Deleuze (Diferença Repetição) – Virtual

Não paramos de invocar o virtual. Não seria isto recair no vago de uma noção mais próxima do indeterminado do que das determinações da diferença? Todavia, era isto que queríamos evitar ao falarmos, precisamente, de virtual. Opusemos o virtual ao real; agora, é preciso corrigir esta terminologia que ainda não podia ser exata. O virtual não se opõe ao real, mas somente ao atual. O virtual possui uma plena realidade enquanto virtual. Do virtual, é preciso dizer exatamente o que Proust dizia dos estados de ressonância: “Reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos”, e simbólicos sem serem fictícios. O virtual deve ser mesmo definido como uma estrita parte do objeto real — como se o objeto tivesse uma de suas partes no virtual e aí mergulhasse como numa dimensão objetiva. […] […] A estrutura é a realidade do virtual. Aos elementos e às relações que formam uma estrutura devemos evitar, ao mesmo tempo, atribuir uma atualidade que eles não têm e retirar a realidade que eles têm. Vimos que um duplo processo de determinação recíproca e de determinação completa definia essa realidade: em vez de ser indeterminado, o virtual é completamente determinado. Quando a obra de arte se reclama de uma virtualidade na qual mergulha, ela não invoca qualquer determinação confusa, mas a estrutura completamente determinada, formada por seus elementos diferenciais genéticos, elementos tornados virtuais, tornados embrionários. Os elementos, as variedades de relações, os pontos singulares coexistem na obra ou no objeto, na parte virtual da obra ou do objeto, sem que se possa assinalar um ponto de vista privilegiado sobre os outros, um centro que seria unificador de outros centros. Mas como se pode falar de determinação completa e, ao mesmo tempo, de uma parte apenas do objeto? A determinação deve ser uma determinação completa do objeto e, todavia, formar apenas uma parte dele. É que, segundo as indicações de Descartes nas — Respostas a Arnauld, deve-se distinguir com cuidado o objeto como completo e o objeto como inteiro. O completo é apenas a parte ideal do objeto, a que participa, com outras partes de objetos, da Ideia (outras relações, outros pontos singulares), mas que nunca constitui uma integridade como tal. O que falta à determinação completa é o conjunto das determinações próprias da existência atual. Um objeto pode ser ens, ou, sobretudo, (não)-ens omni modo determinatum, sem ser inteiramente determinado ou existir atualmente.

[…]

Há, pois, uma outra parte do objeto, que se encontra determinada pela atualização. O matemático pergunta qual é essa outra parte representada pela função dita primitiva; a integração, neste sentido, de modo algum é o inverso da diferençação, mas forma, antes, um processo original de diferenciação. Ao passo que a diferençação determina o conteúdo virtual da Ideia como problema, a diferenciação exprime a atualização desse virtual e a constituição das soluções (por integrações locais). A diferenciação é como a segunda parte da diferença, e é preciso formar a noção complexa de diferenç/ci/ação para designar a integridade ou a integralidade do objeto. O ç e o ci são aqui o traço distintivo ou a relação fonológica da diferença. Todo objeto é duplo, sem que suas duas metades se assemelhem, sendo uma a imagem virtual e, a outra, a imagem atual. Metades desiguais ímpares.

DELEUZE, G.; L. ORLANDI; R. MACHADO. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.