Para compreender melhor a hipótese de Couliano, vale à pena resgatarmos em linhas gerais a ficção de Abbott. Em 1884, o clérigo Edwin Abbott, reitor da City of London School, escreveu uma novela surpreendente, Flatland: Um Romance de Muitas Dimensões por um Quadrado1, que teve uma repercussão e um sucesso inesperado, inclusive inspirando a pesquisa de cientistas famosos, como por exemplo Albert Einstein.

Dada a fascinação no final do século passado com questões relativas a outras dimensões, além das três dimensões do espaço euclidiano, o livro foi um sucesso imediato na Inglaterra, com nove reimpressões até 1915, e inúmeras edições até nossos dias.

Além da brilhante e engenhosa exposição da “vida” em um plano onde habitam seres bidimensionais, uma Flatland, Abbott surpreende a todos com uma alegoria que guarda em si sérias críticas à sociedade vitoriana. O herói da novela, Mr. Square, é um típico conservador que vive em uma terra bidimensional, socialmente estratificada, onde todos os indivíduos são assemelhados a objetos geométricos.

As mulheres, por exemplo, ocupam em Flatland o nível mais baixo na hierarquia social, são meras “linhas”. A “nobreza”, por sua vez, é representada por polígonos, com diferentes quantidades de lados, de acordo com seu status. Já, na perfeição dos círculos se encontram espelhados os “alto sacerdotes”.

Em Flatland, qualquer discussão sobre a “terceira dimensão” está absolutamente proibida, pela punição severa a sua simples menção. Mr. Square, conservador que é, não ousa enfrentar o establishment, mas se vê em apuros quando um certo dia é visitado por Lord Sphere, um ser tridimensional. O interessante é que Lord Sphere aparece para Mr. Square como uma círculo, que muda de tamanho a qualquer tempo, como se fosse por mágica.

Lord Sphere pacientemente tenta explicar que ele vem de um outro mundo chamado Spaceland, onde todos os objetos têm três dimensões. Como Mr. Square se recusa a aceitar tudo aquilo por que está passando, Lord Sphere o “destaca” da Flatland e o conduz por uma experiência quase mística, por Spaceland.

Infelizmente Mr. Square não tem como “ver” efetivamente o mundo tridimensional, só conseguindo perceber eventuais “traços” que os objetos deste mundo deixam em sua percepção de habitante de um mundo bidimensional. Portanto, de volta à Flatland, Mr. Square é incapaz de descrever sua experiência para os “altos sacerdotes”, que acabam por considerá-lo uma ameaça para a ordem em Flatland, e resolvem mantê-lo afastado da sociedade, em prisão perpétua.

O ponto essencial da história, que Abbott tem uma dificuldade natural (de um ser tridimensional) para explicar, é a limitação da existência em duas dimensões, o que pode e o que não pode ser feito, e muito menos pensado. Em nosso mundo tridimensional podemos pensar e agir com o recurso extra de uma dimensão, não disponível em Flatland. Por exemplo, não seria possível “se dar um nó” em Flatland, pois para tal se precisaria sair do plano de duas dimensões, a que estão sujeitos todos os seus habitantes.


  1. Flatland: A Romance of Many Dimensions by a Square publicado originalmente em 1884 sob o pseudônimo “A. Square”, teve um lugar único na literatura científica por mais de um século. Escrita por Edwin Abbott, um clérigo e matemático, especialista em Shakespeare, esta narrativa encantadora de um mundo bidimensional, alcançou renome como uma apresentação de conceitos geométricos que vinham sendo desvendados no século passado, como os das geometrias não-euclidianas, e ao mesmo tempo como uma sátira da hipócrita hierarquia social victoriana. [Abbott, 1992] 

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