), a fachada de uma casa aparece quadrada, segundo algumas constantes de redução. Mas o fenômeno é o mostrador como série infinita de elipses ou a fachada como série infinita de trapézios: mundo feito de singularidades notáveis, ou que se mostram [104] (enquanto as aparições são apenas singularidades reduzidas ao ordinário, que aparecem ordinariamente à consciência)3. O fenômeno, a esse título, não remete a uma consciência, mas a um ser, ser do fenômeno, que consiste precisamente no mostrar-se. Esse ser do fenômeno é o “epifenômeno”, in-útil e in-consciente, objeto da patafísica. O epifenômeno é o ser do fenômeno, ao passo que o fenômeno é apenas o ente, ou a vida. Não o ser, e sim o fenômeno é que é percepção, perceber ou ser percebido, ao passo que Ser é pensar4. Sem dúvida o ser ou o epifenômeno não é algo distinto do fenômeno, mas dele difere absolutamente: é o mostrar-se do fenômeno.
A metafísica é um erro que consiste em tratar o epifenômeno como um outro fenômeno, outro ente, outra vida. Na verdade, mais do que considerar o ser como um ente superior que fundaria a constância dos demais entes percebidos, devemos pensá-lo como um Vazio ou um Não-ente, através de cuja transparência agitam-se as variações singulares, “caleidoscópio mental irisado (que) se pensa”5. O ente pode até parecer uma degradação do ser, e a vida uma degradação do pensamento; porém, mais ainda, diremos que o ente barra o ser, inflige-lhe a morte e o destrói, ou que a vida mata o pensamento; por isso não pensamos ainda. “Para em paz com minha consciência glorificar o Viver, quero que o Ser desapareça, resolvendo-se em seu contrário,” Contudo, esse desaparecimento, essa dissipação não provém do exterior. Se o ser é o mostrar-se do ente, ele mesmo não se mostra e não pára de retrair-se, estando ele próprio retirado ou retraído. Melhor ainda: retrair-se, apartar-se, é a única maneira pela qual ele se mostra enquanto ser, visto que ele é apenas o mostrar-se do fenômeno ou do ente.
II. A metafísica inteira cabe no retraimento do ser ou no esquecimento, pois confunde o ser com o ente. A técnica como dominação efetiva do ente é a herdeira da metafísica: ela a completa, a realiza. A ação e a vida “mataram o pensamento, portanto Vivamos e assim seremos os Senhores”. Nesse sentido, Ubu representa o grande ente, [105] a saída da metafísica como técnica planetária e ciência inteiramente mecanizada, a ciência das máquinas em seu sinistro frenesi. A anarquia é a bomba, ou a compreensão da técnica. Jarry propõe uma concepção curiosa do anarquismo: “A Anarquia É”, mas faz o Ser decair no ente da ciência e da técnica (o próprio Ubu se converterá em anarquista para melhor fazer-se obedecer)6. Em termos mais gerais, a obra inteira de Jarry não pára de invocar ciência e técnica, povoando-se de máquinas e colocando-se sob o signo da Bicicleta·, com efeito, esta não é uma máquina simples, mas o modelo simples de uma Máquina adequada aos tempos7. A Bicicleta transforma a Paixão como metafísica cristã da morte de Deus em corrida de etapas eminentemente técnica8. A bicicleta, com sua corrente e suas marchas, é a essência da técnica: envolve e desenvolve, opera a grande Virada da terra. A bicicleta é quadro, como o “quadripartito” de Heidegger.
Assim, se o problema é complexo, é porque tanto em Jarry como em Heidegger a técnica e a ciência tecnicizada não se contentam em acarretar o retraimento ou o esquecimento do ser: o ser se mostra igualmente na técnica pelo fato de que dela se retrai, enquanto dela se retrai. Mas isto só pode ser compreendido patafisicamente (ontologicamente), não metafisicamente. Por isso Ubu inventa a patafísica, ao mesmo tempo que promove a técnica planetária: ele compreende a essência da técnica — compreensão que Heidegger credita de modo imprudente ao nacional-socialismo. O que Heidegger encontra no nazismo (tendência populista), Jarry encontra-o no anarquismo (tendência direitista). Dir-se-ia que nos dois autores a técnica é o lugar de um combate no qual ora o ser se perde no esquecimento, no retraimento, ora, ao contrário, nela se mostra ou se desvela. Não basta, com efeito, opor o ser e seu esquecimento, o ser e seu retraimento, já que o que define a perda do ser é antes o esquecimento do esquecimento, o retraimento do retraimento, ao passo que o retraimento e o esquecimento [106] constituem a maneira pela qual o ser se mostra ou pode mostrar-se. A essência da técnica não é técnica, e “contém a possibilidade de que aquilo que salva se alce em nosso horizonte”9. Portanto, o acabamento da metafísica na técnica torna possível a superação da metafísica, isto é, a patafísica. Donde a importância da teoria da ciência e da experimentação das máquinas como parte integrante da patafísica: a técnica planetária não é simplesmente a perda do ser, mas a eventualidade de sua salvação.
O ser se mostra duas vezes: uma primeira em relação à metafísica, num passado imemorial, visto que retraído de qualquer passado da história — o sempre Já-pensado dos gregos. Uma segunda vez em relação à técnica, num futuro inassinável, pura imanência ou possibilidade de um pensamento sempre por vir10. É o que aparece em Heidegger, com a Ereignis, que é como uma eventualidade do Acontecimento, uma Possibilidade de ser, um Possest, um Por-vir que extravasa qualquer presença do presente bem como qualquer imemorial da memória. Em seus últimos escritos, Heidegger já nem sequer fala de metafísica ou de superação da metafísica, uma vez que o ser por seu turno deve ser superado, em favor de um Poder-Ser que já se relaciona unicamente com a técnica11. Do mesmo modo, Jarry deixará de falar em patafísica à medida que for descobrindo o Possível para além do ser, em O Supermacho como romance do futuro, e mostrará em seu último escrito, La Dragonne, como o Possível supera o presente e o passado para produzir um novo amanhã12. Ora, em Jarry também essa abertura do possível necessita da ciência tecnicizada: já o víamos do ponto de vista restrito da própria patafísica. E se Heidegger define a técnica pela ascensão de um “fundo” que apaga o objeto em favor [107] de uma possibilidade de ser — o avião como possibilidade de voar em todas as suas partes —, Jarry por sua vez considera a ciência e a técnica como a ascensão de um “éter”, ou o desvelamento de traçados que correspondem às potencialidades ou virtualidades moleculares de todas as partes do objeto: a bicicleta, o quadro da bicicleta constitui precisamente um excelente modelo atômico, visto ser constituído “de barras rígidas articuladas e guidãos animados por um rápido movimento de rotação”13. O “bastão de física” é o ente técnico por excelência que descreve o conjunto de suas linhas virtuais, circulares, retilíneas, cruzadas. Nesse sentido, a patafísica já comporta uma poderosa teoria das máquinas e já ultrapassa as virtualidades do ente em direção à possibilidade de ser (Ubu envia seus inventos técnicos a um escritório cujo chefe é o Senhor Possível), segundo uma tendência que culminará com O Supermacho,
A técnica planetária é pois o lugar de reviravoltas, conversões ou viradas eventuais. A ciência, com efeito, trata o tempo como variável independente; por isso as máquinas são essencialmente máquinas de explorar o tempo, “tempomóvel” mais do que locomovel. Tendo em vista esse caráter técnico, a ciência primeiramente torna possível uma reversão patafísica do tempo: a sucessão das três estases, passado, presente, futuro, dá lugar à co-presença ou simultaneidade das três estases, ser do passado, ser do presente, ser do futuro. A presença é o ser do presente, mas também o ser do passado e do futuro. A éthernité, a eternidade, não designa o eterno, mas a doação ou a excreção do tempo, a temporalização do tempo tal como se efetua simultaneamente nessas três dimensões (Zeit-Raum). Por isso a máquina começa transformando a sucessão em simultaneidade, antes de chegar à última transformação “em reversão”, quando o ser do tempo em sua totalidade se converte em Poder-ser, em possibilidade de ser enquanto Porvir. Jarry talvez se recorde de seu professor Bergson quando retoma o tema da Duração, que ele primeiramente define por uma imobilidade na sucessão temporal (conservação do passado), depois como uma exploração do futuro ou uma abertura do porvir: “A Duração é a transformação de uma sucessão em reversão — isto é: o devir de uma memória”. É uma reconciliação profunda entre a [108] Máquina e a Duração14. Essa reversão constitui igualmente uma reviravolta na relação entre o homem e a máquina: não só os índices de velocidade virtual se invertem ao infinito, a bicicleta tornando-se mais rápida que o trem, como na grande corrida do Supermacho, mas a relação do homem com a máquina dá lugar a uma relação da máquina com o ser do homem (Dasein ou Supermacho), dado que o ser do homem é mais possante que a máquina e consegue “carregá-la”. O Supermacho é esse ser do homem que já não conhece a distinção entre homem e mulher, uma vez que a mulher inteira passou para a máquina, sendo absorvida por ela, e só o homem sobrevêm como potência celibatária ou poder-ser, emblema da cissiparidade, “longe dos sexos terrestres” e “o primeiro do porvir”15.
Jarry, Faustroll, II, 8, Pléiade, p. 668. ↩
Heidegger, Etre et temps, § 7 (“A ontologia só é possível como fenomenologia”, mas Heidegger invoca os gregos mais que Husserl). ↩
Jarry, Faustroll, idem. ↩
Jarry, Etre et vivre, (Pléiade I, p. 342): “ser, desemperequetado do arreio de Berkeley […]” ↩
Jarry, Faustroll e Etre et uivre (“Viver é o carnaval do Ser […]”). ↩
Sobre a anarquia segundo Jarry, cf. não só Etre et vivre mas sobretudo Visions actuelles et futures. ↩
O apelo à ciência (física e matemática) aparece sobretudo em Faustroll e Le Surmâle —, a teoria das máquinas está particularmente elaborada num texto complementar de Faustroll, Commentaire pour servir à la construction pratique de la machine à explorer le temps (Pléiade I, pp. 734-743). ↩
“A Paixão considerada como corrida costeira”, La Chandelle verte (Pleiade II, pp. 420, 422). ↩
Heidegger, Essais et conférences, “La question de la Technique”, Gallimard, pp. 44-45. ↩
Marlene Zarader salientou particularmente essa dupla virada em Heidegger, uma para trás, a outra para frente: Heidegger et les paroles de l’origine, Vrin, pp. 260-273. ↩
Heidegger, Questions IV, “Temps et être”, Gallimard: “sem consideração pela metafísica”, nem sequer “intenção de superá-la”. ↩
H. Bordillon, Préface, Pléiade II: Jarry “quase nunca utiliza o termo patafísica, entre 1900 e sua morte”, salvo em textos que se referem a Ubu. (Desde Etre et vivre, Jarry dizia: “O Ser, subsupremo da Ideia, pois menos compreensivo que o Possível…”, Pléiade I, p. 342). ↩
Cf. a definição da patafísica, Faustroll: ciência “que atribuí simbolicamente aos lineamentos as propriedades dos objetos descritos por sua virtualidade”. E La Construction pratique: sobre o quadro, Pléiade I, pp. 739-740. ↩
La Construction pratique, que expõe o conjunto da teoria do tempo de Jarry: é um texto obscuro e muito belo, que deve ser relacionado tanto com Bergson quanto com Heidegger. ↩
Reportar-se à descrição das máquinas de Jarry, e a seu teor sexual, em Les Machines célibataires de Carrouges, Ed. Arcanes. Reportar-se igualmente ao comentário de Derrida, quando supõe que o Dasein segundo Heidegger comporta uma sexualidade, porém irredutível à dualidade que aparece no ente animal ou humano (“Différence sexuelle, différence ontologique”, in Heidegger, L’Herne). ↩