Heidegger (GA36-37) – a dúvida cartesiana

HEIDEGGER, Martin. Ser e Verdade. 1. A questão fundamental da filosofia. 2. Da essência da verdade. Tr. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Petrópolis, 2007, p. 53-54

Com o propósito de determinar a posição real de Descartes na história da filosofia ocidental, no tocante às questões fundamentais, e ao fazê-lo, realçar o predomínio decisivo da ideia matemática do método, afirmo o seguinte:

1. a radicalidade da dúvida de Descartes e o vigor da nova fundamentação da filosofia e do saber em geral é uma aparência e, assim, fonte de ilusões fatais, hoje, muito difíceis de serem eliminadas;

2. este pretenso novo princípio da filosofia moderna, com Descartes, não apenas não consiste, como é, sobretudo, o início de mais uma decadência da filosofia. Descartes não leva a filosofia de volta para si mesma, para seu fundo e seu chão, mas a distancia mais ainda do questionamento da questão fundamental.

α) A dúvida metódica como caminho do indubitável. O mais simples e o mais evidente é o fundamento

Trata-se de provar essas afirmações no seu contexto. Tal proposta é, ao mesmo tempo, a primeira estocada num ataque geral, que visa a Hegel. Antes, porém, deve-se sondar a posição de Descartes com mais nitidez e, sobretudo, ver uma coisa à medida que sua atitude de duvidar e o intuito de dar nova fundamentação correspondem inteiramente à sua ideia diretriz de método.

Muitas vezes chama-se a dúvida cartesiana de “dúvida metódica”. Com isso, entende-se o seguinte: a dúvida não deve ser meta e fim em si mesma, duvidar por duvidar. Pratica-se a dúvida, visando a algo indubitável. A dúvida serve apenas de caminho para a certeza.

Todavia, a dúvida de Descartes é “metódica” ainda num outro sentido, mais profundo e totalmente diferente. A saber, à medida que a dúvida se dá e acontece no sentido e a serviço do que Descartes entende simplesmente por método, isto é, do “matemático”, acima caracterizado. Isso significa: subordinando o filosofar a um pensamento-guia, tal método decide, de antemão, o caráter que deve ter e satisfazer, o que há de se considerar como solo seguro para todo saber. Deve ser algo superlativamente simples, simplicissima propositio, e, com isso, algo absolutamente evidente (intuitus).