Luijpen – Materialismo

Excertos de W. Luijpen, “Introdução à fenomenologia existencial”

Todos os sistemas materialistas concordam em considerar o homem como o resultado de forças e processos cósmicos, do mesmo modo que as coisas. Um materialista há de dizer, portanto, que o ser do homem será chamado ser-no-mundo no sentido de que, como todas as coisas, é algo no meio das outras coisas mundanas, um fragmento da “natureza”, um momento na infinita evolução do cosmos.1

Essa ideia não é tão tola que possa ser deixada de lado como se não significasse nada. Exprime uma noção valiosa, dando conta de uma realidade que nunca se deveria negligenciar e levando a sério o fato irrefutável de que o homem só é o que é “devido à materialidade”.88 Desde que não queira menosprezar o significado da matéria, todo filósofo deve ter sentido a tentação de convir com o materialismo. Porque medeia uma distância muito pequena entre a ideia de que o homem é o que é devido à matéria,2 e a convicção de que o homem não passa de um fragmento da matéria ou uma fase transitória da infinita evolução do cosmos.3 De fato, não existe conhecimento espiritual sem objetos sensivelmente perceptíveis, sem cérebro, sem processos fisiológicos, sem imagens sensoriais ou sem palavras. Não há amor espiritual sem amor sensível, consciência pessoal sem infra-estruturas biológicas, ato artístico sem expressão na matéria. Assim é possível falar, p. ex., como biólogo, sobre o conhecimento, o amor ou a consciência, e o que o biólogo diz sobre isso tem relação com a realidade.

O exemplo mostra claramente como certo modo de pensar pode ser materialista, sem que o pensador afirme jamais de maneira explícita que o homem é uma coisa. O materialismo será frequentemente camuflado. Apresenta-se o mais das vezes como cientismo, como supervalorização das “ciências”, máxime das naturais, que se ocupam ex professo com as coisas, empregando categorias e modelos só a elas relativos. O exercício das ciências torna-se cientismo quando se afirma que não há outras realidades senão as descobertas pelas ciências naturais. Justamente porque o homem só é o que é com base na materialidade é que as ciências podem também dizer algo sobre o homem. Assim, p. ex., será possível, em princípio, achar a diferença fisiológica entre um santo e um malfeitor, e criar, no último, por meio de uma operação, as condições materiais para a virtude. Em princípio, não há inconveniente em afirmar-se que existe uma diferença material entre uma consciência cristã e uma maometana. Muitos alcoólatras e prostitutas não são, em primeiro lugar — ou mesmo nunca o são — “transgressores da lei de Deus”, mas gente com defeitos corporais, incompleta, que não deveria ser castigada e sim operada.

Ao compreender tal coisa, verifica-se também quão grande deve ser a tentação de afirmar que as ciências podem exprimir de modo total qualquer realidade. Desde que o homem só é tudo o que ele é por causa da materialidade, nada há no homem sobre que as ciências não possam falar. Por que, pois, não dar o passo fatal, asseverando que, uma vez que o cientista se pronunciou, não há mais nada a dizer ? O filósofo precisa conhecer essa sedução a fim de não minimizar a força e o significado do materialismo. O passo fatal, porém, traz consigo a degenerescência das ciências, transformadas em cientismo, teoria materialista: fora das coisas materiais, de que tratam as ciências da natureza, não há nada digno de ser mencionado.


  1. “Há… duas concepções clássicas. Uma consiste em tratar o homem como o resultado das influências físicas, fisiológicas e sociológicas que o determinariam de fora e fariam dele uma coisa entre as coisas”. Merleau-Ponty, M., Sens et Non-sens, Paris, 1948, p. 142. 

  2. “Nossa experiência científica ainda não nos fez conhecer nenhuma força desprovida de base material e nenhum ‘mundo espiritual’ fora e acima da natureza”. E. Haeckel, Die Welträtsel, Leipzig 1909-1910, p. 259. (Trad. port. de Jayme Filinto: Os Enigmas do Universo, Porto, Chardron, 1908). 

  3. “Também nós homens somos apenas estados passageiros da evolução da Substância eterna, fenômenos individuais da matéria e energia, cuja nulidade compreendemos ao ver o espaço sem limites e o tempo eterno”. E. Haeckel, ibid.