Publicado originalmente sob o título: “Le statut de la science dans la dynamique de la compréhension”, em Recherches et Débats, n. 75 (publicado sob o título geral: Chemins de la Raison), Desclée de Brouwer.
É preciso agora perguntar se essa distinção está bem clara e se realmente explicamos a ciência como ela é quando seguimos a análise de Husserl. A ideia que ainda prevalece é a de que a ciência positiva — falamos sempre da ciência no sentido da ciência positiva — é puramente ciência da exterioridade. Nessa noção, afinal de contas, encontramos ainda, pelo menos em sua inspiração subjacente, o velho conceito cartesiano da ciência positiva como ciência da extensão no espaço. Isso nos leva a ver uma oposição entre os domínios da interioridade e da exterioridade, da subjetividade e da objetividade. E o fato de que a subjetividade é agora uma subjetividade transcendental não muda essencialmente nada nessa situação. Será que isso faz justiça à ciência? Não será esta uma visão demasiado estreita da ciência? Se examinarmos o desenvolvimento da ciência nos últimos tempos, pelo menos o desenvolvimento das ciências mais avançadas, e consequentemente das ciências que são as mais lúcidas a respeito de si mesmas, temos que admitir que a preocupação acerca de sua base e fundamento não é de modo algum ignorada por elas. Cada vez mais a ciência se torna, por assim dizer, uma ciência do segundo nível. Ela não é apenas um conhecimento do conteúdo do domínio estudado, mas se torna um conhecimento das operações por meio das quais esse domínio pode ser conhecido. Mais ainda: a ciência torna-se ciência do segundo nível, no sentido de que o conteúdo do domínio é conhecido através do conhecimento das operações por meio das quais o domínio nos é dado. A teoria aqui precede a prática e regula seus passos. Isso não significa que o conhecimento científico seja puramente a priori, no sentido de impor um quadro arbitrário ao conhecimento dos fatos. Mas significa que a ciência se torna explicitamente consciente da maneira pela qual os fatos podem e devem ser conhecidos, que ela assim se torna capaz de generalizar essas observações e, finalmente, de voltar aos fatos com instrumentos mais poderosos que a capacitam a obter, num único passo, toda uma categoria de resultados. Em outros termos, a ciência torna-se metaciência.
Na física, por exemplo, a teoria torna-se consciente de si mesma e transforma-se numa teoria das teorias. Há estudos sistemáticos acerca das formas possíveis de teorias e sobre o tipo de resultados que podem ser obtidos com tais ou quais formas de teoria. E — com Eddington — chegamos até mesmo à ideia de uma espécie de dedução das leis físicas, não sem analogia com a dedução kantiana das categorias, a partir de considerações bastante gerais sobre a maneira pela qual os fatos físicos podem nos ser dados e a estrutura dessa “doação” dos dados pode se expressar matematicamente. A matemática aparece como a expressão, não diretamente dos fatos, mas da maneira pela qual os fatos nos são dados. Aliás, não nos encontramos mais às voltas, no domínio da matemática, unicamente com teorias que se refiram diretamente às entidades matemáticas clássicas, com teorias do primeiro nível, mas também com teorias relativas às propriedades gerais das diferentes formas possíveis de teorias. Obtemos, deste modo, resultados de uma extrema generalidade, e isto não é mais uma indução ou generalização, mas é realmente uma dedução. O particular enquanto particular é descoberto a partir de princípios gerais.
Temos que dizer, portanto, que a ciência está se voltando agora para uma dimensão de realizações mais nova, mais profunda, e está se transformando de uma certa maneira numa ciência dos fundamentos. Ela passa assim a garantir seu próprio fundamento. Além disso, ao se voltar para os problemas de fundamentação, ela introduz a subjetividade, não, claro, no sentido de uma subjetividade transcendental, mas no sentido de uma subjetividade operativa. Realmente nos encontramos aqui diante de um processo pelo qual o conhecimento científico se torna cônscio da maneira pela qual ele conhece, vale dizer, das operações pelas quais atingimos um conhecimento válido. Deste modo, a ciência moderna descobre ao mesmo tempo duas coisas que estão interligadas: a subjetividade científica e o domínio constitutivo de cada ciência. Neste sentido, há em toda ciência um real discernimento da essência mesma de seu domínio próprio, não no sentido de uma pura e simples intuição, mas no sentido de uma caracterização global de um campo operativo.
Como será possível, então, manter o significado da distinção entre ciência e filosofia tal como a entende a tradição cartesiana? Não estaremos obrigados a modificar até certo ponto as perspectivas de Descartes e de Husserl?