LATOUR, Bruno. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Tr. Sandra Moreira. São Paulo: EDUSC, 2002, p.15-17

A crença não é um estado mental, mas um efeito das relações entre os povos; sabe-se disso desde Montaigne. O visitante sabe, o visitado acredita ou, ao contrário, o visitante sabia, o visitado o faz compreender que ele acreditava saber. Apliquemos este princípio ao caso dos modernos. Por todos os lugares onde lançam âncora, estabelecem fetiches, isto é, os modernos veem, em todos os povos que encontram, adoradores de objetos que não são nada. Como têm que explicar a si próprios a bizarria desta adoração, onde nada de objetivo pode ser percebido, eles supõem, entre os selvagens, um estado mental que remeteria ao que é interno e não ao que é externo. À medida em que a frente de colonização avançava, o mundo se povoava de crentes. E moderno aquele que acredita que os outros acreditam. O agnóstico, ao contrário, não se pergunta se é preciso acreditar ou não, mas por que os modernos têm canta necessidade da crença para entrar em contato com os outros.

A acusação, pelos portugueses, cobertos de amuletos da Virgem e dos santos, começa na costa da Africa Ocidental, em algum lugar na Guiné: os negros adoravam fetiches. Intimados pelos portugueses a responder à primeira questão: “Vocês fabricaram com suas próprias mãos os ídolos de pedra, de argila e de madeira que vocês reverenciam?”, os guineenses responderam sem hesitar que sim. Intimados a responder à segunda questão: “Esses ídolos de pedra, de argila e de madeira são verdadeiras divindades?”, os negros responderam com a maior inocência que sim, claro, sem o que, eles não os teriam fabricado com suas próprias mãos! Os portugueses, escandalizados mas escrupulosos, não querendo condenar sem provas, oferecem uma última chance aos africanos: “Vocês não podem dizer que fabricaram seus fetiches, e que estes são, ao mesmo tempo, verdadeiras divindades, vocês têm que escolher, ou bem um ou bem outro; a menos que, diriam indignados, vocês não tenham miolos, e que sejam insensíveis ao princípio de contradição como ao pecado da idolatria”. Silêncio embotado dos negros que, na falta de discernimento da contradição, provam, frente ao seu embaraço, quantos degraus os separam da plena e completa humanidade… Pressionados pelas questões, obstinam-se a repetir que fabricaram seus ídolos e que, por consequência, os mesmos são verdadeiras divindades. Zombarias, escárnio, aversão dos portugueses frente a tanta má fé.

Para designar a aberração dos negros da Costa da Guiné e para dissimular o mal-entendido, os portugueses (muito católicos, exploradores, conquistadores, até mesmo mercadores de escravos), teriam utilizado o adjetivo feitiço, originário defeito, participio passado do verbo fazer, forma, figura, configuração, mas também artificial, fabricado, factício, e por fim, fascinado, encantado.1

Desde o princípio, a etimologia recusa-se, como os negros, a escolher entre o que toma forma através do trabalho e o artificio fabricado; essa recusa, ou hesitação, conduz à fascinação, induz aos sortilégios. Ainda que todos os dicionários etimológicos concordem sobre tal origem, o presidente de Brosses, inventor, em 1760, da palavra “fetichismo”, agrega aqui o fatum, destino, palavra que dá origem ao substantivo fada {fée], como ao adjetivo, na expressão objeto-en-cantado [objet-fée].2


  1. Lê-se no dicionário Aurélio de português as seguintes definições (observar que em português feitiço vem do francês, por intermédio do presidente de Brosses):

    – feitiço [de feito + iço]; 1. adj. artificial, factício; 2. postiço, falso; 3. malefício de feiticeiros; 4, ver bruxaria; 5. ver fetiche; 6. encanto, fascinação, fascínio. Provérbio, “virar o feitiço contra o feiticeiro”;

    – feitio [de feito + io]; forma, figura, configuração, feição;

    – fetiche; 1. objeto animado ou inanimado, feito pelo homem ou produ2Ído pela natureza, ao qual se atribui poder sobrenatural e se presta culto, ídolo, manipanso; [depois, são os mesmos significados do francês].

    Observar o aspecto admirável do italiano, que dá ao mesmo verbo fatturàre o sentido de: 1. falsificar, adulterar; 2. faturar; 3. enfeitiçar. 

  2. Brosses, Charles de. Du culte des dieux fétiches (1760), reedição Corpus des oeuvres de philosophie. Fayard, Paris: 1988. A etimologia de Charles de Brosses não é retomada em nenhum outro lugar. Trata-se de uma contaminação entre as palavras fadas e fetiches? 

Bruno Latour