3) Uma versão da rejeição do problema do conhecimento é a filosofia de Marx, continuada, neste ponto, pelas diferentes ramificações do marxismo do século XX (a de Brzozowski em primeiro lugar). Esta filosofia demonstra que o homem não pode adotar o ponto de vista de um observador sobre-humano de si próprio, ou seja, não pode perceber sua própria percepção como uma rutura dentro da escala evolutiva sem cair num círculo vicioso. Desde a perspectiva do esforço prático, as coisas aparecem ao homem como valores, como coisas que têm destino. A consciência é um ser provido de certeza de si, e a natureza é aquilo com que se enfrenta a práxis coletiva do trabalho.

Objeto e sujeito são conhecidos apenas enquanto opostos e enquanto se refiram reciprocamente. Não existe visão ahistórica da história nem uma verdade independente da situação em que foi assimilada, ou seja, que não esteja ligada à atividade criadora da espécie na busca de seus próprios fins. O homem não pode amarrar o conhecimento a um ponto de partida pré-humano que tenha valor nulo; ele é, para si mesmo, um ponto de partida definitivo e inevitável.

Outra variante é a filosofia de Whitehead, que considera separadamente o problema do conhecimento, ou seja, o vincula à perspectiva histórica. Nesta variante, as imagens estão em nós e nós estamos em nossas imagens. A experiência se refere ao ato de percepção, ou seja, ao evento de percepção que configura os coeficientes de cada elemento da experiência (ocasião). Por conseguinte, o evento está co-determinado pelo movimento que o compreende percebendo-o. Não há, então, diferença entre o que estaria “no espírito” e o que estaria “fora do espírito” (não há nenhum “interior”; nisto Whitehead coincide com a doutrina de Avenarius). O conhecimento da natureza não é uma assimilação, em imagens, de um material acabado; é conhecimento “a partir de dentro”.

A filosofia de Merleau-Ponty aponta para outra direção, mas questiona igualmente a diferenciação cartesiano-escolástica, ou seja, não admite a “coisa” que entraria misteriosamente no campo da subjetividade. O cogito cartesiano divide a consciência em percepção e consciência de percepção; tal divisão é falsa pois não está contida no ato de percepção. A percepção é absolutamente original e não há nada que a preceda; não se pode, então, inquirir sua gênese, como tampouco se pode perguntar se a percepção penetra até o mundo em si, já que a representação de tal mundo não poderia integrar-se, com sentido, a uma totalidade de percepção. Em outras palavras, o homem não dispõe de um solo extra-humano no qual se basearia, sabendo, ao mesmo tempo, que se baseia nele. Deve partir de si mesmo; qualquer outro começo é produto de uma abstração secundária,que não é possível legitimar sem recorrer à situação humana. As perguntas genéticas sobre o homem pressupõem falsamente um ponto de observação sobre-humano, do qual o homem pode ser visto como relativo. Tanto a relativação do homem nas interpretações científicas (integração no mundo pré-humano, nas teorias da evolução; vinculação da percepção com os comportamentos concretos do organismo, na investigação fisiológica) como sua redução a um ser não-humano são sempre secundárias frente à percepção. Essas reduções não podem desprender-se do humano; são, portanto, ilícitas se supõem haver escapado dessa prisão. Os que as empreendem relativizam o ser humano e, ao mesmo tempo, creem haver encontrado, como homens, um ponto de vista não-relativo. Na realidade, visto que não se pode escapar do humano, o homem se encontra a si mesmo como a única realidade não condicionada. Sabe que não é uma realidade incondicionada, mas não pode articular sua própria relatividade sem cair em um círculo vicioso: com efeito, a percepção é sempre anterior, e nela o ser humano e o mundo são dados, juntos, em uma união indestrutível. Portanto, não podemos explicar o sentido que outorgamos a coisas e situações referindo-o às necessidades corporais pré-conscientes, pois, em tal caso, recairíamos na mesma animalização ilegítima do ser humano. Outorgamos sentido às coisas por meio do projeto; e essa outorga de sentido precede sempre sua determinação fixa como tais coisas. As necessidades são, pelo contrário, o sentido que outorgamos a nossa existência. Consequentemente, o plano de redução de Husserl é falso e falsa é a secreta fé dos cientificistas, que se creem livres da parcialidade humana para interpretar a própria parcialidade humana.

KOLAKOWSKI, L. A Presença do mito. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981.

Leszek Kolakowski