Essas considerações iniciais sobre a duração pareciam-nos decisivas. Gradualmente, fizeram-nos erigir a intuição em método filosófico. “Intuição” é, aliás, uma palavra frente à qual hesitamos longamente. De todos os termos que designam um modo de conhecimento, ainda é o mais apropriado; e, no entanto, presta-se a confusão. Pelo fato de que um Schelling, um Schopenhauer e outros já recorreram à intuição, pelo fato de que opuseram, em maior ou menor grau, a intuição à inteligência, poder-se-ia acreditar que aplicávamos o mesmo método. Como se a intuição deles não fosse uma procura imediata do eterno! Como se para nós não se tratasse, pelo contrário, de reencontrar primeiro a duração verdadeira. Numerosos são os filósofos que sentiram a incapacidade do pensamento conceitual em atingir o fundo do espírito. Numerosos, por conseguinte, aqueles que falaram de [28] uma faculdade supra-intelectual de intuição. Mas, como acreditaram que a inteligência operava no tempo, concluíram a partir daí que ultrapassar a inteligência consistia em sair do tempo. Não viram que o tempo intelectualizado é espaço, que a inteligência trabalha sobre o fantasma da duração, e não sobre a própria duração, que a eliminação do tempo é o ato habitual, normal, banal, de nosso entendimento, que a relatividade de nosso conhecimento do espírito provém precisamente disso e que, desde então, para passar da intelecção à visão, do relativo ao absoluto, não há que sair do tempo (já saímos dele); cabe, pelo contrário, reinserir-se na duração e recuperar a realidade na mobilidade que é a sua essência. Uma intuição que pretende se transportar de um pulo para o eterno atém-se ao intelectual. Simplesmente substitui os conceitos que a inteligência fornece por um conceito único que os resume todos e que, por conseguinte, é sempre o mesmo, seja lá qual for o nome que lhe derem: a Substância, o Eu, a Ideia, a Vontade. A filosofia, assim entendida, necessariamente panteística, não terá dificuldade em explicar dedutivamente todas as coisas, uma vez que se terá brindado antecipadamente, num princípio que é o conceito dos conceitos, com todo o real e todo o possível. Mas essa explicação será vaga e hipotética, essa unidade será artificial e essa filosofia aplicar-se-ia com igual propriedade a um mundo inteiramente diferente do nosso. Quão mais instrutiva seria uma metafísica realmente intuitiva, que seguisse as ondulações do real! Já não abarcaria mais de um só golpe a totalidade das coisas; mas de cada uma daria uma explicação que a ela se adaptaria exatamente, exclusivamente. Não começaria por definir ou descrever a unidade sistemática do mundo: quem sabe se o mundo é efetivamente uno? Apenas a experiência [29] poderá dizê-lo e a unidade, caso exista, aparecerá ao termo da procura como um resultado; impossível pô-la de saída como um princípio. Será, aliás, uma unidade rica e plena, a unidade de uma continuidade, a unidade de nossa realidade e não essa unidade abstrata e vazia, provinda de uma generalização suprema, que seria com a mesma propriedade a unidade de qualquer mundo possível.
É verdade que a filosofia exigirá então um esforço novo para cada novo problema. Nenhuma solução será deduzida geometricamente de outra. Nenhuma verdade importante será obtida pelo prolongamento de uma verdade já adquirida. Será preciso renunciar a fazer com que a ciência universal caiba virtualmente num princípio.
A intuição de que falamos, então, versa antes de tudo sobre a duração interior. Apreende uma sucessão que não ó justaposição, um crescimento por dentro, o prolongamento ininterrupto do passado num presente que avança sobre o porvir. É a visão direta do espírito pelo espírito. Nada mais de interposto; nada de refração através do prisma do qual uma das faces é espaço e a outra e linguagem. Ao invés de estados contíguos a estados, que se tornarão palavras justapostas a palavras, eis a continuidade indivisível e, por isso mesmo, substancial do fluxo da vida interior. Intuição, portanto, significa primeiro consciência, mas consciência imediata, visão que mal se distingue do objeto visto, conhecimento que é contato e mesmo coincidência. — É, em segundo lugar, consciência alargada, premendo contra os bordos de um inconsciente que cede e que resiste, que se rende e que se retoma: através de alternâncias rápidas de obscuridade e de luz, faz-nos constatar que o inconsciente está aí; contra a estrita lógica, afirma que por mais que o psicológico seja algo consciente, há não obstante um inconsciente psicológico. [30] — Não vai ela mais além? Seria ela apenas a intuição de nós mesmos? Entre nossa consciência e as outras consciências a separação é menos marcada do que entre nosso corpo e os outros corpos, pois é o espaço que faz as divisões nítidas. A simpatia e a antipatia irrefletidas, que são tão frequentemente divinatórias, atestam uma interpenetração possível das consciências humanas. Haveria então fenômenos de endosmose psicológica. A intuição introduzir-nos-ia na consciência em geral. — Mas simpatizamos nós apenas com consciências? Se todo ser vivo nasce, desenvolve-se e morre, se a vida é uma evolução e se a duração é aqui uma realidade, não haveria também uma intuição do vital e, por conseguinte, uma metafísica da vida, que prolongaria a ciência do vivo? Decerto, a ciência há cie nos dar de forma cada vez melhor a físico-química da matéria organizada; mas a causa profunda da organização, com relação à qual vemos perfeitamente que não entra nem no quadro do puro mecanismo nem no da finalidade propriamente dita, que não é nem unidade pura nem multiplicidade distinta, que nosso entendimento, enfim, sempre caracterizará por simples negações, será que não a atingiremos ao recuperar pela consciência o elã da vida que está em nós? — Podemos ir mais longe ainda. Para além da organização, a matéria inorganizada aparece-nos sem dúvida como decomponível em sistemas sobre os quais o tempo desliza sem penetrar, sistemas que são da alçada da ciência e aos quais o entendimento se aplica. Mas o universo material, em seu conjunto, deixa na espera nossa consciência; ele próprio espera. Ou ele dura, ou é solidário de nossa duração. Quer se vincule ao espírito por suas origens, quer por sua função, em ambos os casos ele é da alçada da intuição por tudo aquilo que contém de mudança e de movimento reais. [31] Acreditamos precisamente que a ideia de diferencial, ou antes, de fluxão, foi sugerida à ciência por uma visão desse gênero. Metafísica por suas origens, tornou-se científica à medida que se fazia rigorosa, isto é, exprimível em termos estáticos. Em suma, a mudança pura, a duração real, é coisa espiritual ou impregnada de espiritualidade. A intuição é aquilo que atinge o espírito, a duração, a mudança pura. Seu domínio próprio sendo o espírito, quer apreender nas coisas, mesmo materiais, sua participação na espiritualidade — diríamos na divindade, se não soubéssemos tudo o que ainda se mistura de humano à nossa consciência, mesmo depurada e espiritualizada. Essa mistura de humanidade é justamente o que faz com que o esforço de intuição possa se realizar em alturas diferentes, em pontos diferentes, e produzir em diversas filosofias resultados que não coincidem entre si, ainda que não sejam de modo algum inconciliáveis.
Que não nos peçam, então, uma definição simples e geométrica da intuição. Será por demais fácil mostrar que tomamos a palavra em acepções que não se deduzem matematicamente umas das outras. Um eminente filósofo danês assinalou quatro delas. Nós, de nossa parte, encontraríamos um número maior1. Acerca daquilo que não é abstrato e convencional, mas real e concreto, com mais forte razão acerca daquilo que não é reconstituível com componentes conhecidas, acerca da coisa que não foi recortada no todo da realidade pelo entendimento nem pelo senso comum nem pela linguagem, não se pode dar uma ideia a não ser tomando dela vistas múltiplas, complementares e não equivalentes. Deus nos livre e guarde de comparar o pequeno com o grande, nosso esforço com o dos mestres! Mas a variedade das funções e dos aspectos da intuição, tal como a descrevemos, não 6 nada perto da multiplicidade de significações que as palavras “essência” e “existência” assumem em Espinosa ou os termos “forma”, “potência”, “ato”, … etc., em Aristóteles. Percorram a lista dos sentidos da palavra εἶδος no Index Aristotelicus: verão o quanto diferem. Se considerarmos dois que estejam suficientemente afastados um do outro, parecerão quase se excluir. Não se excluem, porque a cadeia dos sentidos intermediários os liga entre si. Fazendo o esforço necessário para abarcar o conjunto, percebemos que estamos no real e não diante de uma essência matemática que poderia caber, ela sim, numa fórmula simples.
Há no entanto um sentido fundamental: pensar intuitivamente é pensar em duração. A inteligência parte ordinariamente do imóvel e reconstrói como pode o movimento com imobilidades justapostas. A intuição parte do movimento, põe-no, ou antes, percebe-o como a própria realidade e não vê na imobilidade mais que um momento abstrato, instantâneo que nosso espírito tomou de uma mobilidade. A inteligência brinda-se ordinariamente com coisas, entendendo com isso algo estável, e faz da mudança um acidente que lhe viria por acréscimo. Para a intuição, o essencial é a mudança: quanto à coisa, tal como a inteligência a entende, ela é um corte praticado no meio do devir e erigido por nosso espírito em substituto do conjunto. O pensamento representa-se ordinariamente o novo como um novo arranjo de elementos preexistentes; para ele, nada se perde, nada se cria. A intuição, vinculada a uma duração que é crescimento, nela percebe uma continuidade ininterrupta de imprevisível novidade; ela vê, ela sabe que o espírito retira de si mesmo [33] mais do que possui, que a espiritualidade consiste justamente nisso e que a realidade, impregnada de espírito, e criação. O trabalho habitual do pensamento é fácil e prolonga-se tanto quanto quisermos. A intuição é árdua e não poderia durar. Intelecção ou intuição, o pensamento sem dúvida emprega sempre a linguagem; e a intuição, como todo pensamento, acaba por se alojar em conceitos: duração, multiplicidade qualitativa ou heterogênea, inconsciente — diferencial, mesmo, se tomarmos a noção tal como era no começo. Mas o conceito de origem intelectual é de imediato claro, pelo menos para um espírito que possa despender o esforço necessário, ao passo que a ideia provinda de uma intuição começa de ordinário por ser obscura, seja lá qual for nossa força de pensamento. É que há duas espécies de clareza.
Sem no entanto incluir nesse número, tais e quais, as quatro acepções que ele acreditou perceber. Aludimos aqui a Harald Höffding. ↩