Luijpen – Espiritualismo

LUIJPEN, Wilhelmus Antonius Maria. Introdução à fenomenologia existencial. Tr. Carlos Lopes de Mattos. São Paulo: EDUSP, 1973

A relativa prioridade do sujeito pode também ser expressa de outro modo. O mundo das coisas revela-se, sempre e necessariamente, como o não-eu. O não-ser-eu pertence à realidade do mundo das coisas. Coisas no mundo material que não se distinguem do eu, que não se revelam como não-eu, não são coisas reais. Quem quer exprimir a realidade das coisas, portanto, vê-se obrigado implicitamente a afirmar a não-identidade delas com o eu. Nisso está contida, ao falar-se da realidade das coisas, a impossibilidade de negar ou eliminar o eu, porque então o mundo das coisas também não poderia ser expresso como não-eu. O não-ser-eu, porém, pertence à realidade das coisas.

Consequentemente, havemos de admitir certa prioridade do eu, sendo por isso impossível considerá-lo como o resultado de forças e processos cósmicos. Porque sem o eu os processos e forças no cosmos não são o que realmente são, a saber, não eu. Ora, como pode aquilo, que sem o eu não é simplesmente o que de fato é, lançar o eu no ser ? Se isso fosse possível, alguém que afundasse num pântano conseguiria também puxar-se pelos cabelos.

Vê-se, desde logo, a direção em que deve ir o pensamento dos que pretendem explorar o ponto fraco do materialismo. Para o materialista, o sujeito consciente não é uma realidade digna de menção; para o espiritualista, o pensamento sobre a realidade começa com a afirmação do sujeito. Já salientamos que é absolutamente necessário experimentar a força do pensamento materialista, se se quer compreender algo da grosseira asserção de que o homem é uma coisa. É igualmente preciso mergulhar também na esfera do pensamento espiritualista, a fim de prevenir que não se rejeitem levianamente os resultados dessa ideia.

Desde que uma pessoa veja realmente a prioridade do sujeito, expõe-se ao perigo de exagerar o seu significado. Sem o eu, o mundo das coisas não é o que realmente é, a saber, o não-eu. Sem o eu não se pode simplesmente falar do mundo das coisas, perdendo o termo “ser” todo sentido. Forçando-se isso um pouco, pode suceder que se considerem as coisas como o resultado de uma espécie de atividade criadora do sujeito ou como conteúdos da consciência do mesmo.

Esse modo de tornar absoluta a importância do sujeito equivale, no monismo espiritualista, à redução do ser das coisas materiais ao ser do sujeito. Portanto, nessa corrente, a “destotalização da realidade” se faz na direção completamente oposta à que é seguida pelo materialismo. Enquanto neste o significado da subjetividade é simplesmente omitido ou, no máximo, visto como indigno de ser mencionado, no monismo espiritualista desaparece a densidade das coisas materiais nos fantasmas dos conteúdos de consciência.1

O monismo espiritualista, portanto, toma a sério o que fora abandonado pelo materialismo: o ser-por-si (aus-sich-sein) da subjetividade. Como sujeito, o homem não pode ser o resultado de processos materiais, o que quer dizer que o sujeito é por-si. Exagerando-se isso, não só se elimina a receptividade do sujeito em relação à densidade das coisas materiais, mas até a possibilidade de reconhecer o ser-sujeito de outros sujeitos.

Porque como pode um sujeito que se absolutiza reconhecer e aceitar o outro sujeito, enquanto outro, com uma identidade própria em relação ao sujeito que se absolutiza ? Este há de reduzir à sua identidade o sujeito que se distingue dele e tem uma identidade própria, sacrificando a identidade do outro sujeito. Logo, porém, que o eu se concebe como contendo em si próprio todos os outros eus, deve reconhecer que não pode mais conceber-se como “pequeno” eu, finito e distinto dos outros, como é de fato todo eu real: eu, p. ex., o autor deste livro, não incluo todos os eus. Assim, pois, o monismo espiritualista vê-se obrigado a sacrificar a identidade do “pequeno” sujeito ao Sujeito Absoluto. No lugar do “pequeno” sujeito, que é todo sujeito real, aparece o Sujeito “grande” e impessoal, de que os muitos e distintos sujeitos não passam, quando muito, de particularizações, momentos dialéticos ou funções. O Eu Absoluto de Fichte e o Espírito Absoluto de Hegel ilustram eloquentemente o ponto a que chega semelhante modo de pensar.

Evidencia-se logo serem as qualificações do Sujeito Absoluto tão fantásticas que acabam coincidindo com o que tradicionalmente se designa com o “nome” de Deus. Em outras palavras, no monismo espiritualista o sujeito é “divinizado”.

A realidade, porém, do “pequeno” sujeito é que se trata de um pequeno sujeito, cuja relatividade é e continua a ser evidente. Mas como se julga que o Absoluto pensa e age no sujeito “pequeno” e por ele, deve-se, em primeiro lugar, asseverar que é realmente o Absoluto que pensa e age, e não o “pequeno” sujeito. Desde que na realidade, entretanto, não existe senão o “pequeno” sujeito, a afirmação de que é o Absoluto que pensa e atua no sujeito “pequeno”, e por ele, equivale de fato a pretender que o pensamento e a ação do “pequeno” sujeito têm um peso absoluto.2

A consequência disso é que o homem julga poder falar com autoridade “divina” e pensa agir com uma garantia “divina” de valor. Dá tanta importância a suas convicções e asserções que se vê incapacitado, em princípio, de escutar outrem e toma como um crime de lesa-majestade qualquer contestação de sua “verdade”.3 Imagina que fala em nome do Absoluto, considerando sua “verdade” como o plano de Deus para o homem e para o mundo,4 e tendo a pretensão de que seu agir executa esse plano com uma garantia “divina”.

Quem experimentou o poder do pensamento espiritualista compreende porque essa corrente nunca foi vencida completamente na história da filosofia. Também nunca deveria ser superada completamente, no sentido de que sua inspiração original não mais haveria de ocorrer no pensamento de hoje. Quem, porém, olhar no passado a contribuição do espiritualismo chegará à conclusão de que pouco resta neste da inspiração original que ocasionou o materialismo. Que o homem só é o que é graças à materialidade foi rebatido de maneira irresponsável pelo espiritualismo.

Há, pois, razão em procurar um caminho médio, que tanto leve em conta as concepções justas do materialismo como as do espiritualismo, buscando ao mesmo tempo evitar os extremismos de ambos. Como já dissemos, foi o que tentou a fenomenologia existencial. Cumpre-nos passar agora à descrição do homem como existência. Queremos, entretanto, expor antes a doutrina de Descartes, para que, historicamente vista, a fenomenologia existencial se distinga permanentemente das filosofias que, de um modo ou de outro, têm sua origem mediata ou imediata no sistema cartesiano. Além disso, a doutrina de Descartes nos faz ver como se pode ser espiritualista sem reconhecê-lo “oficialmente”, assim como é possível ser materialista sem que jamais se afirme de maneira explícita que se quer reduzir o homem a uma coisa.


  1. “Também o idealismo transcendental ‘reduz’ o mundo, porque, se o torna certo, é a título de pensamento ou consciência do mundo e como simplesmente correlativo à nossa consciência, de modo a tornar-se imanente a ela, suprimindo-se assim a asseidade das coisas”. PP. Avant-propos, p. X. 

  2. “Todavia, não devemos esquecer que essa absoluta autoconsciência não é afinal a consciência de ninguém, malgrado só chegue a si através da história da humanidade. Isso implica que sempre haja alguém, uma pessoa ou um povo, que se identifique com o Eu absoluto, proclamándose, em uma determinada situação histórica, como a autêntica encarnação, o portador e o arauto do absoluto. Pense-se, p. ex., nas célebres ‘Reden an die Deutsche Nation’ (Discursos à Nação Alemã) de Fichte”. A. Dondeyne, Inleiding tot het denken van E. Levinas, em: Tijdschrift voor Philosophie, XXV (1963), p. 562. 

  3. “Quem apela para o absoluto não quer escutar ninguém, e deve estar persuadido de que toda contestação é crime de lesa-majestade contra a autoridade que responde por sua atitude”. G. Gusdorf, Traite de Métaphysique, Paris, 1956, p. 131. Trad. port. de António Pinto de Carvalho: Tratado de Metafísica, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1960. 

  4. G. Gusdorf, op. cit., p. 107.