Luijpen – Exclusão do “problema critico” ?

LUIJPEN, Wilhelmus Antonius Maria. Introdução à fenomenologia existencial. Tr. Carlos Lopes de Mattos. São Paulo: EDUSP, 1973

Em nosso primeiro capítulo já indicamos que o problema crítico, como formulado desde Descartes, não subsiste. Não tem sentido algum perguntar-se se existe realmente um mundo, porque essa questão só pode ser levantada a partir de uma filosofia constituída que não procura no conhecimento, tal como ocorre, os termos em que o problema crítico deve ser posto. O conhecimento humano só aparece como intencionalidade, o que implica que o conhecimento simplesmente não é o que é sem o mundo real. Portanto, a existência do mundo não deve e não pode ser provada,1 visto que o sujeito-como-cogito é, em si mesmo, relação ao mundo real. O “escândalo da filosofia” não consiste, como pensava ainda Kant, em ninguém até agora ter podido estabelecer claramente uma prova da existência do mundo, mas, como deixou claro Heidegger, no fato de que ainda se procure semelhante prova.

Mas, dir-se-á, não têm valor algum as razões que levaram Descartes a duvidar da existência real do mundo ? Não posso sonhar, e, sonhando, pensar que percebo um mundo real, não existente na realidade ? Não posso ter alucinações, temores e desejos, convencendo-me, contudo, de que todas as significações percebidas em alucinações, temores ou desejos são reais, quando de fato não o são ?

É evidente que posso fazer tudo isso. Mas a distinção estabelecida pelo próprio Descartes entre perceber e sonhar significa que implicitamente ele já conhecia a diferença entre um mundo percebido e um mundo sonhado. Sabia tacitamente que, ao perceber, estava envolvido no mundo real, o que não se dava quando sonhava ou tinha alucinações.2 Apesar disso Descartes punha “o mundo todo” entre parênteses, inclusive o mundo da percepção, que já afirmara real. Enquanto, porém, punha entre parênteses também o mundo da percepção, apagava a diferença entre perceber e sonhar, porque subsiste em virtude da diferença entre o mundo percebido e o sonhado. Descartes enchia o cogito de imagens imanentes, mas nelas o sujeito nunca pode “ver” se são imagens sonhadas ou reais.3 Quem toma a sério a ideia da intencionalidade não pergunta mais se o mundo que ele “vê” existe realmente. O que pergunta é se realmente “vê” e não sonha.4


  1. “Vê-se… como o problema da existência do mundo exterior não apresenta, rigorosamente falando, nenhum sentido”. Marcel, G., Journal Méthaphysique, IIa ed., Paris, 1935., p. 26. 

  2. “Porque se posso falar de ‘sonhos’ e da ‘realidade’, interrogar-me quanto à distinção do imaginário e do real, e pôr em dúvida o ‘real’; é porque essa distinção já está feita por mim antes da análise, é porque tenho uma experiência tanto do real como do imaginário, e o problema então não é procurar como o pensamento crítico pode dar-se equivalentes secundários dessa distinção, mas explicitar nosso saber primordial do ‘real’, descrevendo a percepção do mundo como o que funda para sempre nossa ideia de verdade”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, Avant-propos, p. XI. 

  3. “Se eu dissesse com o sensualismo que só existem ‘estados de consciência’ e procurasse distinguir de meus sonhos minhas percepções mediante ‘critérios’, falharia ao fenômeno do mundo”. Ibid. 

  4. “Não se deve, pois, perguntar se percebemos verdadeiramente um mundo; cumpre dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que percebemos”. Ibid.