de Castro – Matematização, Ideia Mentora

Sob a informática direta ou indiretamente associada à explosiva e crescente formalização deste instrumental, subjace a matemática ou a lógica-matemática, imanente a esta mediação, como “princípio, meio e fim” das ciências.

Encontramos aí um traço eminentemente fundamental da concepção cientifica moderna: o conhecimento científico se move no domínio da representação; contudo, o meio por excelência dessa representação é a matemática. O verdadeiro paradigma de todo objeto é o objeto matemático. O que não deixa de ser bastante paradoxal, porque, no final das contas, o objeto matemático é construído: não nos é dado à maneira dos objetos naturais. É muito difícil a questão de sabermos como exatamente ele é construído. Sobre essa questão, não possuímos ainda, no momento atual, uma clareza satisfatória. Em todo caso, é certo que não descobrimos o objeto matemático na percepção: ele é elaborado passo a passo, por atos específicos de abstração e de tematização. Por outro lado, porém, uma vez construído, impõe-se a nós como o objeto que existe nele e por ele mesmo. Foi isto que levou alguns grandes matemáticos a considerar que a realidade matemática existe em si, fora do espírito humano e a pensar que, ao construirmos um objeto matemático, nada mais fazemos, de fato, senão descrever uma realidade que existe fora de nós e independentemente de nós.1

Husserl2, em seu texto A Crise da humanidade europeia e a filosofia, apresenta uma análise fenomenológica do que denomina cientificidade, e particularmente sua significação positivista, ou seja, redução da ciência apenas ao conhecimento dos fatos. Para ele esta tendência domina todas as ciências e denota uma crise profunda do estatuto da cientificidade. Em suas palavras: “o positivismo decapita a filosofia”3, e “puras ciências positivas fazem homens puramente positivos”. O positivismo4) promove o fetichismo do fato e não permite que se questione o olhar sobre os fatos, ou seja, o ato ou o vivido pelo qual temos acesso aos fatos.

Segundo Kolakowsky5, “o positivismo é uma posição filosófica relativa ao saber humano, (…) constitui um conjunto de regras e de critérios de juízo sobre o conhecimento humano”. Entre estas regras para enunciação de juízos válidos sobre o mundo, a primeira é a do “fenomenalismo”: não há diferença real entre a ‘essência’ e o ‘fenômeno’; temos o direito de registrar o que se manifesta efetivamente na experiência, porém as opiniões sobre substância, formas substanciais, qualidades ocultas sob a experiência não são dignas de fé. O corolário desta regra é o “nominalismo”: regra pela qual fica interdito supor que um saber qualquer, formulado em termos gerais, tenha na realidade outros equivalentes que os objetos concretos singulares.

“Um fato é um fato”, eis a máxima positivista. O que leva seus seguidores a enfatizar apenas o fato com tal, deixando de lado o modo de acesso ao fato, o como do olhar que constitui o fato. Deste modo um positivista não admite refletir sobre seus atos vividos e tende a fazer abstração de sua subjetividade e do sentido que impõe a qualquer fato. Deixando de lado sua constituição do fato, portanto o sentido que este tem para si, o positivista deixa de lado também os problemas vitais, o que leva Husserl a afirmar: “esta ciência não tem nada a nos dizer (…). As questões que exclui por princípio são precisamente as questões que são as mais relevantes para nossa época infeliz, para uma humanidade abandonada aos desarranjos de seu destino: estas são as questões que tratam sobre o sentido ou a ausência de sentido de toda esta existência humana”6.

Para Husserl, o risco positivista que incorrem as ciências tem uma dupla consequência. Por um lado, a atenção do cientista é polarizada sobre o estudo do fato, por outro lado, este privilégio acordado à pura observação dos fatos leva à cegueira da instância subjetiva ela mesma. Este desinteresse do cientista por sua própria subjetividade, em ação na démarche científica que adota, é a condição maior para a crise atual das ciências. Ou seja, a falta de reflexividade na pesquisa científica, a não atenção dada ao “enigma da subjetividade” que nela opera, leva ao “objetivismo”, sinônimo de positivismo, segundo Husserl.

Esse objetivismo nasce com Galileu e a matematização da natureza, de acordo com Husserl. As geometrias platônicas e euclidianas conservam uma ligação estreita com o sensível no modo como figuram, de maneira geométrica, os números compreendidos como ideias, e se aplicam assim a produzir uma cópia sensível das ideias inteligíveis. Ao contrário, a geometria do século XVII se constitui como uma disciplina bem mais abstrata. Ela deseja romper deliberadamente com o referente sensível. Se nomeando “geometria analítica”, ela adota a linguagem abstrata da álgebra. Desde então, a natureza, idealizada em fórmulas algébricas, se torna uma “multiplicidade matemática”, ou seja, um domínio possível do conhecimento, regido por uma teoria que o determina exaustivamente quanto a sua forma, segundo Husserl.

Rompidas suas ligações com a realidade sensível, esta nova geometria algebrizada se elabora como um domínio formal autônomo, tendo suas regras e seus procedimentos próprios. Matematizar a natureza é, por conseguinte, torná-la um objeto abstrato regido por leis universais, e desconectado da diversidade do sensível e do individual. Assim estabelecem-se as condições para nascimento de uma “física matemática”, onde a natureza, physis grega, recebe o nome de física e todo um novo sentido. Com a matematização da natureza, ou seja, com o início da física como disciplina científica nasce também um tipo de espírito focalizado sobre seu objeto, a natureza física, consequentemente cego em relação a si mesmo enquanto sujeito operante.

“Tudo está ordenado segundo o número”

“Momentos” da Matematização da Natureza

Da matematização da Natureza à naturalização da matemática


  1. LADRIÈRE, Jean. Ética e Pensamento Científico: a abordagem filosófica do problema bioético. São Paulo: Editora Letras & Letras, 1994, pág. 21 

  2. HUSSERL, Edmund. La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale. Paris: Gallimard, 1976 

  3. ibid. pág. 7-8 

  4. Todas as disciplinas científicas estão sob o domínio do positivismo, a tendência para o positivismo, onde “positivo” é compreendido em termos de fatos, e fatos são compreendidos em termos de uma interpretação particular da realidade. Fatos são fatos apenas se podem ser enumerados, pesados, medidos, e experimentalmente determinados. (HEIDEGGER, Martin. History of the Concept of Time. Trad. Theodore Kisiel. Bloomington: Indiana University Press, 1979/1985, pág. 15 

  5. KOLAKOWSKY, Leszek. La philosophie positiviste. Paris, Denoël, 1976, pág. 10 

  6. HUSSERL, Edmund. La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale. Paris: Gallimard, 1976, pág. 10