Schutz – Fenomenologia em Foco

Excertos de “Fenomenologia e Relações Sociais. Textos escolhidos de Alfred Schutz”

Até agora os cientistas sociais não acharam uma abordagem apropriada para o movimento fenomenológico iniciado com os textos básicos de Edmund Husserl nas três primeiras décadas c!e nosso século. Em certos círculos, o fenomenologista é tido como uma espécie de mago de bola de cristal, um metafísico ou ontologista no sentido pejorativo dessas palavras, enfim, como uma pessoa que desdenha todos os fatos empíricos e os métodos científicos mais ou menos estabelecidos criados para coletá-los e interpretá-los. Outros, mais bem informados, acham que a Fenomenologia pode ter uma certa importância para as Ciências Sociais. mas veem os fenomenologistas como um grupo esotérico cuja linguagem é incompreensível para um estranho e com quem não vale a pena incomodar-se. Um terceiro grupo formou uma ideia vaga e principalmente errônea do que a Fenomenologia significa, com base em alguns dos slogans usados por autores que, simplesmente, pretendem ser fenomenologistas, sem usar o método de Husserl (como, por exemplo. Theodor Litt). ou usados por fenomenologistas (como Max Scheler) em textos não-fenomenológicos, que tratam de assuntos das Ciências Sociais…

A tentativa de reduzir o trabalho de um grande filósofo a algumas proposições básicas ao alcance de um público não-familiarizado com o seu pensamento é, em regra, um empreendimento frustrado. E, com relação à Fenomenologia de Husserl. existem diversas dificuldades especiais. A parte publicada de sua Filosofia, apresentada de maneira condensada, e através de uma linguagem altamente técnica, tem um caráter bastante fragmentário. Ele considerava essencial recomeçar repetidas vezes sua pesquisa, não só sobre os fundamentos básicos da própria Filosofia, mas também sobre os de todo o pensamento científico. Seu objetivo era mostrar as pressuposições implícitas nas quais se baseia qualquer ciência do mundo das coisas naturais e sociais, inclusive a Filosofia atual. Seu ideal era ser um “aprendiz” de Filosofia, no sentido mais literal do termo. Só através de análises cuidadosas, firme consistência e de uma mudança radical nos nossos hábitos de pensamento é que podemos esperar revelar a esfera de uma “Filosofia primeira”, que leve em conta os requisitos que uma “ciência exata” digna do nome exige.

É verdade que muitas ciências são comumente chamadas de Ciências Exatas, sendo que essa expressão se refere, em geral, à possibilidade de presentar o conteúdo da ciência de forma matemática. Não é esse o significado que Husserl deu à expressão… Ele estava convencido de que o nome dado às chamadas Ciências Exatas, que usam a linguagem matemática com tanta eficiência, pode levar a uma compreensão das nossas experiências do mundo – um mundo cuja existência elas pressupõem de modo acrítico e o qual pretendem medir com padrões e ponteiros regulados segundo as escalas de seus instrumentos. Todas as ciências empíricas se referem ao mundo como dado: mas elas próprias, e os seus instrumentos, são elementos desse mundo. Só a dúvida filosófica com respeito às pressuposições implícitas em todo o nosso pensamento habitual – científico ou não – pode garantir a “exatidão” dessa mesma tentativa filosófica e também das de todas as ciências que tratam, direta ou indiretamente, das nossas experiências do mundo…

Esse esboço do objetivo geral de Husserl pode explicar as grandes dificuldades que encontra um iniciante que tenta associar à Fenomenologia um dos rótulos comuns nos livros de estudo, tais como idealismo, realismo, empirismo. Nenhuma dessas classificações de escolas pode ser apropriadamente aplicada a uma Filosofia que as coloca todas em questão. A Fenomenologia busca o início real de todo o pensamento filosófico e deve, quando estiver completamente desenvolvida, acabar onde todas as Filosofias tradicionais começam. Seu lugar é além – ou melhor, antes – de todas as distinções entre realismo e idealismo.

Essas notas introdutórias talvez possam ajudar a desfazer uma interpretação errônea muito difundida da natureza da Fenomenologia – a crença de que ela é anticientífica, baseada não em análise e descrição, mas numa espécie de intuição sem controle, ou revelação metafísica. Mesmo muitos estudiosos sérios de Filosofia têm sido induzidos a classificar a Fenomenologia como metafísica porque ela deliberadamente recusa-se a aceitar de modo acrítico percepções sensoriais, fatos biológicos, sociais e ambientais como dados, como pontes de partida inquestionáveis para investigação filosófica. Além disso, o uso que Husserl fez de certos termos impróprios, tais como Wesensschau, impediu muita gente de admitir na Fenomenologia um método filosófico de pensamento.

Pois ela é um método, e tão “científico” quanto qualquer outro.