Luijpen – Consequências da primazia do “cogito”

LUIJPEN, Wilhelmus Antonius Maria. Introdução à fenomenologia existencial. Tr. Carlos Lopes de Mattos. São Paulo: EDUSP, 1973

A profundidade da crítica com que Descartes procede em sua procura de um ponto de partida indubitável do filosofar começa a produzir consequências já na primeira verdade da filosofia. O sujeito-como-cogito está fora de dúvida. Que é, porém, o sujeito ? Descartes não pode responder que o sujeito se encontra imerso na corporalidade ou envolto no mundo, porque a realidade do corpo e do mundo foi posta entre parênteses por motivos metódicos. À pergunta “o que sou ?” só pode responder com o que não foi posto entre parênteses, e isso é unicamente o pensamento: sum cogitans (“sou um ser pensante”). Descartes aceita de modo explícito essa consequência. Julga que o sujeito, o “eu”, a “substância pensante”, a que chama “alma”, é simplesmente o que ela é, mesmo sem corpo e sem mundo, dos quais é inteiramente independente.

Pelo método da dúvida radical decide-se ao mesmo tempo qual o objeto do pensamento, do conhecimento ou consciência. Sou um ser pensante. Mas o que penso ? Impossível a Descartes dizer que o sujeito-como-cogito pensa a realidade de Deus, do mundo ou do corpo, já que pôs entre parênteses a realidade deles. No entanto, o pensamento é necessariamente pensamento-de-alguma-coisa, porque, se não o fosse, seria, como pensamento-do-nada, simplesmente um não-pensar. À pergunta sobre o objeto do pensamento só pode, de novo, responder com o que não foi posto entre parênteses, o que não é senão o pensamento. Sum cogitans cogitationes meas: penso meus próprios pensamentos, sou consciente dos conteúdos de minha consciência, conheço minhas próprias imagens cognitivas, e isso é que sou.

O radicalismo da dúvida metódica não fez com que se perdessem do pensamento Deus, o mundo e o corpo, juntando-lhes tão só a denominação de “pensamento de”. O cogito-com-conteúdo tira daí sua certeza incontrastável. Ainda que a pena com que escrevo, o papel que emprego, a cadeira em que sento e o quarto em que moro não fossem realidades, seria, embora tudo isso não passasse de um sonho, irrefutável que tenho a ideia de pena, a ideia de papel, a ideia de cadeira e a ideia de quarto.1 O cogito-com-conteúdo é indubitável, e isso é o que sou.


  1. “Depois, além disso, tinha ideias de várias coisas sensíveis e corporais; porque, ainda que supusesse sonhar e julgasse ser falso tudo o que via ou imaginava, não podia negar, todavia, que as ideias estivessem verdadeiramente em meu pensamento”. Discours, p. 35.