Anne Fagot-Largeault — Paul Feyerabend

Daniel Andler, Anne Fagot-Largeault e Bertrand Saint-Sernin, Filosofia da Ciência

O primeiro aspecto — a liberdade positiva — é aquele que Paul Feyerabend enuncia “anything goes” (“vale tudo” ou “qualquer coisa passa”: em Contra o método, 1975), fórmula que gerou protestos e que ele manteve (1978, I, 4) dizendo que a história da ciência nos dá uma série de exemplos de pesquisas interessantes que violam regras estabelecidas (“accepted standards”) e que, do ponto de vista das normas em vigor, são “qualquer coisa”. Nada permite dizer previamente que uma via de pesquisa ou uma hipótese seja sem interesse, e os cientistas mais “perceptivos” são conscientes de que na progressão do trabalho científico tomam-se constantemente liberdades com as “boas” regras.

O segundo aspecto — a liberdade-independência — é ilustrado por Feyerabend quando ele diz que tem tão forte o espírito de contradição ou de contestação que, mesmo tendo argumentado pessoalmente em favor de uma tese, basta que a reencontre sob a pena de outro (por exemplo, de Kuhn) para que ela lhe pareça inaceitável e que ele se aplique a demoli-la. A propósito de uma conferência na Itália, ele observa: “como de hábito, tentei desconstruir todos os grandes conceitos que apareciam”, tanto nas intervenções dos oradores quanto nos debates (1994, cap. 15).

“Radicalismo” não é sinônimo de irracionalismo, “anarquismo” não significa irracionalismo — ao contrário. Feyerabend publicou um livro chamado Adeus a razão e, no entanto, escreve:

“Jamais ‘denegri a razão’, o que quer que seja a coisa que assim nomeamos, mas apenas algumas de suas versões petrificadas e tirânicas. Assim como não pretendia que meus críticos pusessem um ponto final no debate. Era um começo, um começo muito difícil, mas de quê, exatamente? O início de uma melhor compreensão das ciências, de uma melhor organização social, de melhores relações entre os indivíduos, de um melhor teatro, de melhores filmes, e assim por diante.” (Feyerabend, 1995, cap. 11)

A obra Contra o método (1975), que tem por subtítulo Esboço de uma teoria anarquista do conhecimento, deveria ser um livro sobre o racionalismo em que Imre Lakatos e Paul Feyerabend dividiam os papéis: Paul atacava a posição racionalista, Imre refutava Paul e reformulava o racionalismo.

Lakatos morreu prematuramente (1974), Paul ficou sozinho para escrever o livro como uma carta endereçada a Imre: “Todas as maldades que ela contém foram escritas antecipando respostas ainda mais maldosas de meu correspondente” (dedicatória). O ataque contra o racionalismo significa que a organização racional dos conhecimentos (ou dos argumentos) não é a questão principal do pesquisador (mas a da natureza?) e que o pesquisador pode (e talvez deva) fazer com que a razão e a emoção trabalhem juntas (1975, p. 227) — a via da emoção nos popperianos foi explorada por Michael Polanyi. Feyerabend permanece principalmente argumentador.

Quando Popper tomou consciência da importância da biologia e adotou uma nova posição objetivista (“realismo evolucionista”: 1972 — digamos que se trata do Popper), encarregou a evolução natural de decidir que teoria é viável, isto é, adaptada aos fatos. O problema central da epistemologia evolucionista de Popper não é o da validação das conjecturas, mas o dos avanços do conhecimento — ele sempre se interessou menos pela “lógica da prova” do que pela “lógica da pesquisa”. A evolução científica, como a evolução propriamente dita (a biológica), se faz por tentativas e erros. De eliminar o erro, de refutar nossas hipótese, a natureza se encarrega: nossas hipóteses falsas fracassam. A responsabilidade da comunidade científica) está na tentativa. Trata-se de fazer emergirem conjecturas, na desordem, ao acaso, assumindo o caráter aventureiro do empreendimento científico.

Lakatos e Feyerabend permanecem mais próximos do criticismo: o pesquisador é um agitador. Em sua autobiografia (cap. 12), Feyerabend conta como compôs seu livro Contra o método. “Não é um livro, é uma colagem” que reúne trabalhos feitos ao longo de 15 anos.

“Eu os dispunha em uma ordem apropriada, acrescentei transições, substituí passagens moderadas por passagens mais escandalosas e chamei o resultado de “anarquismo”. Eu adorava chocar as pessoas […]. Hoje estou convencido de que esse anarquismo é apenas retórica”. (1994, cap. 12)

Feyerabend diz ter querido desinchar “os tumores intelectuais que se desenvolvem nos filósofos”, aqueles que utilizam um vocabulário abstruso, aqueles que lançam lógica para “clarificar” (na verdade, escamotear) o problema, aqueles que idealizam a ciência e que dão vontade de demolir a imagem para mostrar que também no universo científico há coisas absurdas, até mesmo inumanas. A ciência não é um objeto sagrado; não há objeto sagrado.

“A própria ciência encerrava partes conflituosas, estratégias e exageros metafísicos. A própria ciência é uma colagem, não um sistema. Além disso, a experiência histórica e os princípios democráticos sugerem ambos que ela deveria ser mantida sob o controle público.” (1994, cap. 12, tradução francesa, p. 182)

O livro é publicado e faz escândalo. Feyerabend descreve sua estupefação diante da explosão dos críticos: não porque deteste a discussão, ele a busca — diferentemente de Popper, teórico do falibilismo com tendência a crer-se infalível, Feyerabend buscava a discussão: “Contra o método não era nada além de um livro, não era a Santa Escritura!” —, porque tem a impressão de não ter sido compreendido. Ele é tratado como um herético. Os filósofos censuram-no dizendo que, para um anarquista, argumentar não tem sentido, uma vez que ele crê que todos os argumentos se equivalem; os cientistas o qualificam como “o pior inimigo da ciência” (Nature, 1987); os “intelectuais” o consideram com prudência e o abandonam por seus maus modos; as feministas o tratam de falocrata — seu “anything goes” significaria que uma teoria científica é apreciada por ele menos por sua verdade, mas como uma mulher-objeto, pelo prazer que lhe dá. Resultado: um ano de depressão, esforços para trabalhar mais e explicar-se melhor, pontos que ele mantém, outros que modifica.

O que ele mantém: a relativização da ciência:

“Acho que os cientistas sempre se comportam de maneira relaxada e oportunista quando fazem pesquisa, embora, com frequência, falem diferentemente quando pontificam a seu respeito. Hoje, dizer isso tornou-se uma trivialidade para os historiadores da ciência.” (1994, cap. 12)

E ainda:

“A ciência, diz-se frequentemente, é um processo de auto-correção que não pode ser atrapalhado por interferências externas. Mas a democracia é também um processo de auto-correção, a ciência faz parte dela e pode, desde então, ser corrigida pelas correções de uma entidade maior.” (ibid., p.186)

O que ele corrige: seu relativismo. Ele concordou com Kuhn. Pensou (e escreveu) que as ciências se compreendem no contexto de uma cultura e que as culturas são “entidades mais ou menos fechadas com suas próprias normas e procedimentos”, o que ia ao encontro da concepção de certos antropólogos que insistem na não-interpenetrabilidade das culturas — e dizem que não se pode avaliá-las umas em relação às outras. Mas no decorrer de sua vida, ele viu a que ponto as culturas mudam e se interpenetram, o que resulta em uma avaliação recíproca:

“Ao considerar a que ponto as culturas aprenderam umas com as outras e com que engenhosidade transformaram o material assim reunido, chego à conclusão de que cada cultura é potencialmente todas as culturas e de que traços culturais especiais são manifestações variáveis de uma natureza humana única.” (1994, cap. 12)

Daí se segue que “as particularidades culturais nada têm de sacrossanto” e que devemos nos abrir para as outras culturas, sendo essa abertura um progresso rumo à universalidade. “Em todo caso, o objetivismo e o relativismo não são apenas insustentáveis enquanto filosofias, são maus guias para uma colaboração cultural fecunda (ibid., p. 193).

Tudo é, portanto, contestável, mas nem tudo se equivale. A rejeição do relativismo é a rejeição de uma tentação do próprio Feyerabend. A rejeição do objetivismo é uma rejeição de Popper: não é a natureza que controla o conhecimento, é a cultura. A responsabilidade dos pesquisadores permanece uma responsabilidade sobretudo crítica (autocrítica), e a anarquia crítica é regulada pelo contexto cultural. Mas esse conceito cultural é uma outra natureza. O progresso geral do conhecimento é controlado por um processo que parece cultural á primeira vista — ciência na democracia, intercâmbio democrático das culturas —, mas trata-se de uma evolução natural (drift) das culturas rumo a mais diversidade e unidade ao mesmo tempo — “individuação da humanidade” na qual se revela uma “natureza humana”.

O que quis ressaltar aqui é que, na escola popperiana, a comunidade científica, assim como a comunidade humana, não tem uma obrigação de coerência, mas uma obrigação de liberdade, isto é, uma obrigação de utilizar seu poder de desordem. Critiquem, lancem ideias, não tenham medo de se enganar. A verdade toma conta de si própria. Vocês não são os árbitros supremos. Vocês estão submetidos à prova da realidade. O real resiste e os julga.

Não se pode falar de recurso ao “transcendental”, a não ser que se note a dissociação entre o plano da natureza e o da liberdade. Mas é uma liberdade bastante naturalizada, ao menos em Popper (acaso). Em compensação, pode-se falar de um realismo filosófico, guardião da aceitabilidade dos tateamentos adaptativos de nossa espécie a seu mundo e suporte da confiança indispensável à liberdade de conjecturar.

FEYERABEND, P. Against Method. Third ed. London: Verso, 1993.
FEYERABEND, P. Farewell to Reason. London: Verso, 1994.