Feyerabend – O conto de fadas cientificista

Até mesmo ousados pensadores revolucionários curvam-se perante o julgamento da ciência. Kropotkin quer destruir todas as instituições existentes, mas não toca na ciência. Ibsen vai muito longe para desmascarar a condição da humanidade contemporânea — mas conserva a ciência como medida de verdade. Evans-Pritchard, Lévi-Strauss e outros reconheceram que “o pensamento ocidental”, longe de ser um ápice solitário do desenvolvimento humano, era perturbado por problemas que não encontramos em outras ideologias — mas excluem a ciência de sua relativização de toda forma de pensamento. Mesmo para eles, (a ciência é uma estrutura neutra, contendo conhecimentos positivos independentes da cultura, da ideologia ou dos preconceitos.

A razão dessa posição particular perante a ciência é, naturalmente, nosso pequeno conto de fadas: se a ciência encontrou um método que transforma as ideias ideologicamente viciadas em teorias verdadeiras e úteis, então ela não é mais, efetivamente, em si mesma, uma simples ideologia, mas uma medida objetiva de todas as ideologias. E, por conseguinte, não está mais submetida à obrigação de uma separação entre Estado e ideologia.

Pois bem, vimos que este conto de fadas é falso. Não existe método particular que possa garantir o sucesso de uma pesquisa ou torná-la provável. Os cientistas resolvem problemas não porque possuem um varinha mágica — a metodologia, ou uma teoria da racionalidade — mas porque estudaram por muito tempo um problema, porque conhecem muito bem seus dados, porque não são completamente idiotas (embora se possa duvidar disso hoje, quando qualquer um pode virar cientista) e porque os excessos de uma escola científica são quase sempre equilibrados pelos excessos de uma outra. Além disso, só raramente os cientistas resolvem seus problemas, cometem muitos erros, e inúmeras de sua soluções são perfeitamente inúteis. Na verdade, quase não há diferença entre o processo que conduz ao anúncio de uma nova lei científica e o processo que precede a passagem de uma nova lei na sociedade: informa-se ou todos os cidadãos, ou todos aqueles que são imediatamente afetados; reúnem-se “fatos” e juízos antecipados, discute-se o caso, e finalmente se vota. Mas enquanto uma democracia faz algum esforço para explicar o processo, para que todos possam compreendê-lo, os cientistas ou escondem-no, ou deformam-no para ajustá-lo a seus próprios interesses sectários.

Em suma, nenhum cientista admitirá que o voto representa um papel no seu campo. Só os fatos, a lógica e a metodologia decidem — aí está o que nos conta o conto de fadas.