Bergson (Evolução Criadora) – Intuicionismo e Verdade

A mudança pura, a duração real, é coisa espiritual ou impregnada de espiritualidade. O que alcança o espírito, a duração, a mudança pura — eis o que é a intuição. Bergson

Se passássemos em revista as faculdades intelectuais, veríamos que a inteligência apenas se sente à vontade, apenas está como em casa sua, quando opera sobre a matéria bruta, em particular sobre os sólidos. Qual é a propriedade mais geral da matéria bruta? É extensa, apresenta-nos objetos exteriores a outros objetos e, nestes, partes exteriores a partes. Decerto nos é útil, com vista a manipulações ulteriores, considerar cada objeto como divisível em partes, decompostas, sendo cada parte divisível ainda de acordo com a nossa fantasia, e assim sucessivamente até o infinito. Mas, antes de mais, é imperioso, para a manipulação presente, tomar o objeto real com que lidamos ou os elementos reais em que o resolvemos por provisoriamente definitivos e tratá-los como unidades. […] A inteligência apenas representa claramente o descontínuo.

Por outro lado, os objetos sobre que se exerce a nossa ação são, sem dúvida nenhuma, objetos móveis. Mas o que nos importa é saber para onde vai o móvel,

onde está num momento qualquer do seu trajeto. Por outras palavras, nós atemo-nos antes de mais às suas posições atuais ou futuras, e não ao progresso pelo qual passa de uma posição a outra, progresso que é o movimento mesmo. […] Da mobilidade mesma afasta-se a nossa inteligência, visto não ter interesse algum em ocupar-se dela. Se o destino da inteligência fosse a teoria pura, instalar-se-ia no movimento, porque o movimento é indubitavelmente a realidade mesma, e a imobilidade é apenas sempre aparente ou relativa. Mas o destino da inteligência é muito outro. A menos que se violente a si mesma, o seu rumo é inverso: é da imobilidade que parte sempre, como se fosse a realidade última ou o elemento; quando pretende representar-se o movimento, o reconstrói com imobilidades que justapõe. […] A inteligência, em estado natural, visa um fim praticamente útil. Quando substitui o movimento por imobilidades justapostas, não pretende reconstituir o movimento tal como é; substituí-o apenas por um equivalente prático. Os filósofos é que se enganam quando transferem para o domínio da especulação um método de pensar feito para a ação. Limitemo-nos a dizer que o estável e o imutável são aquilo a que a inteligência se atém em virtude da sua disposição natural. A nossa inteligência apenas representa claramente a imobilidade1.

Henri Bergson, L’Évolution Créatrice, pp. 167-169.


  1. Em outro passo, adiante, diz o autor: «A inteligência é caraterizada por uma incompreensão natural da vida.»