Nietzsche – A visão científica é uma visão mesquinha do mundo

[NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tr. Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães Editores, 2000, §373 (ebook)]

373 — O preconceito “científico” — As leis da hierarquia proíbem aos sábios que pertencem à classe intelectual média distinguir os grandes problemas, os verdadeiros pontos de interrogação; nem a sua coragem nem a sua vista podem, de resto, ir assim muito longe; é preciso dizer sobretudo isto: que a necessidade que os leva às pesquisas, a ambição, o desejo íntimo que podem ter de encontrar as coisas feitas desta e daquela maneira, o receio, a esperança que experimentam, depressa ficam apaziguadas, satisfeitas. O que provoca, por exemplo, o entusiasmo particular do pedantesco e britânico Herbert Spencer, que delira à sua maneira, o que lhe faz traçar a linha do horizonte, a linha de esperança no limite do desejável — quero dizer, essa reconciliação do “egoísmo e do altruísmo” com que divaga —, não desperta em nós, ou quase, senão nojo: a humanidade que só tiver como horizonte definitivo as spencerianas perspectivas há-de aparecer-nos digna de desprezo e de aniquilamento! Mas só o fato de ele se não ter podido impedir de considerar como suprema esperança o que aparece, e licitamente, a outros, como repugnante possibilidade, põe um ponto de interrogação que ele não teria sido capaz de prever… O mesmo sucede com a fé com que se satisfazem hoje tantos sábios materialistas que acreditam que o mundo deve ter a sua medida às nossas pequenas escalas e o seu equivalente no nosso pequeno pensamento; acreditam num “mundo do verdadeiro” que a nossa pequena razão humana, a nossa pequena razão grosseira, poderia finalmente vencer… Pois quê! Queremos nós verdadeiramente deixar que assim se degrade a existência? Deixá-la rebaixar ao nível de exercício de cálculo, fazer dela uma pequena punição para matemáticos? Em primeiro lugar, é preciso recusar a todo o custo despojá-la do seu caráter prometaico; é o bom gosto que assim o exige, meus senhores, o respeito por tudo o que ultrapassa o vosso horizonte! Que só valha uma interpretação do mundo que vos dê razão a vós, uma interpretação que autorize a procurar e a prosseguir trabalhos no sentido que vós dizeis científicos (é mecânico que vós pensais, não é verdade?), que só valha uma interpretação do mundo que não permita senão contar, calcular, pesar, ver e tocar, é despropósito e ingenuidade quando não é demência ou idiotia. Não é provável, pelo contrário, que a primeira coisa, e talvez a única, que se possa atingir da existência, seja o que ela tem de mais superficial, de mais exterior, de mais aparente? A sua epiderme apenas? As suas manifestações concretas? Uma interpretação “científica” do mundo, tal como o entendeis, meus senhores, poderá ser, portanto, uma das mais estúpidas entre todas as que são possíveis: seja dito isto ao vosso ouvido, à vossa consciência, mecânicos da nossa época que vos misturais de tão bom grado com os filósofos e que imaginais que a vossa mecânica é a ciência das leis primeiras e últimas e que toda a existência deve assentar nelas, como numa base necessária. Um mundo essencial mente mecânico! Mas havia de ser um mundo essencialmente estúpido. Se medíssemos o “valor” de uma música pelo que dela se pode calcular e contar, pelo que se pode traduzir em números… quão absurda não havia de ser essa avaliação “científica”! Que se teria verdadeiramente apanhado, compreendido, conhecido de uma melodia assim avaliada? Nada, literalmente nada, daquilo que faz precisamente a sua “música”!…