[HEIDEGGER, Martin. Introdução à Filosofia. Tr. Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 176-178]

Com que direito decretamos simplesmente que o mito é uma superstição? Mas, se não há razão alguma para que façamos isso, [177] haveria razão para afirmar a subsistência de verdades diversas em relação ao ente? E como essas verdades se comportam e se relacionam umas com as outras? Se aceitarmos ou compreendermos fundamentalmente que também há no mito uma verdade própria, então não mais haverá, evidentemente, nenhuma diferença essencial entre a verdade pré-científica e a verdade científica. Nesse caso, essas duas verdades só se mostrarão como diversas segundo o grau; e, com efeito, somente na medida em que a ciência contém mais conhecimentos, em que o indivíduo é determinado mais exatamente e é mais bem fundado em seu contexto. Mas a partir de que grau se inicia a verdade científica, e onde cessa a verdade pré-científica? Não é justamente a verdade do mito que tem a prerrogativa de uma coerência única, e seu poder não repousa exatamente no fato de que tudo está uniformemente fundamentado, ao passo que nós, diante dos fatos manifestos, não vemos mais em algumas ciências a realidade efetiva do ente?

Assim, a verdade científica não é nem a única espécie de verdade nem a mais elevada. Mesmo a essência dessa verdade não pode consistir no fato de que uma gama supremamente numerosa de fatos se torne manifesta e em que a determinação desses fatos comporte em si um grau mais elevado de exatidão. Por meio de tais comparações, não alcançamos a essência da ciência nem uma caracterização da essência do ser-aí científico; no máximo vemos que não podemos de maneira alguma atribuir-lhe a distinção que se gostaria de lhe imputar, apoiados em um certo pensamento esclarecido.

De que outro modo, porém, podemos lançar luz sobre a essência da ciência e do ser-aí científico? Ciência é um tipo de verdade. A verdade pertence ao ser-aí. Na medida em que esse ser-aí existe, ele é no seio da verdade. Se retivermos essa ideia de verdade, se tomarmos assim a ciência como um modo do ser-na-verdade, imediatamente nos depararemos com algo conhecido; a ciência consiste justamente em uma atitude particular. Sabemos, desde a Antiguidade, que a ciência é uma atitude considerada teórica — [178] teórica em contraposição à prática. Teoria e prática significam: o mero pensar e especular de um lado, a execução e aplicação do que foi pensado e conhecido do outro lado.

No entanto, a ciência não é apenas um mero modo de comportamento. Ao contrário, ela é uma possível postura fundamental da existência humana, um βίος, um θεωρετικός βίος. Como a partir desse ponto não é determinada apenas a ideia da ciência ocidental, mas também essencialmente a ideia da filosofia, precisamos discutir mais exatamente o que a Antiguidade compreendia por essa ideia — ainda que aqui, naturalmente, somente o que há de mais essencial para o nosso intuito particular. Uma discussão mais abrangente teria de responder a uma série de perguntas inter-relacionadas.

Martin Heidegger