João Carlos Correia – Alfred Schutz

João Carlos Correia. Comunicação e Sociedade: A Fenomenologia de Alfred Schutz. Covilhã, 2002

Desde logo, destaca-se a sua contribuição para a reflexão sobre a Epistemologia e Metodologia das Ciências Sociais. À luz de Schutz é possível percebemos de um modo mais claro a actualidade da distinção entre as sociologias compreensivas, nomeadamente as de inspiração fenomenológica, e as perspectivas mais acentuadamente marcadas pela herança de Durkheim e pela tradição filosófica em que este se funda, de Hobbes e Hegel até Spencer, Comte, Durkheim, Parsons e Luhmann. Do debate que ocorre no século XIX entre os pensadores que, à semelhança de Comte, Spencer e Durkheim, enfatizaram a autonomia da sociedade e consequente subordinação do indivíduo a esta realidade sui generis e os que, pelo contrário, na sequência de trabalhos desenvolvidos por Rickert e por Dilthey, entendiam que as ciências que se ocupavam das humanidades e da realidade sócio-histórica não poderiam usar um método semelhante das ciências exactas, surge, do especial contributo dos segundos, uma concepção de sociologia, particularmente baseada nas reflexões epistemológicas de Simmel e de Weber que enfatiza a análise da acção social e do seu carácter subjectivamente significativo. “A sociedade é prioritária em relação ao indivíduo que separado do todo social, o indivíduo não existe de todo? Ou devemos colocar o problema de um modo completamente diferente e dizer que o indivíduo existe por si só e que as organizações sociais, incluindo a própria sociedade, são meras abstracções – «funções» do comportamento dos indivíduos separados entre si? É o ser social do homem que determina a sua consciência ou a sua consciência que determina o seu ser social?”( Schutz, 1967: 4). Resumindo os debates em torno dos quais irá tomar uma posição próxima da de Weber e de Simmel Schutz, todavia defenderá uma clarificação e aprofundamento de conceitos que só encontram a sua plena satisfação com o recurso à filosofia, em particular á fenomenologia.

Por um lado, na sequência deste pensamento pioneiro, Schutz defendeu a distinção entre ciências naturais e ciências sociais com base no facto de que as segundas lidam com acontecimentos e relações pré-significativas para os actores evolvidos, argumentou que os processos compreensivos são centrais para que os actores sociais possam interpretar significativamente o mundo e finalmente e defendeu que o método da compreensão enquanto abordagem da subjectividade do actor era indispensável para as ciências sociais. Porém, se era evidente para Schutz que a acção social é eminentemente significativa, desde logo se lhe tornou também evidente que era necessário interrogar de onde provém o sentido que lhe é atribuído e em que é que o mesmo consistia. Por outro lado, desde logo se tornou igualmente claro para ele que era necessário clarificar quais os procedimentos que permitem à ciência reconstruir o sentido de uma forma controlada. Ou seja, exactamente por trabalharem com o método compreensivo, as Ciências Sociais teriam de desenvolver um método logicamente controlável de orientação com o mais elevado nível possível de clareza, que permitisse o acesso à acção individual e, simultaneamente, possibilitasse a formulação de generalizações. Assim, grande parte da participação de Alfred Schutz no debate sobre a Epistemologia das Ciências Sociais – não apenas Sociologia mas Economia, Direito e Psicologia entre outras áreas expressamente referidas – centra-se nas relações entre a teoria e a formação de conceitos neste domínio epistemológico e os constructos originários do mundo da vida quotidiano, tendo o seu cerne na tensão entre a objectividade científica e a subjectividade humana. Para Schutz, os problemas da metodologia das ciências não podem ser compreendidos sem uma abordagem intensa (sic) de problemas como acção, comunicação, intersubjectividade, sentido objectivo e sentido subjectivo , e em particular sem o estudo e análise das relações entre a interpretação do mundo da vida por parte dos que nele vivem e agem e a interpretação do mesmo mundo pelo cientista social (Schutz, 1944 in Helling, 1984: 150).

Para Schutz, a salvaguarda do ponto de vista subjectivo é a única garantia de que a realidade social não será substituída por um mundo construído pelo observador (Schutz, 1975 a: 8). Só que esta garantia abre um acréscimo de dúvidas e de problemas: haverá instrumentos do ponto de vista subjectivo que permitam criar constructos de segundo grau dotados de validade científica com base em constructos de senso comum que traduzem o significado subjectivo das acções dos agentes no mundo da vida? A resposta schutziana é positiva porém implica, desde logo, um compromisso com a necessidade de clarificar a origem do sentido, o papel da consciência na atribuição de sentido, o esclarecimento do próprio conceito de sentido e da motivação da acção. Tal domínio conduzirá Schutz a procurar muitas das respostas necessárias em Bergson, e, sobretudo em Husserl. Desde o seu primeiro livro que Schutz tornará bem claro que a teoria sociológica deve começar por estudar a interpretação da experiência pessoal e alheia; o conceito e a interpretação de significado; os signos e a linguagem e a formação do conceito de tipo ideal ( cfr. Schutz, 1967; xxxi).

Da tradição weberiana, Schutz transporta consigo a ideia de acção subjectivamente significativa. Da tradição husserliana, retém a intencionalidade e os processos de constituição de sentido os quais abrem o caminho para a relação entre a comunicação e a construção social da realidade, relação esta em que as reflexões sobre o tempo protagonizadas por Bergson, a teoria da simbolização de Voegelin e a noção de comunidade de Scheler desempenharão papéis relevantes. Da posterior aproximação à tradição americana pragmatista resulta uma atenção às relações entre pensamento e acção, a qual culmina na interacção entre sujeito e mundo como projecto, a qual já se desenvolve sob uma certa influência pragmatista embora nos limites de um certo estilo cognitivo mais europeizado.

Em segundo lugar, descobrimos na obra de Schutz uma fonte de possível inspiração para estudos culturais de fundamentação construtivista. Com Schutz, esclarecemo-nos sobre o papel que a Fenomenologia de Husserl pode desempenhar na descrição do mundo da vida e como a compreensão das múltiplas realidades sociais fundamentada na influência do Pragmatismo Americano (William James) se torna uma referência fértil para numerosos estudos e reflexões relacionadas com o pluralismo das sociedades complexas. Schutz aprofundou de modo particularmente hábil o conceito de âmbito de significado finito como as numerosas realidades que constituem o mundo da vida e que são olhadas como reais enquanto se dirige para elas a atenção da consciência: a embriaguez, /o sonho, a loucura, o extâse religioso ou a experiência estética. Cada uma destas realidades que Schutz, com algum cuidado, preferirá chamar âmbitos de significado em vez de províncias de realidade, tem um estilo cognitivo próprio e uma forma particular de relação da consciência com o mundo que permanecerá até que uma experiência de choque – o acordar, o fim do filme, o levantar da cortina – proporcione a transição de um domínio da experiência para outro.

Compreendemos, finalmente, como a sua atenção às estruturas subjectivas da consciência articulada com a ideia weberiana de acção subjectivamente significativa exige uma concepção de intersubjectividade que implica a participação activa dos sujeitos na construção da sociabilidade. Como resultado surgem estudos de Antropologia e Sociologia de inspiração fenomenológica fundamentados em grande parte na negociação entre os actores na comunicação quotidiana.

Outro domínio onde importa exaltar a influência de Schutz é Teoria da Comunicação. À partida, Alfred Schutz é talvez um dos teóricos que, de modo mais directo ou indirecto, influenciou os estudos sobre comunicação na constituição da sociabilidade, na formulação de entendimentos e nos sucessivos processos de aprendizagem graças ao qual construímos uma compreensão mútua em que se baseia a nossa percepção da realidade social. Com efeito, a comunicação em Schutz surge como o meio através do qual superamos na vida quotidiana a nossa experiência da transcendência de todos os outros (Algarra, 1993: 208). “Através do uso de signos, o processo comunicativo permite tornar-me consciente, ao menos até certo ponto dos pensamentos de outrem, permite-me ter acesso à sua durée interior (corrente de consciência) em simultâneo com a minha, apesar do facto já referido de que comunicação completamente bem sucedida ser impossível “(Schutz, 1989: 263). Este carácter incompleto da possibilidade da comunicação deixa um reduto de incomunicabilidade, que é também margem para o fundamento de uma estranheza recíproca. Com efeito, um dos aspectos mais interessantes desta obra, neste plano, reside no facto de a comunicação não poder de ser relacionada com a eminência da sua improbabilidade: a estranheza ocupa, assim, um plano neste domínio tão importante quanto o do entendimento.

Apesar de, em Schutz, a inter-subjectividade ser anterior à comunicação, ele ficou no limiar de se tornar, um co-responsável pela chamada linguistic turn. Com efeito, a intersubjectividade é logicamente prioritária mas a comunicação, como é possível ver de modo bem fundamentado nos seus ensaios, desempenha um papel estruturante nas manifestações concretas de sociabilidade. As suas reflexões aproximam-no de conceitos como os de «formas de vida» ou de «jogos de linguagem». A comunicação implica a constituição de universos de significado comuns onde é possível compreender e sermos compreendidos graças a um processo de geração recíproca de expectativas no decurso da qual construímos uma ideia partilhada de realidade.

De acordo com este ponto de vista, a Teoria da Comunicação de Alfred Schutz inclui uma concepção da natureza humana e da sua relação com o mundo da vida que privilegia a intersubjectividade. Neste plano incluem-se uma descrição de como a acção social é sempre dirigida a outrem e de como a linguagem desempenha um papel essencial neste processo.

A Fenomenologia Social permitiu, ainda, a abertura de uma linha de investigação no domínio dos media e da construção da realidade de um modo que já foi abordado e muito trabalhado por Gaye Tuchman e que prosseguiu nos anos seguintes com Adoni e Mane, e com alguns rumos da investigação italiana. Schutz oferece uma reflexão sólida que caracteriza a comunicação como um fenómeno mundano ao qual se acede pela sua análise como acção humana e que, para uma compreensão correcta, carece de ser articulado com o funcionamento do mundo da vida quotidiana. Trata-se de uma hipótese que necessita de um aprofundamento teórico cuidado e que aponta para uma abordagem fenomenológica na Teoria da Notícia. Como se trata de um caminho que possui algumas veredas inexploradas aqui convirá falar em termos de um projecto. Assim, ter-se-á em conta o modo como o jornalista se afirma como um profissional da atitude natural e o modo como “atitude natural” é reproduzida nas rotinas jornalísticas através de processos de tipificação. Repara-se também como essa atitude natural é objecto de um treino vigoroso a fim de fim de responder a uma exigência profissional incontornável que permite que o jornalismo possa reivindicar um certo conceito de proximidade e de pertença: a reprodução impessoal de uma linguagem que se pretende que seja tanto quanto possível idêntica à do cidadão médio Por outro lado, destaca-se como essa «atitude natural» apesar de se poder relacionar com as potencialidades democráticas do senso comum e do «espírito público» também corre o risco de generalizar um certo conformismo lógico que penetra na vida quotidiana. Nessa medida, permite abrir uma reflexão sobre o jornalista como observador do mundo social, sobre a objectividade do relato jornalístico, sobre o estatuto da sua relação com o mundo da vida social. Será que há margem para introduzir no jornalismo uma maneira de dizer que não se conforme com a proliferação de sobreditos e de tipificações coincidentes com o sistema de relevâncias vigente em cada comunidade concreta no mundo da vida? As considerações metodológicas que Schutz faz ao longo de toda a sua obra têm vindo a ser mobilizadas para diversas situações profissionais onde se verifiquem a existência de especialistas treinados para observar os comportamentos de outrem: na Sociologia, na Antropologia, na Enfermagem, na Psiquiatria e na Medicina há estudos que têm a sua fundamentação teórica em Schutz. Hoje, também começam a ganhar algum relevo os estudos sobre Jornalismo efectuados à luz dos trabalhos de Schutz: qual é o estatuto dos enunciados pretendidos como objectivos quando lidam com actos humanos dotados de significado subjectivo? Em particular, qual é o estatuto desses enunciados quando, simultaneamente, têm pretensões de objectividade, e ao mesmo tempo, são formulados de modo a manter uma certa aproximação à vida quotidiana?

Na Estética, como teórico apaixonado pela música e pela literatura deixou textos interessantíssimos que aliás estão a originar novas linhas de investigação seja nos Estudos Literários seja na Musicologia. Enquanto teórico da literatura, Schutz foi um hábil estudioso de Goethe e é autor de um texto famoso “Don Quixote and the problem of reality” (cfr. Schutz, 1976: 135-158) abordado pelo prisma das realidades múltiplas. Neste texto, o mundo da cavalaria sonhado pelo louco Quixote é analisado como uma província finita de significado, com o seu acervo de conhecimentos próprio, a sua própria forma de relacionamento com a realidade, os seus modos de controlo social e os seus próprios pontos de vista sobre o tempo e o espaço, contrastando com o mundo da vida quotidiana aonde Sancho Pança continua enraizado à luz do senso comum.

No campo da música formulou um conjunto de ensaios importantes como “Mozart and philosophers” ou “Making Music Together: a study in social relationship» (Schutz, 1976: 159-178; 179-200) os quais, conforme se verificou posteriormente, faziam parte de um estudo mais vasto relativo a uma aproximação teórica sobre música. Nesse sentido, parece indicar o manuscrito «Fragments towards a phenomenology of music” (Schutz, 1996), inserido no quarto volume dos Collected Papers. Schutz era ele próprio um pianista de boa formação e um musicólogo bastante conhecedor que integrou as investigações fenomenológicas na sua compreensão da música e da relação entre a música e formas de sociabilidade e de relacionamento com outrem preferencialmente susceptíveis de serem entendidas num plano não conceptual, Segundo Schutz, a música, diferindo da linguagem verbal pelo facto de não ter ou ter apenas subsidiariamente uma função representativa, conduz a uma reflexão importante sobre a estrutura da acção social na medida em que exemplifica a existência de domínios onde impera uma relação mútua de natureza não conceptual (Schutz, 1976: 159).

Finalmente, há a referir a existência de um investigação no plano da Teoria Política: esta pode passar pela afirmação de uma concepção de cidadania mas que implica que se dê uma muito especial atenção ao pluralismo identitário das sociedades complexas. Graças a Schutz, é possível afirmar um certo estilo de Fenomenologia que não enfatiza apenas a dimensão constituída do mundo da vida, mas antes aceita a diferenciação entre e dentro dos diversos mundos da vida; que mantém a distanciação em relação aos preconceitos adoptados na atitude natural vividos na quotidianeidade; que rejeita a resposta antropocêntrica e, na continuação de Husserl, reconhece a intersubjectividade como fundadora da sociabilidade, negando a prevalência de esta ou aquela forma de vida concreta como válida para todos os tempos e os lugares, antevendo uma comunidade humana fundada na universalidade do respeito por todas as diferenças.

Em Schutz delineia-se uma via na qual se torna claro o carácter construído dos diferentes modos de realização da ordem social. Não se nega a sua força objectiva, mas simultaneamente a todo o tempo se admite a sua relatividade. A Fenomenologia social parece permitir o diálogo e o entendimento entre as formas de vida sem necessitar de idealizar o mundo da vida como uma espécie de modelo de um espaço de entendimento utópico. Finalmente, esta atenção ao carácter construído dos diferentes modos de realização da ordem social torna a obra de Schutz profundamente aplicável às condições da modernidade tardia ou da pós-modernidade (não nos parece útil desenvolver uma discussão extensa sobre a aplicabilidade e pertinência destas categorias classificatórias) designadamente pelo facto de exprimir uma sensibilidade à fragmentação cultural que a caracteriza. Isto é particularmente visível nos seus trabalhos sobre a emigração, o encontro de culturas e o choque entre diversos mundos da vida ou entre diversas províncias de significado finito do mundo da vida: textos como o «Homecomer», «The Stranger» ou «On Multiple Realities» (cfr. Schutz, 1976: 91-105; 106-119; cfr. Schutz 1975 a: 207-259) tornaram-no num autor particularmente visitado nos últimos anos pelo facto de constituírem textos muito interessantes para a compreensão das dinâmicas pluralistas e de fragmentação cultural.. Nesse sentido, começa a vislumbrar-se uma deslocação, por parte dos estudos de raiz schuztiana, desde o tradicional enfoque nos problemas micro-sociais para uma reflexão mais ampla sobre a modernidade tardia, designadamente sobre os problemas relacionados com a fragmentação cultural, onde, graças a uma pesquisa cada vez mais minuciosa dos seus estudos, se desenha, de modo cada vez mais claro, uma reflexão de natureza ético-política (cfr. Embree, 1999: XIII). ). Nesse sentido, vale a pena sublinhar que existem estudos de Schutz (1976) que remetem claramente para uma análise do conceito de igualdade que tenha em conta as diferenças específicas de cada comunidade (designadamente o seu sistema de relevâncias e tipificações e a sua concepção relativamente natural do mundo) e que, inclusivamente, indicia uma cuidadosa problematização da problemática da origem do político, a propósito, nomeadamente, da resolução de antagonismos entre grupos sociais.

Em Schutz, o facto de as comunidades (ou sejam, os grupos sociais e culturais que são a expressão concreta do mundo da vida) serem sempre olhadas como estranhas pelos outros que lhe são próximos e implicarem, por sua vez, uma estranheza em relação a esses mesmos próximos, faz com que o mundo da vida perca a sua evidência. Na verdade, a evidência existe e Schutz não a nega. Porém é completamente limitada, só é evidente para os que a consideram enquanto tal e como tal. Cada realidade – e elas são múltiplas como o autor nunca se esquecerá de lembrar – é também um âmbito de significado finito e, consequentemente, os significados só são partilháveis no interior de cada uma. Nessa medida, convirá lembrar a importância de Schutz para a consideração de esferas no mundo, umas próximas, familiares, tomadas por garantidas e evidentes e outras incertas e não familiares, esferas estas, em suma, redutíveis num eixo “próximo/outro”. Ora, é desta estranheza de evidentes consequências ético-políticas que resulta uma outra consequência: a consciência da contingência de cada mundo da vida e da visão relativamente natural do mundo própria de cada comunidade em particular torna-se possível.

Nesse sentido, esta linha de desenvolvimento fundada em Alfred Schutz pode constituir uma alternativa válida a dois modos de idealização da sociabilidade:

– um primeiro que idealiza o mundo da vida em nome da tradição ( por exemplo, Gadamer no contexto de uma leitura particular da hermenêutica filosófica) ou em nome do progresso e do entendimento futuro (Habermas e Apel), tentando nele encontrar seja o chão que permite relativizar a racionalidade iluminista seja a instância onde se funda o princípio da resistência e da amplificação de acções comunicativas que culminarão num consenso ideal;

– um segundo o modo de idealização da sociabilidade que enfatiza ponto de vista do sistema, e que acentua a componente da autoreferencialidade e da negação da entropia. Refiro-me à obra de Parsons e de Luhmann, na senda de Durkheim, Malinowsky, Radcliff-Brown e outros grandes nomes da tradição funcionalista.

Existe na obra de Schutz um equilíbrio que permite pensar na tentativa de fundação de um individualismo situado (na verdade, embora Schutz se centre frequentemente na análise da consciência individual, tal parece muito mais uma tentativa de esclarecer os processos relacionados com a experiência subjectiva antes de exibir os aspectos sociais marcadamente inerentes dessa experiência), de um cepticismo que pode constituir uma forma especial de atitude crítica que consiste em não fazer pronunciamentos ontológicos sobre a realidade, que aceita a insuficiência da racionalidade e que apela à tolerância como a mais humana das virtudes. Porém, afirmar tal individualismo depois do século da hermenêutica não é o regresso a Hobbes e ao seu psicologismo individualista nem a Descartes e ao seu sujeito pensador. A afirmação do indivíduo faz-se no interior de comunidades, formas de vida e jogos de linguagem que, todavia, nunca são definitivos nem absolutos e manifesta-se, em especial, numa certa tendência para negar a possibilidade de entendimento total da consciência do sujeito. Nesse sentido, Schutz – quem sabe poderá haver na experiência do exílio uma explicação para este paradoxo – insiste nas raízes sociais mostrando, ao mesmo tempo, a sua fragilidade relativa o que permite ao mundo da vida uma «porosidade» que nunca aceita qualquer pronunciamento que autoriza a sua absolutização.