Feyerabend (Método) – Científica ou mítica, toda teoria tende a tornar-se fixa num sistema rígido

P. Feyerabend. Contra o método

Para entender isso, basta considerar o mito da bruxaria e da possessão demoníaca que dominou todo o pensamento social dos séculos XV, XVI e XVII no continente europeu. As ideias de base desse mito foram introduzidas por teólogos que queriam dar uma explicação unificada a fenômenos estranhos e bastante assustadores, e fornecer com isso um guia para a ação ante esses fenômenos. Algumas das ideias de base estavam em acordo com os preconceitos comuns e foram aceitas por largos segmentos da população. No momento em que a mania dos feitiços chegou ao auge, o mito tornara-se um sistema complexo de explicações flanqueado por inúmeras hipóteses auxiliares destinadas a descobrir casos particulares. Ele atingiu facilmente uma alto grau de confirmação. Fora ensinado durante muito tempo; seu conteúdo era imposto pelo medo, pelos preconceitos, pela ignorância, assim como por um clero invejoso e cruel. Suas ideias penetravam a linguagem mais comum, contaminando todos os modos de pensamento e inúmeras decisões importantíssimas para a vida humana. Ele fornecia modelos que explicavam qualquer acontecimento concebível — concebível, quero dizer, para quem o havia aceito. […]

Também os resultados de observação pregavam a favor do mito, pois eram formulados nos termos dele, sem outra formulação possível no horizonte. Parecia que a verdade finalmente fora encontrada. Ao mesmo tempo, é evidente que todo contato com o mundo fora perdido e que a estabilidade assim conquistada do simulacro de uma verdade absoluta manifestando-se simultaneamente no pensamento e na percepção não era senão o resultado de um conformismo absoluto. Pois como poderíamos testar, aperfeiçoar os princípios fundamentais de uma teoria que é construída de tal sorte que todo acontecimento concebível pode Ser descrito em seus termos e toda dificuldade pode ser explicada a partir de seus princípios? A única maneira de sondar tal teoria seria compará-la com outra, também genérica – mas um procedimento assim estava excluído desde o início. O mito não tem então nenhuma pertinência objetiva; ele continua a existir somente através do esforço da comunidade dos fieis e de seus guias, sejam eles padres ou prêmios Nobel.