Lima Vaz (Ciência) – Gerald Holton

LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de Filosofia II. Ética e Cultura. São Paulo: Edições Loyola, 2000

Nos inícios da década de 60, o físico americano e notável historiador da ciência, Gerald Holton, chamava a atenção sobre um dos aspectos mais paradoxais da cultura contemporânea, que se pretende uma cultura emancipada e “ilustrada”: o contraste entre, de um lado, o avanço prodigioso das ciências e das técnicas e, de outro, o lugar relativamente diminuto que a compreensão científica do mundo ocupa na visão da realidade do homem comum do nosso tempo e mesmo das elites intelectuais não-científicas [Modern Science and the intellectual tradition (1960), ap. Thematic origins of scientific Thought, Harvard, 1973, 445-459]. Holton estabelece um confronto significativo entre a curiosidade científica do homem cultivado do século XVIII — quando a Marquesa de Châtelet, sob as bênçãos de Voltaire, traduzia os Principia de Newton — e a alarmante incultura científica do intelectual contemporâneo, a um tempo desarmado e temeroso diante do Leviatã científico. Através do know-how tecnológico e dos produtos técnicos, a ciência rege os processos de produção e modela a vida dos indivíduos e das sociedades. Mas tudo leva a crer que um abismo se aprofunda e se alarga entre o manejo profissional dos aparatos de produção e o consumo dos objetos técnicos de uma parte e, de outra, a concepção da realidade à qual esses instrumentos e objetos teoricamente se articulam.

Que pensa da ciência o homem comum e o intelectual não-cientista? Holton enumera sete imagens difundidas na consciência comum, e cada uma delas acentua um dos aspectos do hiato que separa a cultura geral e uma correta concepção da ciência: 1. a ciência é considerada como pensamento puro, mas que produz instrumentos poderosos e misteriosos de ação; 2. é olhada como impiedoso afã iconoclasta das crenças mais veneráveis; 3. é vista como atividade independente e neutra diante de qualquer responsabilidade ética; .4 é tida como um processo incontrolável que coloca o cientista na incômoda situação de aprendiz de feiticeiro; 5. é responsabilizada pelos desastres ecológicos que destroem o ecossistema natural do homem e dos outros seres vivos; 6. é identificada com essa forma de sectarismo intelectual que se convencionou denominar “cientismo”; 7. finalmente, a ciência aparece aos olhos de um grande número como a herdeira bem-sucedida do velho operar mágico, capaz de extrair da realidade os mais surpreendentes efeitos. Holton não encontra dificuldade em mostrar a inconsistência de cada uma dessas imagens. Mas elas são o indício da perigosa incompreensão do fazer científico que se difunde entre os homens de uma civilização que se caracteriza exatamente como civilização da Razão científica ou que está submetida ao inexorável processo de “cientifização” (Ver wissenschaftlichung) de que fala J. Habermas.

Esse é um dos lados da medalha. Mas o reverso não é menos inquietante. Se, de um lado, o homem comum e as elites intelectuais não-científicas revelam um profundo desconhecimento dos procedimentos mais elementares e dos conteúdos mais básicos do pensamento científico, de outro as elites científicas parecem cada vez menos aptas a compreender a natureza dos problemas que ultrapassam necessariamente o âmbito estrito do saber científico e dizem respeito às interrogações fundamentais sobre o homem e a sociedade.