Luijpen – O homem

LUIJPEN, Wilhelmus Antonius Maria. Introdução à fenomenologia existencial. Tr. Carlos Lopes de Mattos. São Paulo: EDUSP, 1973

Na opinião de Descartes, temos só uma ideia da matéria que obedece ao critério da “clareza” e “distinção”, a saber, o conceito da “extensão”, aplicando-se tanto ao corpo humano como às coisas do mundo. Tudo o que for material será, pois, para Descartes, essencialmente extenso, quantitativo e nada mais. São, porém, só as ciências naturais que operam com a ideia de “quantidade”. Portanto, a concepção cartesiana a respeito da realidade do corpo e das coisas mundanas é cientista. O que as ciências naturais não conseguem exprimir pode talvez ter significação para a prática da vida cotidiana, mas não para a “ciência admirável”, onde se trata de uma indubitável certeza acerca do verdadeiro e do real.

Essa concepção acarreta graves consequências para a ideia cartesiana do homem. De um lado, o homem é uma res cogitam, uma substância que se pensa a si mesma; de outra parte, é também uma res extensa, uma substância extensa. Desde que a realidade material, para Descartes, não é mais que o quantitativo, qualquer transformação ou movimento não passa, por si e necessariamente, de um fenômeno espacial. O corpo “humano”, portanto, é só “quantidade que se move espacialmente”, uma máquina, objeto da mecânica. O homem consta então de duas substâncias, distintas é independentes por princípio e essencialmente. O filósofo não deixou de verificar, porém, que a alma e o corpo constituem certa unidade. Provam-no os sentimentos de fome, sede e dor. Quando uma ferida me causa dor, a res cogitans não o percebe como um piloto que nota ter quebrado alguma coisa em seu navio.1 Esses sentimentos mostram que há uma “mistura do espírito com o corpo”, muito mais íntima que a unidade de um piloto com seu navio. Vê-se assim forçado a admitir certa influência mútua entre a alma e o corpo. “Propriamente” tal coisa não deveria ser possível, mas o fato é inegável. O filósofo tentou resolver a dificuldade dando à alma um lugar na glândula pineal. A alma torna-se capaz de influir nos movimentos do corpo mediante os “espíritos animais”. Estes, por sua vez, fazem a alma perceber os movimentos do corpo. O próprio Descartes, contudo, não se sentiu satisfeito com essa solução do problema. Não é de estranhar, porque procurava responder à seguinte questão: como podem perfazer uma unidade essencial duas substâncias que não são essencialmente uma unidade ?


  1. Porque, não sendo assim, quando meu corpo fosse atingido, eu não sentiria dor por isso, desde que não sou senão uma coisa pensante, mas perceberia essa ferida só pelo entendimento, como um piloto nota com a vista se alguma coisa se rompe no seu barco”. Meditationes, p. 79.”