Alguns autores sobre a noção de “precursor” em história da ciência

Portocarrero

Se existissem precursores, a história das ciências perderia todo sentido. A dimensão histórica da ciência seria apenas uma aparência, visto que um precursor seria um pesquisador que teria percorrido, no passado, um trecho de um caminho finalizado, recentemente, por um outro. Se, na Antiguidade, quando o mundo era considerado fechado, alguém tivesse podido ser, em cosmologia, o precursor de um pensador da época do universo infinito, um estudo como o de Alexandre Koyré (1957/2001) seria impossível. O precursor seria um pensador que o historiador poderia retirar de seu enquadramento cultural para inserir num outro enquadramento, o que corresponderia a considerar que conceitos, discursos e gestos especulativos ou experimentais podem ser deslocados num espaço intelectual onde a reversibilidade das relações deve-se ao esquecimento do aspecto histórico do objeto.

Ao afirmar que não há precursores, Canguilhem estabelece uma nova relação da história das ciências com a epistemologia, opondo-se à ideia de história como sua memória e seu laboratório, como ‘microscópio mental’, o que pressuporia que a relação da história das ciências com as ciências fosse do mesmo tipo da relação das ciências com seus objetos. Esta concepção de história baseia-se na tese de que existiria um método geral universal e eterno, pouco ativo em algumas épocas, mais ativo em outras. Canguilhem denuncia o positivismo desta ideia: em primeiro lugar, devido a seu racionalismo geral que contradiz o pressuposto de um racionalismo regional, segundo o qual existem diferentes regiões de cientificidade, com especificidades e método próprio; em segundo lugar, porque, ao ser conduzida pela imagem do microscópio à noção de laboratório, a história das ciências teria apenas a função de conferir duração à exposição dos resultados científicos alcançados. A história das ciências permitiria, assim, uma parada e um distanciamento do conhecimento científico, seria como um aparelho de detecção de objetos já constituídos.

Contrário ao positivismo, o epistemólogo afirma:

Ao modelo do laboratório, pode-se opor, para compreender a função e o sentido de uma história das ciências, o modelo da escola e do tribunal, de uma instituição e de um lugar onde se fazem julgamentos sobre o passado do saber, sobre o saber do passado. Mas é necessário aqui um juiz. A epistemologia é que é chamada a fornecer à história o princípio de um julgamento (…). (Canguilhem, 1970a: 2)

O julgamento do passado do saber reconhece que toda verdade é sempre provisória, é sempre uma ultrapassagem. Compete, pois, à epistemologia fornecer o princípio judicativo da produção de verdades, princípio fundado na verdade mais atual da ciência “última linguagem falada pela ciência, permitindo recuar no passado, até o momento em que esta linguagem deixe de ser inteligível ou passível de ser traduzida numa outra linguagem anteriormente falada” (Canguilhem, 1970a: 13), momento em que detectamos uma ruptura, o surgimento de uma nova questão. Como ocorreu com Lavoisier (1743-1794) que, ao compreender que estava fundando um novo saber, marca um intervalo entre sua química e a ciência anterior, cortando qualquer relação com a língua falada por seus mestres e negando qualquer histórico da opinião daqueles que o precederam. Evidentemente, isto não significa que os cientistas tenham necessidade, para o trabalho científico, da história das ciências, da epistemologia ou da genealogia. Eles precisam apenas de um mínimo de filosofia, sem a qual não poderiam falar de suas ciências com interlocutores não-cientistas.

Podemos, então, compreender a diferença que a epistemologia francesa estabelece, a partir de Gaston Bachelard, entre a história dos conhecimentos ultrapassados e a dos conhecimentos sancionados, ainda atuais porque ativos, cuja função e sentido judicativos têm como ponto de partida a relação com os valores científicos mais recentes, com a verdade mais atual da ciência.

A história das ciências não é o progresso das ciências invertido, quer dizer, a colocação em perspectiva de etapas ultrapassadas para a qual a verdade de hoje seria o ponto de fuga. Ela é um esforço para pesquisar e fazer compreender em que medida noções ou atitudes ou métodos ultrapassados foram, em sua época, uma ultrapassagem e, por conseguinte, em que o passado ultrapassado continua como passado de uma atividade científica à qual é necessário conservar o nome de científica. Compreender o que foi a instrução do momento é tão importante quanto expor as razões da destruição seguinte. (Canguilhem, 1970a: 14)

PORTOCARRERO, Vera. As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2009

CANGUILHEM, G. Études d’Histoire et de Philosophie des Sciences. Paris: Vrin, 1970a.

Japiassu

A rigor, se houvesse precursores, a história das ciências perderia todo o seu sentido. Porque a própria ciência só aparentemente teria dimensão histórica. Um precursor seria um pensador que teria percorrido antes um pedaço do caminho que outro iria terminar. Ora, antes de colocarmos juntos dois pesquisadores, numa sucessão lógica de começo e de acabamento, de antecipação e de realização, convém nos assegurarmos de que se trata do mesmo caminho. Por ter feito uma suposição heliocêntrica, Aristarco de Samos não é o precursor de Copérnico. Ora, Copérnico acusou todas as teorias astronômicas anteriores à sua de serem sistemas irracionais. Um precursor seria um pesquisador de vários tempos, desenraizado de seu enquadramento cultural e reinserido em outro. Em suma, enquanto não estabelecermos explicitamente, através de uma análise crítica dos textos, a existência, entre um pensador do passado e outro do presente, de uma identidade de questão, de intenção de pesquisa e de significação dos conceitos diretrizes, só arbitrariamente poderemos falar de precursor. Koyré tem razão quando diz: “A noção de precursor é muito perigosa para o historiador das ciências. E verdade, sem dúvida, que as ideias têm um desenvolvimento quase autônomo, isto é, nascidas num espírito, elas chegam à maturidade e dão fruto em outro: donde ser possível fazermos a história dos problemas e de suas soluções. Também é verdade que as gerações posteriores não estão interessadas nas que as precederam, senão na medida em que veem nelas seus ancestrais ou seus precursores. No entanto, é evidente — ou deveria sê-lo — que ninguém jamais se considerou precursor de outrem nem pôde fazê-lo. Por isso, considerá-lo como tal, é o melhor meio de se impedir de compreendê-lo” (La révolution astronomique, p. 79).

JAPIASSU, Hilton. A Revolução Científica Moderna.

KOYRÉ, A. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

Deleuze

Le thème du précurseur c’est, beaucoup de gens l’ont dit déjà, le thème du précurseur c’est l’un des thèmes les plus dangereux qui soient, et en fait on s’aperçoit chaque fois que c’est compliqué… Vous savez, il faut surtout pas tomber dans l’idée : « Ah ! l’évolutionnisme, il était déjà dans Empédocle, et cætera…». C’est des stupidités, enfin… Ce n’est pas du tout ça que je veux dire.

Mais, en revanche, si je pense qu’en effet, il n’y a jamais de précurseur, que c’est complètement idiot de chercher des gens qui auraient déjà soutenu une espèce d’évolutionnisme avant Darwin, et cætera…, en revanche, je crois fort que se passe un phénomène, dans l’histoire de la pensée, qui est très très curieux… Que quelqu’un, avec des moyens déterminés – dans le cas de Spinoza avec des concepts, découvre à son époque quelque chose, qui dans un autre domaine, ne sera découvert que bien après et avec de tout autres moyens. Si bien qu’il n’est pas du tout précurseur… Mais il y a des phénomènes de résonances, et la résonance, ça ne se fait pas seulement entre les divers domaines à une même époque, ça se fait entre un domaine, par exemple au 17e siècle, et un domaine du 20e siècle.

DELEUZE, Gilles. Sur Spinoza. Transcriptions de cours. Vincennes 1978-1981.

Fourez

Os desenvolvimentos contemporâneos da sociologia da ciência caminharam lado a lado com uma reflexão sobre a história desta. Até há pouco tempo, a maioria considerava que a história da ciência reproduzia a lenta progressão da racionalidade científica (Sarton, 1927-1948). Com bastante prudência, aliás, ela distinguia a história do saber científico dos elementos extrínsecos que podiam levar à compreensão dos elementos contingentes das descobertas científicas, mas nunca o núcleo duro da racionalidade científica.

Com frequência, a história da ciência desempenha um papel ideológico: narrar as grandes realizações dos cientistas, a fim de que a ciência seja apreciada por seu “justo” valor em nossa sociedade. Essa busca das raízes históricas da comunidade científica tem uma significação importante, na medida em que todo ser humano deseja experimentar a solidez e a profundidade de suas raízes. A história da ciência, vista desse modo, assemelha-se a essas histórias das nações destinadas a promover o espírito patriótico ou cívico. Isto não deixa de apresentar interesse, sem dúvida, mas, caso não se acrescente uma perspectiva crítica, semelhante enfoque arrisca-se a ser mistificador.

Existem várias maneiras de escrever a história da ciência. Assim, o livro de Ernst Mach, A mecânica (1925), se pretendia menos um hino para a grandeza da ciência do que um retorno à maneira pela qual os conceitos da física foram construídos. Essa pesquisa histórica pode, por exemplo, mostrar com que dogmatismo certos pontos da física podiam ser ensinados a partir do momento em que se aceitavam sem espírito crítico pontos de vista discutíveis. Mach mostrou, desse modo, como se havia “esquecido” todas as hipóteses que serviam de base à física newtoniana. Jogando com as palavras, poder-se-ia dizer que, ao mostrar o caráter relativo dos conceitos de espaço e de tempo (relativos no sentido epistemológico do termo), Mach preparou a teoria da relatividade (segundo o sentido da palavra em física).

A história da ciência pode estar, assim, a serviço da pesquisa científica, ao mostrar a relatividade dos conceitos utilizados, pondo em relevo a sua história e recordando quando e de que modo as trajetórias das construções conceituais na ciência chegaram a pontos de bifurcação. Ela pode, dessa forma, evidenciar as linhas de pesquisas que deixaram de ser exploradas e que poderiam, portanto, se revelar fecundas. Dessa maneira, pode-se educar a imaginação dos pesquisadores.

Nessa mesma linha de pensamento, a pesquisa no campo da história da ciência se dedicou ultimamente a estudar a história da ciência dos “vencidos” (Wallis, 1979). É desse modo que a história da ciência tem se dedicado às controvérsias científicas relativas a Galileu, Pasteur, à Escola de Edimburgo etc. Cada vez mais historiadores da ciência (assim como historiadores de outras especialidades) têm como projeto evidenciar a contingência dos desenvolvimentos históricos, querendo, desse modo, dar a perceber a impossibilidade de reduzir a história a uma lógica eterna. A pesquisa histórica tende a mostrar que a ciência é realmente um empreendimento humano, contingente, feito por humanos e para humanos.

Por fim, a história da ciência pode ser relacionada ainda a múltiplos aspectos: vínculo entre a ciência e a tecnologia, condicionamento da comunidade científica, interação entre a ciência e outras instituições sociais etc.

FOUREZ, Gérard. A Construção das Ciências. Tr. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: EDUSP, 1985

Latour

Todos concordam que a ciência evolui por meio do experimento; a questão é que Pasteur também foi modificado e evolui por meio do experimento, como a Academia e até o fermento, por que não? Todos eles vão embora num estado diferente daquele que apresentavam ao entrar. Como veremos no próximo capítulo, isso pode induzir-nos a investigar se existe mesmo uma história da ciência e não apenas de cientistas, e se existe mesmo uma história das, coisas e não apenas de ciência.

LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Tr. Gilson César Cardoso de Sousa. Bauru: EDUSC, 2001

Canguilhem

A história das ciências recebeu até o momento, na França, mais encorajamentos do que contribuições. Seu lugar e seu papel na cultura geral não são negados, mas bastante mal definidos. Seu sentido é, inclusive, oscilante. Será preciso escrever a história das ciências como um capítulo especial da história geral da civilização? Ou devemos buscar nas concepções científicas em um dado momento uma expressão do espírito geral de uma época, uma Weltanschauung. O problema de atribuição e de competência está em suspenso. Decorre essa história do historiador como exegeta, filósofo e erudito (isso, sobretudo, para o período antigo) ou do sábio especialista, apto a dominar, como sábio, o problema cuja história ele retraça?

É preciso nós mesmos sermos capazes de fazer progredir uma questão científica para termos sucesso na regressão histórica até as primeiras e canhestras tentativas daqueles que a formularam? Ou basta, para realizar a obra de historiador em ciências, realçar o caráter histórico, e mesmo ultrapassado, de tal obra, tal concepção, revelar o caráter caduco das noções, a despeito da permanência dos termos? Por fim e na sequência do que precede, qual é o valor, para a ciência, da história da ciência? A história da ciência não seria tão somente o museu de erros da razão humana, se o verdadeiro fim da pesquisa científica é subtraído do futuro? Nesse caso, para o sábio, a história das ciências não valeria a pena, pois, nesse ponto de vista, a história das ciências é história, mas não das ciências. Nessa via, podemos chegar a dizer que a história das ciências é muito mais uma curiosidade filosófica do que um estimulante do espírito científico.[[Cf. as intervenções de Parodi e Robin na discussão de 14 de abril de 1934 sobre a significação da história do pensamento científico (Bulletin de la Société française de philosophie, maio-junho 1934).]]

Uma tal atitude supõe uma concepção dogmática da ciência e, se assim ousamos dizer, uma concepção dos “progressos do espírito” que é a da Aufklärung, de Condorcet e de Comte. O que paira sobre essa concepção é a miragem de um “estado definitivo” do saber. Em virtude disso, o preconceito científico é o julgamento de idades passadas. É um erro, porque ele é de ontem. A anterioridade cronológica é uma inferioridade lógica.[[Essa tese positivista é exposta sem reservas por Claude Bernard. Ver as páginas em que ele trata da história da ciência e da crítica científica em Introduction à la Médecine expérimentale (II parte, cap. II, final), e, notadamente: “A ciência do presente está portanto necessariamente acima daquela do passado, e não há nenhuma espécie de razão de ir buscar um acréscimo da ciência moderna nos conhecimentos das antigas. Suas teorias, necessariamente falsas, pois não contêm os fatos descobertos posteriormente, não poderiam ter nenhum proveito real para as ciências atuais”.]] O progresso não é concebido como um relatório de valores, cujo deslocamento de valores em valores constituiria o valor. Ele é identificado com a posse de um último valor que transcende os outros, permitindo depreciá-los. Émile Bréhier observou, com muita propriedade, que o que há de histórico no Curso de Filosofia Positiva é menos o inventário das noções científicas do que o das noções pré-científicas.[[Signification de l’histoire de la pensée scientifique. In: Bulletin de la société française de philosophie, maio-junho de 1934.]] De acordo com essa concepção, e a despeito da equação do positivo e do relativo, a noção positivista da história das ciências encobre um dogmatismo e um absolutismo latentes. Haveria, ali, uma história dos mitos, mas não uma história das ciências.

CANGUILHEM, Georges. O Conhecimento da Vida. Tr. Vera Lucia Avellar Ribeiro. Revisão Técnica Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense, 2011